Como se forma a personalidade da criança - e o cuidado em não rotular

23/06/2023

Quem é você? Uma pergunta com três palavras, mas que pode ter milhares de respostas e levar adultos a uma crise existencial. Não é fácil responder quem somos e pensar em como nos tornamos o que somos. Além disso, tudo pode se transformar, muitas e muitas vezes. A resposta para a pergunta pode ser uma hoje e outra, completamente diferente, em alguns anos. Haja filosofia - e terapia. Mas uma coisa é certa: tudo começa na infância, quando nossa personalidade se desenvolve de maneira intensa. Por isso, nessa fase, o papel de pais e educadores e a maneira como a criança é guiada e estimulada faz toda a diferença em quem ela vai se tornar na vida adulta e também para a compreensão de quem ela é. 

O reflexo de Henriqueta, Marion Kadi

É na infância que o ser humano começa a se perceber como sujeito, observando seu comportamento, suas emoções, seus pensamentos, e tentando buscar classificações para si. É na infância também que começamos a ouvir dos outros - pais, familiares, professores - quem somos, com rótulos como "meu filho é tímido", "minha sobrinha é muito agitada", "este aluno é muito comportado". E isso pode gerar alguns conflitos de identificação, já que geralmente nossa personalidade é multifacetada e tentar se enquadrar em apenas uma forma de agir ou de estar no mundo nos limita a ser quem somos na nossa totalidade. Esse é o mote, por exemplo, do livro infantil ilustrado  O reflexo de Henriqueta, de Marion Kadi, lançado pela Pequena Zahar.

Na história, Henriqueta tem um comportamento mais tímido. No entanto, um dia, ela encontra numa poça d'água um reflexo de um leão bem espevitado, que muda completamente a sua forma de agir. Ela se transforma em uma pessoa diferente, quase selvagem. Mas, depois de se divertir bastante, em certo momento, sente saudade de como era. E agora? Como recuperar a sua essência? Dá para re-absorvê-la sem, no entanto, precisar se despedir dos traços que o reflexo do leão lhe conferia? É esse equilíbrio que Henriqueta vai ter de encontrar.

A história exemplifica um pouco como somos seres complexos, mutantes e como nossos traços de personalidade e de identidade vão se formando ao longo da vida, mas, sobretudo, que há uma essência e ela pode estar ali conosco desde o comecinho. 

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A construção da personalidade infantil

“A personalidade se desenvolve ao longo de todo ciclo vital, mas de forma mais intensa na infância, adolescência e juventude, com efeitos para toda a vida”, explica a psicoterapeuta Natália Orti, professora na The School of Life. “Não quer dizer que as pessoas não possam mudar a maneira de se comportar, pensar e sentir ao longo da vida, e sim que os primeiros anos têm um papel fundamental na construção e no desenvolvimento do que será nosso padrão inicial e mais automático diante dos eventos da vida”, aponta.

Mas o que é personalidade? Segundo ela, é o nome que damos ao conjunto de traços, padrões ou tendências de comportamento na relação com nós mesmos, com as outras pessoas e com o mundo. “De forma geral, é um produto complexo da interação recíproca entre temperamento (uma inclinação biologicamente determinada para reagir de formas específicas a diferentes estímulos), das relações familiares (especialmente na infância e adolescência), da cultura e das condições socioeconômicas às quais cada um de nós é exposto”, descreve. 

O reflexo de Henriqueta, Marion Kadi

Personalidade x identidade: entenda as diferenças

É importante ressaltar que a personalidade é um pouco diferente da identidade, que é o conjunto de nomeações e narrativas que desenvolvemos para definir quem somos. Portanto, também é variável ao longo da vida e recebe influências expressivas da capacidade individual de se observar e de se descrever, além dos valores pessoais, familiares e culturais. Resumindo de forma simples: identidade é como a própria pessoa se vê e se define - o que tem muita influência de quem está ao redor, além do ambiente em que cresceu e se insere. 

Embora os pais, professores, familiares e qualquer outra pessoa que conviva com a criança não tenham “controle” ou sejam capazes de determinar como essa criança vai ser conforme atingir a idade adulta, eles podem, sim, influenciar, tanto a personalidade, como a identidade - no sentido positivo ou negativo. E essa influência não acontece diante de um só ato ou de acontecimentos específicos, mas de todo o conjunto e, sobretudo, do que ensinamos e valorizamos e de tudo o que está nas entrelinhas. 

