Blandina Franco e Lollo abordam preconceito ao pobre em dois livros

05/10/2023

Nenhum tema é difícil demais para ser conversado com as crianças. Pelo menos não para os veteranos Blandina Franco e José Carlos Lollo que, juntos, já produziram mais de 50 obras e, este ano, lançam dois livros que abordam algo tão escandaloso quanto difícil de (querer) enxergar: a pobreza. Em Aporofobia e Os pombos, os autores jogam luz ao olhar cheio de julgamento e aversão que se tem sobre pessoas em situação de rua e vulnerabilidade.

Em Os pombos, a narrativa parte de uma metáfora faz uma analogia entre pessoas em situação de vulnerabilidade e pombos

Em Os pombos, a narrativa faz uma analogia entre pessoas em situação de vulnerabilidade e pombos

O primeiro lançamento, como parte da Coleção Canoa, foi do livro Aporofobia. A obra nos coloca no papel de testemunhas - com um inevitável desconforto - dos insultos que são cotidianamente despejados sobre uma família em situação de rua. “Sujos”. “Perigosos”. “Vagabundos”. Com uma solução visual bastante gráfica, as palavras proferidas vão caindo sobre os personagens e formam uma grande montanha de adjetivos que não pertencem à família.

O segundo título aborda a mesma temática da pobreza e vulnerabilidade, mas utilizando uma metáfora certeira e impactante entre pessoas que estão nesta situação e as aves que dão nome ao livro, Os pombos - ambos enxergados com desprezo e descaso por ocuparem as ruas. 

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Como o pobre é visto e quem o vê: duas perspectivas sobre o mesmo tema

As duas obras percorrem caminhos diferentes, trazendo olhares quase complementares sobre o mesmo preconceito: a aversão aos pobres. Em Aporofobia, temos a perspectiva de quem é visto (e cotidianamente ofendido). E em Os pombos, ocupamos o lugar de quem vê - e normalmente não enxerga muito além. Ambas são resultado de um mesmo encontro: uma ponte feita pela Companhia das Letras entre os autores e o padre Júlio Lancellotti, que atua com pessoas em situação de vulnerabilidade e tem trazido o tema à tona, especialmente na imprensa.

Em Aporofobia, uma série de insultos são despejados sobre uma família em situação de rua

Em Aporofobia, uma série de insultos são despejados sobre uma família em situação de rua

 

“Esse projeto tinha sido um pedido do padre Júlio Lancellotti e, logo de cara, achamos muito importante fazer parte dele”, conta Blandina. O padre Júlio procurou a Companhia das Letras com a ideia de produzir obras para o público infantil que tratassem dos preconceitos sofridos por pessoas em situação de vulnerabilidade. E foram Blandina e Lollo que a colocaram em prática, com a participação do padre Júlio.

Em entrevista ao Blog da Letrinhas, Blandina e Lollo compartilharam um pouco dos bastidores que inspiraram os dois livros, os processos percorridos na elaboração das obras e o poder de trabalhar temas difíceis por meio da literatura - sensibilizando crianças e adultos.

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Confira a entrevista completa com Blandina Franco e José Carlos Lollo

Blog da Letrinhas: Como nasceram os livros?

Blandina Franco - O convite partiu da Companhia das Letrinhas. A Júlia Schwarcz (publisher), a Gabriela Tonelli e o Antonio Castro (ambos editores) marcaram uma conversa com a gente e nos apresentaram o projeto, que tinha sido um pedido do padre Júlio Lancellotti. Logo de cara achamos muito importante fazer parte dele.

 

Você e Lollo já tinham alguma familiaridade com o tema ou alguma vivência com pessoas em situação de vulnerabilidade?

Blandina Franco - Acho que tínhamos a mesma familiaridade que todo mundo tem. Vemos a população de moradores de rua cada vez maior em São Paulo. Ajudamos quando somos abordados ou quando podemos. Sabemos que existe o problema do abandono, mas nunca nos aprofundamos na questão como gostaríamos ou poderíamos. Por isso, quando recebemos o convite da Letrinhas para participar da criação do livro, ficamos muito felizes e animados com a possibilidade de ajudar.

