“Não fui eu!”: as mentiras que as crianças contam

09/03/2024

Na casa de um menino travesso, muitas coisas esquisitas acontecem. O cereal matinal vai parar na panela de macarrão. O vidro do carro do papai aparece quebrado. Bolhas de sabão saem do cachimbo do vovô. Mas tudo o que o garoto sabe responder, embora as travessuras notadamente levem a assinatura dele, é:

"Não fui eu!"

"Não fui eu!" também soa familiar na sua casa? Ilustração do livro "Quem foi?!"

 Em um livro ilustrado que articula texto e imagem em uma dinâmica divertida, Quem foi?! (Brinque-Book), de Ana Palmero Cáceres com ilustrações de Alejandra Acosta, brinca com algo que cedo ou tarde desponta no comportamento infantil: a mentira.

Todo mundo conta uma mentirinha ou outra, aqui e acolá - inclusive os adultos. Mas para crianças, a mentira  nem sempre é consciente. E pode ter muitas finalidades: testar hipóteses, atender a expectativas - ou proteger nos sentimentos dos outros - além de, claro, se livrar da culpa, como faz o protagonista do livro.

Algo parecido acontece ou já aconteceu na sua casa ou na sua sala de aula? Se sim, saiba que é completamente normal. Enquanto crescem e se desenvolvem, as crianças, aos poucos, vão conhecendo a socialização. E como, nós, adultos, já sabemos, a mentira faz parte dela - não tem jeito. Mas como se dá essa introdução da criança ao conceito de mentira? Quando e por que elas começam a mentir? A partir de quando mentem sabendo que, de fato, estão mentindo? 



Quem foi?

Capa de "Quem foi?" de Ana Palmero Cáceres e Alejandra Acosta

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A mentira no desenvolvimento infantil: como e porque ela aparece

Nos anos iniciais da infância, as crianças mentem sem a intenção de mentir e até sem saberem que mentiram. Acontece quando ainda não conseguem distinguir muito bem o faz de conta e a imaginação da realidade. Mais tarde, aprendem a fingir, com medo de não magoar ou frustrar os outros, sobretudo, os pais, ainda sem tanta consciência do que estão fazendo. Aos poucos, à medida em que o cérebro vai se sofisticando, elas aprendem a mentir para tentar escapar de broncas e consequências de ações não muito positivas...

Uma criança muito pequena, na fase entre 2 e 4 anos, acredita no que ela imagina. Confunde o faz de conta em um desenho que ela viu, um livro que leu, uma brincadeira ou até em um sonho, com a verdade. Por volta desta faixa etária, ela começa a perceber, de maneira mais estruturada, que” o sentimento dela é dela e o do outro é do outro”, de acordo com a psicóloga Cynthia Wood, da clínica Crescendo e Acontecendo (SP). “Em certas situações, a criança finge para agradar ou para não frustrar os pais, mas não sabe que está mentindo. Faz parte do desenvolvimento da empatia. Ela começa a perceber o sentimento do outro e vai testando, porque não quer frustrá-lo. Nesse momento, a mentira é algo até positivo”, explica.

Os pequenos aprendem testando e observando o mundo. “São como físicos experimentais”, compara o psiquiatra e psicoterapeuta Wimer Bottura, membro da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e presidente do comitê de adolescência da Associação Paulista de Medicina (APM). O bebê derruba o prato ou o brinquedo no chão várias vezes, para ver como as pessoas ao seu redor reagem - e faz isso em repetição. É um experimento social. É assim também, repetindo e observando as respostas, que elas vão sofisticando também sua compreensão em relação à mentira. “A princípio, a criança não compreende a mentira, não tem julgamento de valor ou senso ético, mas vê o que os adultos fazem”, pontua.

Depois de negar todas as travessuras, o jogo vira para pequeno protagonista de "Quem foi?"

Sabe quando alguém liga e você pede para dizer que não está em casa? Ou quando você diz que não chegou a tempo a um compromisso porque o pneu furou, mas, na verdade, só estava atrasado mesmo? Essas pequenas mentiras fazem parte do cotidiano e, embora não compreenda muito, a criança está observando e absorvendo. “Dependendo de como e quanto os pais utilizam esse recurso, ela também vai naturalizando a mentira, achando normal”, aponta Cynthia.

Em fases mais avançadas, a partir dos 6, 7, 8 anos, os pequenos já são capazes de mentir, omitir ou distorcer certas situações com mais consciência do que estão fazendo. “É aquele momento em que a criança faz algo errado e diz que não fez ou que não foi ela; que jura que não tinha lição de casa porque não queria fazer, que garante que escovou os dentes e tomou banho, mas não fez nada disso”, exemplifica a psicóloga.

São vários os motivos que podem levar uma criança a mentir, nessa fase em que ela já compreende melhor o que está fazendo: escapar de broncas ou punições, fugir de obrigações, não frustrar os outros - principalmente os pais, que podem ter grandes expectativas sobre ela - ou até por vergonha. “Às vezes, a criança chega na escola, depois das férias, e os colegas todos começam a contar para onde viajaram e o que fizeram - e ela não fez nada muito diferente. Pode ser que a criança invente algo ou exagere, para tentar se encaixar”, diz Cynthia.

A especialista lembra também que a distorção pode ter a ver com o ponto de vista. “É preciso entender algumas situações, conversando com quem viu ou esteve envolvido e, principalmente, com a criança, porque, às vezes, ela não está mentindo, exatamente, mas tem um ponto de vista diferente sobre o que aconteceu”, destaca.

