A tribo do iPhone

22/12/2021

Foto: Acampamento Luta Pela Vida por @mvelos2 / @midianinja

 

Meningô Mekragnotire me liga no WhatsApp: está em uma aldeia da Terra Indígena Menkragnoti, Pará, e precisa de ajuda. Quer saber o que está acontecendo naquele momento com a votação do Marco Temporal no STF para explicar para seu povo. Mando áudios dizendo que o ministro Alexandre de Moraes acabara de devolver o processo ao plenário do Supremo após um pedido de vista, mas o julgamento ainda não fora retomado. E que, enquanto isso, os ruralistas no Congresso tentavam passar um projeto de lei instituindo o marco temporal e potencialmente acabando de vez com as demarcações no Brasil. Meningô põe os áudios para tocar no celular e traduz minhas apressadas explanações para o kayapó.

A aldeia Kubenkokre fica no miolo de um território maior que a Bélgica, entre as bacias do Xingu e do Tapajós, e a bons 300 quilômetros da aldeia de Meningô, que mora no extremo oeste da terra Menkragnoti. É uma ilha cercada de floresta virgem por todos os lados, no maior bloco remanescente de mata do sudoeste paraense. Ali é um dos vários lugares onde se desenrola o maior milagre para os povos indígenas brasileiros desde a Constituição de 1988: o wi-fi.

As redes sociais destruíram a civilização e acabaram com a democracia. Mas sua miserável existência é em parte redimida por permitir aos índios não apenas conectar-se entre eles, mas também ocupar espaços no mundo dos não-indígenas, que em tudo lhes é hostil. Pela internet, índios trocam informações, vendem sua produção rural e florestal, monitoram invasões em suas terras e se articulam. Pelo WhatsApp eles combinaram a maior manifestação indígena da história do país, o Acampamento Luta pela Vida, que colocou 6.000 pessoas em Brasília para acompanhar a votação do Marco Temporal no Supremo (suspensa pelo tal pedido de vista de Moraes) em agosto de 2021.

O racista abjeto que um dia ocupou o Ministério do Meio Ambiente tentou fazer troça ao publicar em seu perfil no Twitter uma foto de índios com celular em Brasília, dizendo “recebemos a visita da tribo do iPhone”. Querendo ofender, prestou-lhes na verdade uma homenagem.

A conectividade e o uso de smartphones culminam um ciclo de libertação dos povos indígenas que começou com a sua inclusão maciça na educação superior, iniciada no governo Lula. Se nos anos 1980 e 1990 era preciso contar com o talento individual de lideranças como o kayapó Paulinho Paiakan, com seu português perfeito, o militante kaiowá Marçal de Souza Tupã’í, o transcendente Davi Yanomami, o popstar Raoni Metyktire e outros que penetraram o universo dos não-indígenas e foram “adotados” por eles, hoje a situação é outra. Índios com pós-graduação deixaram de ser um exotismo. Hoje eles falam com a própria voz, sem intermediação da Funai ou de organizações indigenistas. E, como milhares de moradores não-índios do Brasil rural, frequentemente dividem residência entre a aldeia e a cidade.

Minha bolha nas redes sociais é inundada por arrobas como André Baniwa, Karibuxi, Mayalú Txucarramãe (neta de Raoni), Alessandra Korap, Célia Xacriabá e a influencer Alice Pataxó. Os jovens usam em seu perfil o emoji do arco e flecha, na mais perfeita apropriação antropofágica dos instrumentos do capitalismo. Há alguns anos, a jornalista Letícia Leite, então no Instituto Socioambiental, criou um podcast distribuído pelo WhatsApp para índios do país inteiro, o Copiô Parente, cujo sucesso em levar a eles semanalmente as notícias de Brasília é testemunho do tamanho da “tribo do iPhone”.

Foram os xapiri da banda larga que permitiram aos yanomâmi denunciar, virtualmente em tempo real, os ataques a tiros a aldeias feitos por garimpeiros, estimulados pelo governo Bolsonaro a invadir maciçamente suas terras, em Roraima. E aos munduruku fazer correrem o mundo as imagens do reide à aldeia Fazenda Tapajós na qual garimpeiros queimaram a casa da liderança Maria Leusa Kabá. O smartphone tornou os crimes contra indígenas mais visíveis. Em qualquer outro governo estaria faltando cadeia para os criminosos. No atual eles pegam carona em avião da FAB para se reunir com ministro em Brasília.

Foi também pela internet que o mundo inteiro pôde ver uma indígena brasileira discursando diante dos maiores líderes do planeta. Aconteceu em 1o de novembro, na abertura da COP26, em Glasgow, Escócia. A estudante Txai Suruí, 24, falou na cúpula de líderes da COP, para Joe Biden, Angela Merkel e António Guterres. O chefe de governo do Brasil preferiu não comparecer, a fim de prestar uma homenagem a si próprio no interior da Itália, cercado de viúvas de Mussolini. Aos líderes globais, a única voz brasileira no encontro falou justamente sobre a situação dramática dos povos indígenas brasileiros, pelo que foi intimidada ao fim da fala por Vicente Vicentin Aguilar, funcionário do Ministério do Meio Ambiente do Brasil. Mesmo com as dificuldades criadas pelo regime e com os problemas de custo e acesso, a COP26 teve a maior presença de índios brasileiros de toda a história das conferências de clima: cerca de 50 pessoas.

O combo ensino superior + conectividade levou os índios a um patamar inédito e sem volta de diálogo e ocupação de espaços públicos. A reação do racismo ancestral brasileiro está vindo na mesma medida. O governo Bolsonaro é um sintoma disso. A maneira como os territórios nativos serão tratados na campanha eleitoral de 2022 determinará, em não pouca medida, o futuro do edifício democrático construído em 1988. A tribo do iPhone estará stalkeando os candidatos. E postando.

Claudio Angelo

Claudio Angelo nasceu em Salvador, em 1975. Foi editor de ciência do jornal Folha de S.Paulo de 2004 a 2010 e colaborou em publicações como Nature, Scientific American e Época. Foi bolsista Knight de jornalismo científico no MIT, nos Estados Unidos. Lançou, em 2016, pela Companhia das Letras o livro A espiral da morte, sobre os efeitos do aquecimento global, ganhador do Prêmio Jabuti na categoria Ciências da Natureza, Meio Ambiente e Matemática.

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