Sexualidade e infância: informação é proteção

06/09/2018

 

Canções que falam sobre a “novinha”, programas de TV apresentando crianças erotizadas, propagandas de mulheres vestidas como menininhas. Esses são alguns dos indícios das chamadas “adultização” e “pedofilização da infância, fenômenos facilmente observados de forma ampla nos meios de comunicação. Num contexto em que as meninas são largamente afetadas pela representação de seus corpos como objeto de desejo, é ainda mais alarmante constatar que questões ligadas à sexualidade ainda hoje se revelam como tabu. E por quê?

(Leia também: Quem tem medo de falar sobre sexo?)

“Há um despreparo e uma falta de conhecimento para discutir o tema, em especial com as crianças. Tal dificuldade vem de uma tradição religiosa que colocou o sexo como pecado e o corpo como potencialmente perigoso, acionando assim um certo pânico moral. Curiosamente, esta mesma tradição religiosa acoberta casos de pedofilia, de estupro e outras formas de violência contra mulheres e crianças!”, responde a pesquisadora Jane Felipe de Souza, doutora em Educação que integra o Grupo de Estudos de Educação e Relações de Gênero da UFRGS.

 

Ilustração Marcelo Tolentino

 

A pesquisadora explica o que chama de “pedofilização” da sociedade: ao mesmo tempo que leis são criadas para proteger crianças e adolescentes, seus corpos são colocados como objetos de desejo e de consumo, podendo inclusive “interferir nas formas de se vestir, de se maquiar, de andar, de se comportar das meninas”. Isso se complementa quando o universo considerado “infantil” se torna fetiche entre os adultos, e mulheres passam a se fantasiar como crianças para serem associadas à inocência, que se torna método de sedução. Ações como essa impregnam toda uma cultura, naturalizando o assédio e a “cultura do estupro”.

É por isso que defende que o debate sobre gênero e sexualidade seja feito desde cedo nas escolas, na contramão de discursos cada vez mais proferidos por grupos conservadores. Quando a maior parte dos casos de abuso sexual são praticados contra as crianças e dentro de casa, como é o caso do Brasil, é dever da escola informar seus alunos sobre o tema. Informação é uma forma de proteção.

A seguir, confira a entrevista com a pesquisadora Jane Felipe de Souza.

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Tratar de sexualidade com crianças é um tema tabu ainda hoje no Brasil. Como você explica esse medo que os adultos têm de falar sobre sexo com os mais jovens? Como mudar esse cenário? Como os tabus mudam conforme a realidade, há exemplos de países em que a sexualidade não é tabu e abordada de forma especial com as crianças e os jovens?

Jane Felipe de Souza – Fico realmente impressionada com a dificuldade que as famílias – e também as escolas – têm em tratar o tema da sexualidade, afinal, somos TODOS produto de um encontro sexual. Portanto, o tema não deveria ser um problema. Há um despreparo e uma falta de conhecimento para discutir o tema, em especial com as crianças. Tal dificuldade vem de uma tradição religiosa que colocou o sexo como pecado e o corpo como potencialmente perigoso, acionando assim um certo pânico moral. Curiosamente, essa mesma tradição religiosa acoberta casos de pedofilia, de estupro e outras formas de violência contra mulheres e crianças! Um estudo comparativo feito pela Federação Internacional de Planejamento Familiar mostrou que, em relação a outros países da América Latina – Argentina, Colômbia, Chile e México –, o Brasil fica em último lugar quando se trata de discutir tal temática, ainda que de forma introdutória, no currículo escolar. O estudo destacou aspectos relacionados ao planejamento familiar e ao acesso das mulheres a métodos contraceptivos e concluiu que, em todos os países, a forte influência religiosa pode afetar o desenvolvimento de políticas relacionadas a contraceptivos, mas que, no Brasil, isso ocorre de forma mais intensa.