Uma conversa sobre a mentira no mundo real

Embora mentir nem sempre seja algo feito com maldade ou intenção de prejudicar o outro - às vezes, pelo contrário, é uma forma de empatia  - é um comportamento que deve ser observado atentamente pelos adultos mais próximos, como pais e professores. Não que a criança precise ser sempre punida, mas é importante não deixar passar em branco ao perceber que ela mentiu. “Não é sobre dar bronca e deixar de castigo, mas entender o que aconteceu, compreender a perspectiva da criança, o que está por trás daquela mentira e explicar para ela como aquilo pode ser manejado de outras formas”, indica Cynthia.

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Quando o comportamento começa a se repetir, pode indicar um problema. Nesse caso, é importante identificar o que está levando a criança a agir dessa forma. Pode ser uma questão interna, em casa, na escola, e ela pode querer, de alguma forma, chamar atenção. Em algumas situações, é importante buscar ajuda profissional, de um psicólogo, para ajudar a entender o que está acontecendo e oferecer à criança as ferramentas necessárias para resolver o problema. “Se não for observado e cuidado, pode até se tornar algo mais grave com o tempo. Existem transtornos que levam a pessoa a mentir compulsivamente e a acreditar nas próprias mentiras, vivendo em um mundo imaginário, uma patologia mesmo”, ressalta a psicóloga. Isso tudo pode aparecer mais adiante, a partir da adolescência, mas é preciso ficar de olho.

Também é importante não idealizar a criança. Todo mundo conta uma mentirinha ou omite um fato, em dados momentos da vida. Embora seja importante ensinar à criança a importância de ser honesto, e conversar sobre maneiras mais adequadas de resolver os problemas, não dá para exigir que ela seja 100% verdadeira, o tempo todo. Ninguém é.

“A mentira não apenas faz parte do desenvolvimento infantil, mas do desenvolvimento da sociedade”, diz Bottura. “Nós, adultos, mentimos muito. Só que algumas mentiras são tão frequentes e tão habituais, que nem percebemos que são mentiras. O mundo não é preparado para viver 100% da verdade”, afirma.”Não podemos ensinar as crianças a serem ‘sincericidas’. Até porque, às vezes, elas são tão verdadeiras que revelam coisas que os adultos não queriam expor também”, lembra. Mas é importante conversar e guiar o seu filho, ensinando sobre certo e errado, limites, e o que pode ser prejudicial a ele mesmo e às outras pessoas. Aos poucos - e com o exemplo - ele vai aprendendo a lidar com situações desafiadoras da vida.


Quem será que jogou cereal na panela de macarrão?

Quando a criança mente: o que fazer o que não fazer

O mais importante é que pais e responsáveis não deixem que as mentiras, sobretudo quando são frequentes, passem despercebidas. Mas o que fazer, quando seu filho mente? Aqui vão algumas dicas importantes dos especialistas:

  • Conversar com a criança para entender o comportamento e, sobretudo, ouvi-la, com uma escuta ativa.
  • Ter empatia: tente se imaginar no lugar do pequeno para entender melhor por que ele pode ter agido daquela forma, diante daquela situação. Depois, converse e tente ajudar, elaborando outras maneiras de lidar, junto dele.
  • Cuidado com o excesso de punições. É comum que as crianças mintam para fugir de broncas e castigos. Não quer dizer que a criança não possa ser repreendida quando faz algo errado, mas avalie os exageros. Às vezes, ter uma boa conversa ou ajudá-la a encontrar uma solução para o que ela fez de errado são opções melhores. E nunca puna a criança por falar a verdade. Senão, ela vai aprender que mentir é o melhor caminho mesmo. 
  • Vale um alerta: não punir por falar a verdade e não exagerar nas punições e broncas não é o mesmo que dizer que a mentira deva passar incólume. Isso porque esse comportamento pode estar comunicando um problema ou uma necessidade, que a criança não consegue expressar de outra maneira. Fique atento!
  • Se o comportamento de mentir se repete, mesmo diante de todo o apoio dos adultos ao redor, ou se comunica algo com que a família tem dificuldades de lidar, é importante buscar ajuda de um profissional especializado, como um psicólogo. 
  • Encoraje a honestidade, mostrando as vantagens de falar a verdade e de ser sincero.
  • Nunca rotule a criança como mentirosa.
  • Cuidado com as mentiras que conta para a criança ou na frente dela. Além de ensiná-la a normalizar esse tipo de comportamento, isso pode fazer com que a confiança dela em você seja quebrada.
  • Leia e conte histórias que podem ser um ponto de partida sobre as mentiras e distorções e sobre quando utilizar esse recurso é importante e quando não é. Além de Quem foi?!, você pode tentar esses títulos: 

O grúfalo (Brinque-Book), Julia Donaldson
 

Um esperto ratinho acaba usando a mentira de uma maneira sagaz para escapar dos perigos. E não é que, nesse caso, dá certo?

O grúfalo


Mentiras… e mentiras (Companhia das Letrinhas), Tatiana Belinky

Toda criança aprende desde cedo a não mentir - mas será que isso significa que devemos contar a verdade em absolutamente todas as ocasiões? Este livro apresenta situações em que a mentira deixa de ser imoral: se mentimos para ajudar alguém ou mesmo para atenuar uma situação difícil, de sofrimento, a "mentira" pode até ser, de certa forma, positiva. 

Mentiras... e mentiras


A verdade segundo Arthur (Brinque-Book), Tim Hopgood

Arthur resolveu fazer exatamente o que sua mãe disse que era para ele não fazer: dar uma volta na bicicleta de seu irmão mais velho. E deu muito errado! Para escapar, o menino inventa uma série de desculpas e explicações fantasiosas não muito convincentes...

A verdade segundo Arthur

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