Desenhar é um prazer?

25/05/2021

Barry Windsor-Smith não publicava uma página sequer há quinze anos. Reapareceu no mês passado com uma graphic novel, Monsters. Não foi inesperado. Pelo contrário, Monsters era esperada, comentada, prometida há mais de trinta anos. Ele finalmente achou tempo e fez.

E é tempo, atenção, meticulosidade que se vê em cada página. Trezentos e setenta páginas. Numa sequência da primeira metade, dois homens conversam durante uma nevasca que aumenta progressivamente, de dois ou três floquinhos de neve na página 114 até uma chuva de confete circundando as figuras na 121. Cada floco tem seu tamanho, seu formato. Alguns fazem sombra do tamanho e formato exato sobre os personagens, cada um destes desenhado com a hachura certa para o tipo de roupa que veste. Windsor-Smith se deu o tempo que queria para fazer Monsters.

Quem trabalha nesse nível de meticulosidade, esses anos em cima da prancheta, às vezes um dia inteiro de trabalho em cima de dois quadros de uma página com nove… tem que ver algum alegria no que faz, né?

Só que não.

É o que Windsor-Smith respondeu numa entrevista recente – sendo entrevistas coisas que ele também não fazia há tempos. Está pouco depois de 1h17 deste papo em vídeo. O entrevistador questiona se composições como da página 104, um ataque de helicópteros em que a composição se entope de onomatopeias, são tão legais de fazer quanto parece.

“Eu sinto que é uma diversão tremenda projetar uma página dessas, não é?”, pergunta o entrevistador.

Windsor-Smith faz uma cara de dor para responder: “Não, não tem diversão.”

O entrevistador ri de jogar a cabeça pra trás. Quem conhece o trabalho de Windsor-Smith, fazendo páginas e páginas elaboradas como esta desde 1960 e bolinha, só pode rir. Ele não gosta do que faz?

“Eu gostaria de dizer que tem coisas que eu faço que são divertidas”, segue o desenhista, “só que, literalmente, não tem nada. A única coisa que eu consigo pensar nesse wup-wup-wup com os helicópteros é que me poupou de desenhar as hélices. Diversão, não tem. Eu conheço gente que desenha quadrinhos… o Walter Simonson, que é um ótimo exemplo de quem adora desenhar HQ, e faz muito bem. E ele já me disse, num papo solto, mesa de bar, como ele se diverte em fazer uma homenagem ao Kirby, ou essa coisa e aquela outra. É aí que eu não participo. Não sei do que ele está falando. Eu não sei o que é desfrutar fazer um gibi, como o Walter. Eu acho um trabalho tenebroso de difícil.”

Então… Barry Windsor-Smith não gosta de desenhar?

Esse Barry Windsor-Smith não gosta de desenhar?

 

O trecho da entrevista ficou dias na minha cabeça. Se Barry Windsor-Smith – 71 anos, desenhando profissionalmente, neste nível, desde os 18 – não gosta de desenhar, o que sobra para outros que vivem de desenho?

Resolvi perguntar. Comecei pela pessoa que fez questão de me enviar um link da entrevista, Fábio Moon (Dois irmãos, Daytripper, Como falar com garotas em festas). Desenhar te dá algum prazer?

Eu tenho prazer em desenhar quadrinhos, mas não faço com a mesma facilidade com que outros artistas que eu conheço fazem. Eu demoro cada vez mais pra encontrar o ângulo certo pra um quadro ou outro, demoro pra acertar a composição de algumas páginas, faço diversas vezes as poses e rostos dos personagens até ficar satisfeito. Tem sido extremamente cansativo fazer quadrinhos, mas eu adoro. A parte que eu mais gosto é quando estou fazendo arte-final. Se não é a que eu mais gosto, é pelo menos a mais fácil, a mais fluida. Não acho que o Barry Windsor-Smith seja tão apaixonado por quadrinhos quanto eu.

 

O lápis da Jéssica Groke (Me Leve Quando Sair, Tabu, Babilônia) monta uma página como quem monta uma pintura, dispensando os requadros para contar histórias que fluem. É bom fazer o que ela faz?

Me identifico com o que o Windsor-Smith disse, infelizmente.

Eu gosto muuuuito do processo de pensar a página, pensar a narrativa, a história, os personagens. Mesmo sendo super difícil, consigo gostar, é um desafio bom… Mas, honestamente, na hora de desenhar toda essa parada eu gostaria de ter um Minion que fizesse por mim, haha. Claro que depois seria muito incômodo pensar que não fui eu quem desenhou e ia bater uma síndrome do impostor enorme. Acho que por isso sigo desenhando (por isso e por, infelizmente, não ter um Minion). 