Há países que tratam o tema de forma tranquila, sem rodeios, inclusive fazendo constar no currículo escolar desde os 5 ou 6 anos, como é o caso da Bélgica, da França, da Irlanda, da Suécia e de Portugal. Nesses países, a educação sexual é discutida no currículo de forma transversal, a partir das diversas disciplinas que o compõem. Isso significa dizer que os temas implicados na educação sexual não ficam restritos à disciplina de biologia, mas podem ser discutidos em outras áreas do conhecimento.

No Brasil, os Parâmetros Curriculares Nacionais (1998) também trouxeram a perspectiva de temas transversais. Em sua apresentação, o documento diz: "Ao tratar do tema Orientação Sexual, busca-se considerar a sexualidade como algo inerente à vida e à saúde, que se expressa no ser humano, do nascimento até a morte. Relaciona-se com o direito ao prazer e ao exercício da sexualidade com responsabilidade. Engloba as relações de gênero, o respeito a si mesmo e ao outro e à diversidade de crenças, valores e expressões culturais existentes numa sociedade democrática e pluralista. Inclui a importância da prevenção das doenças sexualmente transmissíveis/Aids e da gravidez indesejada na adolescência, entre outras questões polêmicas. Pretende contribuir para a superação de tabus e preconceitos ainda arraigados no contexto sociocultural brasileiro".

  

Você trabalha com o conceito da "pedofilização" na contemporaneidade. Como isso se dissemina na mídia e como a escola pode contribuir para o combate a esse fenômeno?

Jane Felipe de Souza – Quando comecei a usar esse conceito em 2002, tive a intenção de discutir a contradição existente em nossa sociedade (e em muitas outras também), pois, ao mesmo tempo em que cria leis para proteger as crianças e adolescentes, as incentiva e as visibiliza como corpos desejáveis eroticamente, a partir da perspectiva de espetacularização do corpo e da sexualidade, pautadas em uma lógica de consumo. Desse modo, o conceito de “pedofilização” (que não é sinônimo de pedofilia) se refere à exposição dos corpos infantis, colocados como objetos de desejo e consumo, podendo interferir nas formas de se vestir, de se maquiar, de andar, de se comportar das meninas. O segundo aspecto do conceito refere-se à utilização do chamado universo “infantil” como potencialmente erótico, quando a infância é utilizada como fetiche para a temática de sedução, ou seja, temos aqui muitas peças publicitárias e editoriais de moda que colocam as mulheres fantasiadas de meninas, associando a imagem da infância à ingenuidade como forma de sedução. Desse modo, tenho assumido o conceito de “pedofilização” como violência, uma vez que ele funciona como uma espécie de preparação para naturalizar o assédio e a cultura do estupro. A escola pode contribuir para esse debate, discutindo as expectativas de gênero que são impostas culturalmente para meninas e meninos, homens e mulheres. Tal debate envolve corpo, gênero, sexualidade e consumo.

 

Ao mesmo tempo em que se observa essa “pedofilização”, há uma "adultização" das crianças, em especial meninas. Mesmo que a escola deixe de abordar esse assunto, como é o desejo de alguns grupos, as crianças podem se ver livres desse ambiente sexualizado?

Jane Felipe de Souza – Não há como escapar dessa perspectiva tão sexualizada na nossa cultura. É um grande equívoco pensar que não discutindo esses temas na escola a criança não será atingida por esses temas, que estão presentes no cotidiano, veiculados através de inúmeros artefatos culturais – músicas, filmes, programas de TV etc. Vivemos um fenômeno de espetacularização do corpo e da sexualidade, em que a erotização dos corpos ocupa um papel de destaque, em especial se pensarmos nos corpos femininos desde a mais tenra infância. No entanto, os diversos grupos feministas das mais variadas correntes teóricas têm problematizado essa questão de uma forma muito potente. A internet tem propiciado grupos de discussão e redes de apoio que têm pautado vários temas ligados ao corpo, à sexualidade e às expectativas de gênero.