 

Traço de personalidade ou apenas uma fase? 

A personalidade se desenvolve no decorrer da infância, mas nada é definitivo. Somos seres complexos e, de acordo com vivências, experiências e percepções, é normal e esperado que a gente mude. O jeito de se comportar, de reagir e de estar no mundo vai se transformando ao longo de toda a vida. Por isso, não faz o menor sentido “fechar o leque”, dizendo que uma criança é de “determinado modo” ou “tem uma personalidade X”. Pode ser que você já tenha repetido isso sobre seu filho e é muito provável que tenha ouvido e registrado muitas afirmações parecidas desde que você era uma criança: “Ah, mas ele é muito tímido” ou “Ela é muito agitada, não consegue ficar muito tempo parada” ou ainda “Nossa, ele é muito dramático, chora por tudo”. Com infinitas variações. 

Para Natália, um ponto importante é lembrar que existem aspectos de comportamento ligados à idade ou à fase do desenvolvimento, ligados às tensões, aprendizagens e aquisições de cada período. Já ouviu falar da fase dos “terrible two”? Por volta dos dois anos, é comum que as crianças tenham mais crises de birra por motivos que, para nós, adultos, são incompreensíveis, mas que estão ligadas à imaturidade do cérebro nessa faixa etária. Então, quando um pequeno de 2 ou 3 anos se joga no chão do supermercado por querer um biscoito específico, não faz o menor sentido rotulá-lo de “teimoso”, de “mal-educado” ou “nervoso”. É uma reação esperada. Aos poucos, ele vai aprender a lidar melhor com as emoções, não é um traço de sua personalidade. O mesmo acontece com a timidez na primeira infância. 

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Junto das fases, existem, é claro, as diferenças mesmo, que são únicas de cada ser humano e começam a aparecer ainda na infância. Elas são inerentes e, ao mesmo tempo, estão relacionadas ao repertório de interação dos pais e cuidadores principais. “Não há uma receita ou um ‘gabarito’ em que se afirme com certeza o que há de esperado para a fase de cada criança e o que é a expressão individual. Nesse sentido, é importante observar a criança em relação a outras da mesma fase, mas também em relação a si mesma, em momentos anteriores do desenvolvimento”, diz a psicoterapeuta. 

O reflexo de Henriqueta, Marion Kadi

 

Cuidado para não rotular as crianças

O ser humano tem uma certa tendência a nomear tudo. Segundo Natália, é uma necessidade comum, para ajudar na comunicação e gerar certa previsibilidade sobre o que acontece. Mas é preciso tomar cuidado para não rotular as crianças. “Apesar de legítima a necessidade de usar a linguagem para lidar com o fenômeno que se apresenta, há muitos riscos de usar afirmações categóricas ou definir o que supostamente seja a personalidade ou mesmo a identidade de uma criança”, afirma. Ela lembra que, como o desenvolvimento está em franca expansão, afirmações ou classificações muito fechadas podem limitar o olhar do adulto sobre a criança. Assim, podemos passar a ignorar comportamentos diferentes daquele estereótipo que adotamos ou até a valorizar de forma desproporcional aqueles que se encaixam nele. 

A própria criança aprende a se descrever e se identificar com tais rótulos, aumentando a chance de se comportar de maneira a confirmar a descrição, como se fosse uma ‘profecia auto-realizadora’ ou o desenvolvimento de uma relação muito fusionada com as descrições dos adultos cuidadores e das expectativas deles sobre como ela deveria ser.
(Natália Orti, psicoterapeuta)

A necessidade de atribuir esses rótulos está, sim, conectada às expectativas que temos sobre as crianças e também aos temas a que somos mais sensíveis, o que, por sua vez, pode se relacionar com a maneira com que nós, adultos, fomos criados e com a cultura parental vigente. 