Mesmo o desenho ficando ruim e me chateando muito no processo, no final eu penso: “pelo menos eu tentei… fiz isso aqui”. E em raras ocasiões eu penso: “é, finalmente, esse aqui ficou muito bom”. Acho que parte do meu desgosto em desenhar parte do fato de achar que não sei desenhar e não domino essa ferramenta como eu gostaria. Todo desenho meu só sai com muito suor e sacrifício. Os outros desenhistas parecem conseguir com uma naturalidade, uma leveza... São raros os momentos de prazer desenhando e ultimamente tenho tentado mudar isso (espero conseguir). Estou tentando me livrar desse peso e aproveitar pra curtir o caminho.. Ninguém mandou eu desenhar quadrinhos, não tenho obrigação de fazer isso, eu faço quadrinhos porque amo! Não deveria ser tão penoso assim, mas é.

 

A Laerte (Muchacha, Manual do Minotauro), você sabe, desenha o que quiser e você identifica que é da Laerte. Ela tem quase a mesma idade e mesmo tempo de carreira do Windsor-Smith, mas encheu mais páginas do que ele.

Eu gosto de ler quadrinhos - bastante!

Mas fazê-los envolve sentimentos bem diferentes e é difícil resumí-los em “prazer”.

Acho que o prazer está envolvido, mais ou menos na mesma medida que em outras profissões, mas não de modo perene.

Acontece quando, em alguns momentos, se sente que se alcançou um ponto raro: uma ideia, uma solução gráfica, um sentido oculto que não tínhamos planejado mas que se fez presente.

São momentos raros, e talvez “prazer” seja até um qualificador modesto.

De resto, é trabalho, é difícil, gera ansiedade - a gente tem que ficar lembrando que faz quadrinho porque escolheu fazer.

Mas tampouco é desprazer.

 

Luciano Salles (Grand Prix Metanoia, Eudaimonia, O Quarto Vivente) é dos que desenham cada dobra de pele, cada veia do olho, cada manchinha na faca. Desenhar é bom?

Desenhar as páginas de uma história em quadrinhos autoral é cansativo, entediante e quando se percebe – ao repetir algo muitas vezes –, o prazer, se existia, evaporou. O que sobra? Continuar o trabalho que você tem que entregar para você mesmo, se for uma HQ independente, ou para uma editora ou seja qual for a demanda. É um trabalho.

Como um trabalho, a remuneração pelo mesmo pode estimular e valorizar o profissional que está ali, no empenho. Como isso pouco acontece, o dicionário etimológico da palavra trabalho se faz valer.

Quer saber se produzi tudo o que produzi com pesar, sofrendo horrores?

Não é tão prazeiroso como podem romantizar.

 

Ana Luiza Koehler (Beco do Rosário) é arquiteta de formação, adora prédios bonitos, mas nunca quis deixar de desenhar as pessoas nos prédios. Pesquisa e reproduz frontões tanto quanto pesquisa e reproduz figurinos de cem anos. E é maratonista:

A declaração de Windsor-Smith não me surpreende. Eu acho que fazer uma página de quadrinhos é antes de tudo um trabalho duro, intelectual, raras vezes divertido, e que exige muita disciplina. Talvez por isso muita gente desista de fazer quadrinhos e se dirija mais à ilustração. Para mim, desenhar páginas é como correr uma maratona: só fica mais fácil se a gente já tá no meio da corrida, com o corpo adaptado ao esforço. Mas ela permite algo que a ilustração avulsa não permite: criar um universo narrativo mais elaborado. Para mim é essa capacidade que faz tudo valer a pena.

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Uma publicação compartilhada por Ana Luiza Koehler (@analuizakoehler)

 

 

Diego Gerlach (Pinacoderal, Nóia) à primeira vista, tem um estilo mais cru e rápido, talvez com idolatria pelo desenho cru e rápido de Condorito, Pica Pau e afins. Ele passa a impressão de que nunca para de desenhar.

Eu gosto de desenhar, sobretudo se não tiver um objetivo específico e puder desenhar o que quiser. Quando se trata de desenhar quadrinhos, já é uma sensação mais ambivalente. A satisfação em torno desse ou daquele desenho específico diminuiu frente ao propósito de criar uma história em quadrinhos de cabo a rabo. Isso porque você sabe que tem muitos e muitos desenhos pela frente antes de terminar a história e, na prática, não pode ser preciosista com o ato de desenhar. E aí, frente ao ritmo repetitivo, ao número de horas gasto etc, etc, etc, realmente, não é incomum você começar a odiar o ato de desenhar durante o processo. Mas, no meu caso ao menos, é uma coisa passageira, e a qualidade da história independe do meu grau de satisfação com o ato do desenho.