 

Boa parte dos casos de abuso sexual com crianças acontece por parte de familiares e pessoas próximas à família. Deixar o assunto para a esfera privada é suficiente? Como você vê a questão?

Jane Felipe de Souza – A escola é um local de ampliação do conhecimento e todo e qualquer tema deve ser discutido, inclusive aqueles considerados mais sensíveis, como morte, sexualidade, violência. Muitas famílias não se sentem confortáveis e devidamente preparadas para orientar sua prole quanto ao tema da violência/abuso sexual. Ao sonegar informação, deixam de proteger as crianças. Se as famílias não conseguem cumprir seu papel de proteger e orientar, cabe à escola contribuir nesse debate (é importante ressaltar que o Atlas da Violência 2018 mostra que a maioria das violências cometidas contra crianças ocorre dentro da própria casa, perpetradas por pessoas que deveriam ser as primeiras protegê-las – pais e parentes ou amigos da família). É preciso lembrar que a proteção às crianças não é da ordem do privado, especialmente quando essa proteção falha, demonstrando assim uma total incompetência e irresponsabilidade da família para desempenhar tal tarefa.

Há ainda no senso comum uma ideia muito limitada quanto ao papel que cabe à escola desempenhar. Para uma parcela da população, a escola serve apenas para ensinar a ler, escrever, contar e transmitir conteúdos específicos (física, biologia etc.). Esquecem que também é tarefa da escola produzir cidadãos críticos e éticos, dentro dos princípios dos Direitos Humanos fundamentais. Em especial quando se trata das escolas infantis, há um profundo desconhecimento a respeito dos campos de experiência, já que para essa faixa etária (0 a 6 anos) não se trabalha com áreas do conhecimento tal qual ela está estruturada nos anos escolares iniciais.

 

O período da infância também é o período de construção de gêneros, papéis sociais femininos ou masculinos. Como ensinar as crianças a lidar com essas exigências, que, por mais aberta e acolhedora que seja a escola, podem surgir em outros ambientes sociais?

Jane Felipe de Souza – É importante que as famílias, docentes e crianças se deem conta de que nossos comportamentos não são tão naturais como alguns gostariam que fossem, mas são tramados a partir das expectativas históricas, sociais e culturais, que vão se transformando ao longo do tempo e podem variar consideravelmente de cultura para cultura. Os inúmeros discursos e instituições presentes na cultura (a saber: discurso religioso, médico/científico, jurídico, pedagógico, midiático etc.) nos constituem, procurando pautar as nossas condutas. Por exemplo, cem anos atrás as mulheres não tinham direito ao voto, ao estudo universitário, ao trabalho fora de casa (precisavam inclusive de autorização dos maridos para o exercício profissional). Homens também não usavam brincos ou produtos de beleza, como observamos hoje na cultura ocidental. Quando falamos em scripts de gênero, nos referimos a essas expectativas que são diariamente acionadas das mais variadas formas para que nos comportemos de acordo com  o esperado, em função do sexo biológico, ou seja, se nascemos com um pênis ou uma vulva, as expectativas em torno desses corpos são imediatamente acionadas e a partir de então se constroem as feminilidades e as masculinidades. Se os sujeitos não correspondem a tais expectativas, podem ser vistos com desconfiança ou desprezo. A escola e as famílias devem ensinar o respeito e a empatia, entendendo que toda e qualquer diferença não pode justificar a desigualdade.

 

Você diz na sua pesquisa que a educação sexual tem sido mais trabalhada em sala de aula a partir da última década do século XX, ou seja, nos anos 1990. Como ela evoluiu desde então? Como você avalia esse caminho?