O reflexo de Henriqueta, Marion Kadi

Rotular costuma ser problemático porque limita nosso olhar e expectativas com relação àquela criança, e trata como ‘cristalizado’ algo que está ou poderia estar em movimento, em desenvolvimento. Isso interfere em como a criança vai se identificar, se perceber e, talvez, se comportar.
(Natália Orti, psicoterapeuta)

Descrever a ação ou o comportamento da criança e relacionar ao contexto e às consequências tende a ser mais informativo, produtivo e condizente com a possibilidade de mudança. “Por exemplo, em vez de dizer ‘Você é muito birrento’, podemos dizer ‘Filho, parece que você está com raiva porque não pode fazer isso que você quer agora. Você está gritando e jogando as coisas no chão. Eu entendo que isso seja difícil e que você esteja sentindo raiva. Mas jogando as coisas no chão, elas se quebram. Está difícil conversar com você gritando assim’”, sugere a psicoterapeuta.

Além disso, é possível oferecer e testar formas de ajudar a criança a regular a experiência de raiva na situação de frustração e oferecer exemplos de comportamentos alternativos. “Para evitar as armadilhas de rotular, devemos nos dedicar mais a aprender sobre desenvolvimento humano, sobre estratégias de educação respeitosa e comunicação não-violenta”, aponta a especialista. 

 

Quando a criança precisa de ajuda

Sejam elas relacionadas à fase do desenvolvimento, sejam à expressão individual, em certos casos, as características comportamentais podem prejudicar a criança. Nessas situações, os adultos podem e devem ajudá-las a navegar pela questão, entendendo a origem e até buscando a ajuda profissional, quando necessário. Isso pode acontecer quando há traços de timidez que atrapalham demais a socialização, por exemplo, ou se o comportamento disperso e desatento influencia negativamente o desempenho escolar, entre outros.

Quando o comportamento atrapalha a vida da criança é importante buscar uma avaliação individualizada. “É um bom caminho para que a identificação da dificuldade em questão e a intervenção sejam coerentes com o que se espera enquanto desenvolvimento humano e com uma ética e respeito à individualidade, ritmo e particularidades de cada criança ou adolescente”, indica Natália.

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Cada um de nós é um ser complexo e mutante. Quando temos liberdade, na infância, para aprender a nos expressar e compreender do que gostamos, como reagimos, do que precisamos, sem rótulos e sem amarras, fica mais fácil entender quem somos e, assim, trilhar os caminhos da vida sendo gentis e genuínos com nós mesmos e com o mundo que nos cerca. 

 

Mais livros para inspirar conversas sobre identidade e personalidade

Além de O reflexo de Henriqueta, outros livros podem inspirar uma conversa sobre quem a criança é e como ela se transforma ao longo da vida. Quer ver?

Ser o que se é, Pedroca Monteiro e Daniel Kondo (Companhia das Letrinhas)

Ser o que se é, Pedroca Monteiro e Daniel Kondo

Nós somos o resultado de múltiplas combinações de características e esse livro infantil convida o leitor a experimentar várias delas. Afinal, o legal é ser diferente e poder ter um mundo de possibilidades dentro de si.

Quem sou eu?, Philip Bunting (Brinque-Book)

Quem sou eu?, Philip Bunting

O que nos torna quem somos? O livro reflete sobre a essência humana. De um jeito divertido, o autor faz pensar sobre o que nos torna únicos, o que nos faz iguais e, ao mesmo tempo, completamente diferentes.

O lugar do meu amigo, Maria Cristina Silva (Escarlate)

O lugar do meu amigo

Dois amigos, com histórias e contextos completamente diferentes, se encontram todos os dias e se dão muito bem juntos. A amizade é capaz de unir e combinar, de forma prazerosa, até quem, aparentemente, não tem nada a ver com o outro. Mas só aparentemente…

Menino, menina, Joana Estrela (Pequena Zahar)

Menino, menina, Joana Estrela

Volta a pergunta inicial do texto: dá para responder, de um jeito fácil, quem somos? E quem sentimos que somos? Talvez não exista uma única resposta, mas diversas possibilidades. Neste poema visual, a autora homenageia a grande variedade de indivíduos e combinações.

Tímidos, Simona Ciraolo (Companhia das Letrinhas)

Tímidos, Simona Ciraolo

O polvo Maurício prefere ficar mais quietinho e camuflado do que chamar atenção, principalmente quando entra em uma escola nova. E ele é tão bom em se esconder que até o leitor vai ter um trabalhão para encontrá-lo nas páginas! Mas tem sempre uma surpresa por aí…

 

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