 

Como foi o processo de construção dos livros? Houve escutas com pessoas em situação de vulnerabilidade?

Blandina Franco - Nessa primeira conversa que tivemos com o pessoal da Companhia das Letrinhas, combinamos uma visita ao padre Júlio na Paróquia São Miguel Arcanjo (São Paulo, capital). Lá pudemos ver uma parte do trabalho que ele desenvolve. Chegamos cedo e já havia algumas pessoas esperando pelo padre Júlio. Antes de ir até a paróquia, ele caminha pela região distribuindo pão. Quando chega, chega acompanhado de várias pessoas que o seguem pela rua e que vão até a paróquia se juntar aos que já estavam por lá esperando por ele para uma roda de conversa.

Ali, todos expõem seus problemas, conversam, pedem ajuda. O padre distribui, além do pão, roupas e material de higiene, mas principalmente ouve, responde, orienta e conversa com aquelas pessoas a quem falta tanto. E foi ouvindo essas conversas, esse desabafo dessas pessoas, que começamos a entender melhor o que eles sentem e conhecer um pouco, bem pouco, o que é a realidade deles.

 

Quais foram as inspirações para tentar explicar não apenas o conceito mas os sentimentos que a aporofobia desperta? Como foram pensados os personagens ilustrados? 

Blandina Franco - Os personagens de Aporofobia não têm cor humana para que eles possam representar todas as cores. A família na rua é feita de formas simples e expressões simples para que o leitor possa associar com qualquer família em situação de rua da realidade. Já as pessoas que passam são caricaturas mais elaboradas de tipos muito específicos de pessoas - aqui o traço de humor é o cavalo de Tróia que vai carregar a mensagem pesada de uma forma leve para dentro da cabeça do leitor.

As inspirações foram os desabafos, a maneira como as pessoas em situação de vulnerabilidade se sentem tratadas pelas pessoas que não estão na mesma situação. 

Ouvindo aqueles relatos pensamos em quantas vezes não sentimos coisas parecidas, ou pensamos aquelas frases sem ter coragem de verbalizar em voz alta porque sabemos ser uma coisa muito triste.
(Blandina Franco, autora)

No livro Aporofobia, as palavras comumente despejadas sobre pessoas em situação de rua vão se sobrepondo e cobrindo a família que aparece. Como explicar para crianças esse poder que a palavra tem - de ferir ou de abraçar? Qual é o poder que a palavra tem pra vocês?

Blandina Franco - A palavra é muito poderosa e machuca quando usada para esse fim. As crianças sabem disso, assim como sabem que palavras podem fazer os outros rirem e gostarem delas. Crianças sabem disso intuitivamente e usam esse poder da palavra livremente. Passamos um bom tempo ensinando para as crianças a não usar violência física e algumas vezes não nos lembramos de ensinar a não usar a violência verbal. Quando começamos a lidar com o bullying mais seriamente, passamos a ensinar isso e as crianças começaram a entender melhor que palavras também machucam.

As palavras nessa história querem mostrar que algumas vezes as pessoas ficam escondidas sob o que falamos delas, que deixamos de vê-las como realmente são para enxergá-las só como julgamos que são. Debaixo de tudo aquilo que pensam sobre os moradores de rua existem pessoas e essas pessoas merecem ser tratadas com dignidade.

 

Em Ernesto, o desprezo é direcionado a um personagem: que tem nome, que tem rosto, que tem um jeito próprio. Como foi falar de uma rejeição que atinge tantas pessoas diferentes, em diferentes partes do mundo, uma rejeição que não tem um rosto?

Blandina Franco - Ernesto, embora tenha nome e forma, também não é uma pessoa específica, Ernesto é qualquer um e todo mundo. Todo mundo já passou por alguma situação como a dele. Ernesto trata de uma maneira de agir em relação ao outro, e nisso os dois livros estão muito próximos. Não estamos falando de uma pessoa específica, nos dois livros estamos falando de empatia, de se colocar no lugar do outro e imaginar o que ele sente.