Jane Felipe de Souza – Os PCNs foram um marco importante, propondo a discussão do tema gênero e sexualidade, mas é importante salientar que a educação sexual não é um conteúdo obrigatório nas escolas brasileiras. Além disso, muitos/as professores/as não se sentem preparados/as para discutir o tema, pois alegam não terem recebido formação para tal. Outro problema é enfrentar a resistência da família ao discutir o tema na escola, pois algumas delas acham que o fato de falar sobre sexualidade poderia incentivar as crianças a práticas sexuais. Defensores da Escola Sem Partido têm disseminado um pânico moral em relação às discussões de gênero e sexualidade, criando enormes confusões conceituais e desserviço em relação a esses temas. Nos últimos anos, houve ações importantes, como o Escola sem Homofobia, projeto de formação de professores para temas referentes a direitos LGBTQI+. O que temos agora é uma perseguição às professoras e escolas que procuram trabalhar com essas temáticas, assim como uma espécie de inquisição a autores e livros, artistas, museus. No entanto, cabe à escola discutir todo e qualquer assunto que as crianças tragam, pois ela tem compromisso com a ampliação do conhecimento e com a formação de sujeitos éticos e respeitosos.

 

Recentemente o livro Aparelho Sexual e Cia, de Hélène Bruller e Zep, entrou mais uma vez numa polêmica envolvendo o presidenciável Jair Bolsonaro, que o denominou como "pornográfico". Conhece a obra? Como reflete sobre o caso? E poderia indicar outros materiais de qualidade para crianças e educadores sobre sexualidade?

Jane Felipe de Souza – Lamentavelmente, o nível de grande parte dos candidatos, em todas as esferas – municipal, estadual e federal – é vergonhoso, pois nos mostra um desconhecimento e uma falta de rigor impressionantes. O que se nota é a falta de um staff minimamente competente para melhor assessorar e embasar as falas dos candidatos. Sair acusando autores/as de livros, editoras e o MEC, mentindo descaradamente mereceria uma punição da justiça eleitoral. Vejamos: o livro em questão [lançado no Brasil em 2007] é recomendado para crianças maiores (a partir de 11 anos), embora o estabelecimento de faixa etária seja um critério discutível, pois depende de cada criança e do modo como ela é educada, com ou sem acesso a determinadas informações.

Cabe ainda referir que o livro em questão não foi comprado pelo MEC, muito menos distribuído nas escolas e em nenhum momento fez parte do material produzido pelo projeto Escola sem Homofobia (errônea e maldosamente conhecido como ‘kit gay’). É preciso que se diga que tal material (do qual o livro Aparelho Sexual e Cia. não faz parte) foi vetado pelo Governo Dilma em 2011. Em entrevista concedida ao El País, a autoria do livro comentou que  "a questão do livro não é dizer às crianças que a sexualidade é algo que diz respeito a elas hoje, mas sim dizer-lhes que a sexualidade será parte da sua vida adulta; e que assimilá-la de forma serena é a melhor maneira de vivê-la como algo saudável". Simples assim.

Acho curioso a falta de rigor para definir o que é pornográfico por parte dessa gente. Para eles, basta falar em corpo que a coisa já vira pornografia! Acho interessante pensar, como já disseram outros autores, que a pornografia é sempre o sexo ou o erotismo dos outros. Nossas práticas nunca são vistas como pornográficas, ao que parece. Especificamente sobre o tema da pornografia, recomendo a leitura do livro de Lynn Hunt (1999) A invenção da pornografia, assim como a obra de Michel Foucault (2015), História da Sexualidade: a vontade de saber. Há ainda o livro de Dominique Maingueneau, O discurso pornográfico (2010), e outro livro básico escrito por Eliane Moraes e Sandra Lapeiz, intitulado O que é Pornografia (1984).

Quanto aos livros voltados para crianças que tematizam a sexualidade eu recomendaria: 1) Educação sexual na sala de aula - Relações de gênero, orientação sexual e igualdade étnico-racial numa proposta de respeito às diferenças (editora Autêntica), de Jimena Furlani;  2) Vamos falar sobre sexo (editora Martins Fontes), de Robie Harris;  3) A minha primeira coleção de iniciação sexual e afetiva (editora Impala), de Caterina Candia. É importante lembrar sempre que a informação pode nos proteger e nos livrar da ignorância.

 

 

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