 

Pedro Franz (Incidente em Tunguska, Suburbia, Promessas de amor a desconhecidos…) desenha todas as pétalas da flor em uma página, rabisca toda a seguinte, põe um super-herói na terceira, derrama tinta na quarta. Você não sabe o que vai vir na quinta. Também é maratonista:

Acho que, muitas vezes, fazer quadrinhos tem toda essa parte da repetição, que pode tirar o que mais gosto ao desenhar, que tem muita relação com quando descubro algo enquanto desenho. Então, acho que entendo o que o BWS tá dizendo, pois tem horas que fazer quadrinhos pode virar algo muito chato, meio tedioso ou desgastante. (Imagino que deve acontecer algo assim com a tradução, não?) Mas, claro, tem uma porção de outros momentos nos quais dá uma baita alegria estar desenhando uma página de quadrinhos. E, mesmo em projetos que acabam contigo, tem aquela coisa que acho que é um pouco próxima de percorrer grandes distâncias: cansa pra caramba, dói os ombros e as costas, tu quer que aquilo acabe de uma vez, mas, quando termina, é uma sensação muito boa.

(Sim, a tradução tem disso. Mas é assunto para outra hora.)

 

Emil Ferris usou quarenta caixas de canetas Bic para desenhar Minha coisa favorita é monstro. Diz que chegou tarde nos quadrinhos e talvez por isso ainda não tenha se desencantado.

Concordo plenamente que fazer quadrinhos é um trabalho tenebroso de difícil. (E que o sr. Windsor-Smith faz de um jeito lindo!)

Já me dei conta que fazer quadrinhos é a função criativa mais alegre e gratificante que eu tenho e que já tive. O momento em que eu leio uma página e sei que ela faz tudo que eu quero que faça me dá uma enorme esperança de que o leitor vai sentir a mesma coisa. É tipo magia: esculpir uma história, uma coisa que vai viver na mente do leitor, a partir do que é só ar e ideia.

Talvez eu me impressione mais porque cheguei aos quadrinhos com mais idade. Sinto que é um privilégio poder criar desse jeito. Creio que seja a única coisa que eu quero fazer pelo resto da vida.

 

Por fim, fui atrás da pessoa que Barry Windsor-Smith citou nominalmente: Walt Simonson (Thor, Ragnarok, Orion). Setenta e quatro anos, cinquenta de carreira, uma pilha de prêmios, sorrindo em qualquer foto, ele seria o exemplo de alegria em desenhar?

Eu me divirto escrevendo e desenhando. Dito isso, não fico rindo o tempo todo. Tem dias que são bons, outros que não, e os artistas encaram dificuldades que precisam superar. Já tive minhas lutas. É só perguntar pra minha esposa. Tem vezes que é mais divertido TER FEITO do que FAZER.

Mas cada artista tem que achar seu jeito de chegar onde quer. Seja lá o que o Barry faça ou precise para chegar na meta, o que ele faz é brilhante. E isso é uma recompensa para todos nós que amamos suas histórias e sua arte.

 

*

Na mesma entrevista, Barry Windsor-Smith diz que está “esgotado” depois de Monsters. Talvez publique um livro sobre o processo da graphic novel, que use as páginas que ele deixou de fora. Mas só. Que não esperem mais quadrinhos da sua mão.

Respeito a resposta, mas espero que tenha sido apenas uma entrevista num dia de mau humor.

 

***

Érico Assis é tradutor e jornalista. Mora em Pelotas e contribui mensalmente com o Blog com textos sobre histórias em quadrinhos. É autor de Balões de Pensamento (Balão Editorial), uma coletânea de textos lançados aqui no Blog. Traduziu para a Quadrinhos na Cia., entre outros, Minha coisa favorita é monstro e Sapienshttp://ericoassis.com.br/

Érico Assis

Érico Assis é tradutor e jornalista. Mora em Pelotas e contribui mensalmente com o Blog com textos sobre histórias em quadrinhos. É autor de Balões de Pensamento (Balão Editorial), uma coletânea de textos lançados aqui no Blog. Traduziu para a Quadrinhos na Cia., entre outros, Minha coisa favorita é monstro e Sapiens. http://ericoassis.com.br/

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