 

Ilustração de Os pombos, de Blandina Franco e José Carlos Lollo

Assim como os pombos, as pessoas em situação de vulnerabilidade são enxergadas com desprezo e preconceito

 

E a narrativa de Os pombos, como foi elaborada? Como chegaram à figura do pombo para representar pessoas em situação de vulnerabilidade?

Blandina Franco - A primeira vez que a palavra aporofobia apareceu foi quando vimos o padre Júlio quebrando com uma marreta as pedras debaixo de um viaduto. Quando nos encontramos com ele, ficamos bastante impressionados com o efeito da arquitetura aporofóbica na vida das pessoas em situação de vulnerabilidade. Eles, que não têm casa, e não podem se abrigar da chuva debaixo de viadutos, nem dormir em bancos de praça e fachadas com espinhos. É uma maneira cruel de dizer que não os querem por perto. Então, o Lollo lembrou que em certas praças as pessoas colocam espetos nas cabeças e ombros das estátuas para que os pombos não pousem ali. Isso despertou a analogia. Eles são tratados como pombos. 

O pombo é tão ave urbana como os bem-te-vis e sabiás, mas por viverem das sobras da sociedade, as nossas sobras, ninguém quer eles por perto. Foi assim que nasceu a história.
(Blandina Franco, autora)

José Carlos Lollo - A cabeça de pombo nos personagens é para reforçar a analogia, e que através dessa estranheza as pessoas possam olhar nos olhos de quem elas evitam, como se as personagens dissessem, "assim você me vê?", "nessa forma você me entende?". 

 

Que paralelos vocês enxergam entre Aporofobia e Os pombos? Quais são as nuances que você e Lollo destacariam em cada um? Acha que eles são para a mesma faixa etária?

Blandina Franco - Os dois livros falam da maneira como tratamos os moradores de rua, sobre como os enxergamos. O livro Aporofobia é mais sobre a palavra em si, o que essa palavra quer dizer, o que ela representa. Acreditamos que para uma criança é muito difícil entender uma coisa que não tem nome. Para entender essa coisa é preciso saber o que ela é. Ao saber o nome do sentimento, fica mais fácil compreendê-lo e lidar com ele. O objetivo do livro é abrir esse entendimento para começar a falar sobre a aporofobia.

Em Os pombos, queremos mostrar o ponto de vista dessas pessoas (em situação de vulnerabilidade) e a invisibilidade e o desprezo por eles. Acho que os dois livros são para todas as faixas etárias, para qualquer criança ou adulto, o importante é que todos nós falemos sobre esse sentimento e façamos alguma coisa para lidar com este problema.

 

Como foram os processos de ilustração de cada obra?

José Carlos Lollo - Com a ilustração digital, eu posso brincar com as cores e usar formas mais lúdicas. Na história do livro Aporofobia, a mesma família aparece repetida em todas as páginas. Na ilustração digital, essa repetição deixa as pequenas diferenças de expressão da família mais sutil, ao mesmo tempo que ajuda o espalhafato das caricaturas das pessoas que passam a ser mais agressivo. No livro Os pombos, a gente busca principalmente a empatia. O traço à pena, a aquarela, as montagens, ajudam a contar a história de um jeito mais real, mas também poético.

 

Como é o processo de vocês dois para orquestrar texto e imagem, é tudo simultâneo? Por onde começam?

Blandina Franco - Começamos sempre contando a história um para o outro, a ideia inicial, a coluna vertebral da história, e a partir disso criamos as duas coisas quase que simultaneamente. Em Aporofobia pensamos em fazer as palavras irem caindo e cobrindo os moradores de rua, em Os pombos pensamos no fato das pessoas serem tratadas como pombos e com essa imagem na cabeça partimos para o texto; enquanto eu escrevia, o Lollo fazia as aquarelas. Escolhemos os desenhos juntos, ajustamos os textos e as imagens para que uma coisa não repita o que a outra está dizendo. Depois, testamos entre a gente e, então, com o pessoal das Letrinhas.

 

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