Capitães Colômbia

21/06/2021

 

O meme veio de um grupo no Facebook. A postagem que ele recortou veio de uma conta no Instagram, imagens.historia. Quanto à foto que incitou a discussão, é de César Melgarejo, fotojornalista do El Tiempo, e foi tirada em 22 de maio de 2021 durante manifestações contra o governo colombiano em Bogotá.

A discussão nos comentários não me desceu. Nem a legenda que ganhou nos grupos de quadrinhos. Claro que é um meme e não dá para fazer teses no espaço de um meme, mas falta pensar algumas coisas que considero importantes.

Vamos lá: Capitão América é aquele super-herói dos quadrinhos, personagem da Marvel Comics. Foi criado no meio da Segunda Guerra Mundial e está fazendo 80 anos. O “América” no nome do Capitão não engloba a Colômbia, por mais que alguém vá insistir que América é o continente. Ele veste cores e traços da bandeira dos Estados Unidos da América.

Mas Capitão América usa um escudo, tal como o manifestante da foto. E Capitão América já usou o escudo para se defender de vários tanques. De nazistas, de nações inimigas, de supervilão, inclusive das forças armadas do país cuja bandeira ele veste. Capitão já discordou do governo, já se bateu com militares, com polícia e com todas as forças legítimas da lei e da ordem, das quais ele nem sempre faz parte. (Isso varia.) Também já foi soldado, seguiu ordens de generais e presidentes, lutou junto com as forças legítimas da lei e da ordem, incluindo a polícia. (Isso varia.)

Tudo aconteceu nos quadrinhos. Também em filmes. Capitão América não existe. É uma ideia, é histórias. O manifestante da foto, até onde a foto for real, existe.

Quadrinhos e filmes como os do Capitão América contam histórias que não fazem parte da História, mas baseiam-se em acontecimentos históricos que aconteceram, vestem bandeiras de países que existem e usam forças armadas, policiais e presidentes reais de coadjuvantes. As histórias não são reais, mas têm um pé na realidade. São histórias de heróis que partem do nosso mundo para contar um mundo possível.

Para contar um mundo possível, estas histórias não só partem do nosso, mas também vendem esperança. O herói tem que superar algum desafio que, quanto mais intransponível pareça, melhor. Capitão América sempre supera o desafio da vez, mas boas histórias convencem o leitor até o clímax de que, desta vez, não vai ter como. Aí, o Capitão vai lá e supera. A esperança vence, sempre vence. Capitão América pode até morrer para vencer o desafio da vez, mas volta. Sempre volta.

Como eu disse, o Capitão já lutou ao lado das forças armadas dos EUA e contra as forças armadas dos EUA, contra a polícia e ao lado da polícia (se não me engano, ele até já foi guardinha de rua na identidade civil), contra o governo e ao lado do governo. Tem aquela história famosa na época do impeachment do Nixon em que ele derruba um alter ego do Nixon. Assim como tem Capitão América que bate continência para George W. Bush.

Isto acontece, é claro, em histórias que não existem. Na História que existe, o uniforme do Capitão América vestiu imagens de Donald Trump e manifestantes que invadiram o Capitólio dos EUA em 6 de janeiro deste ano e um honconguês que foi preso por gritar “Libertem Hong Kong, a revolução dos nossos tempos” em setembro passado.

As histórias de heróis vendem esperança. A esperança de um leitor não é a de outro. Quem vende as histórias de Capitão América não quer acabar com esperanças de ninguém, pois é a única coisa que eles têm para vender. Às vezes estas histórias podem tender para agradar quem está vencendo a História – ou para agradar quem compra mais das histórias. Até dá para dizer que é mais fácil vender histórias de esperança se elas falam de solidariedade, de inclusão e, se você quiser chamar assim, “de esquerda”. Mas vende-se também, às vezes na mesma página, imperialismo, tradição, liberalismo e punitivismo. Assim como todos os lados na rosa dos ventos da política. Histórias do Capitão América vendem esperança não só para quem sai na rua contra o governo nem só para quem apoia guerra ao inimigo. Elas vendem só esperança, sem discriminar para quem.

Não quer dizer que Capitão América seja apolítico, nem que quem vende Capitão América não tenha intenções políticas. Pelo contrário: criar e vender um personagem que não tem posicionamento evidente também é um posicionamento político. Capitão América não é uma contradição ambulante, nem está em cima do muro. Ele é uma ideia de herói para quem quiser um herói. Ele está dos dois lados do muro.

No caso da foto, quem está dentro do tanque e quem está na frente do tanque? O Capitão América. Ou melhor: duas pessoas que podem se considerar Capitães Américas. Capitães Colômbia, se preferirem. Nenhum deles estaria errado quanto à inspiração.

Quanto à última legenda, sobre o “fã de nicho de mercado” e o “leitor de verdade de quadrinhos”, dá para dizer, em primeiro lugar, que não existe nem só um nem só dois tipos de leitores de quadrinhos. Existe um mundo de leitores, e ninguém nesse mundo respira só quadrinhos – respira e vive um mundo de referências que vai levar a entender o Capitão América de um jeito ou de outro.

Em segundo lugar, qualquer leitor de Capitão América é ao mesmo tempo leitor “de nicho” e leitor “de verdade”. Aliás, aí está uma diferença elementar entre nós e o Capitão: eu e você não somos histórias, nós fazemos parte da História. Não são as duas únicas opções – e podemos ser influenciados por Capitães Américas ou não – mas temos que escolher entre ficar dentro do tanque ou na frente do tanque.

Érico Assis

Érico Assis é tradutor e jornalista. Mora em Pelotas e contribui mensalmente com o Blog com textos sobre histórias em quadrinhos. É autor de Balões de Pensamento (Balão Editorial), uma coletânea de textos lançados aqui no Blog. Traduziu para a Quadrinhos na Cia., entre outros, Minha coisa favorita é monstro e Sapiens. http://ericoassis.com.br/

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