por Silvana Salerno
Desde criança sou apaixonada pela Amazônia. Aos 9 anos, ganhei como prêmio da escola um livro sobre a região e me encantei com as árvores, os bichos, os rios e os povos ribeirinhos. Fui crescendo e o meu amor, aumentando. Estudei um pouco de antropologia, pesquisei muito, e fui conhecendo a importância dos povos originários.
Em 1972, aos 20 anos, como lua de mel, Fernando Nuno e eu escolhemos a Amazônia. Quanta novidade! Conhecer e conversar com os amazonienses, ouvir seu falar elegante, ir com eles tomar tacacá ao pôr do sol e comer unha de caranguejo como aperitivo da maniçoba. Ver aquela natureza exuberante, com o verde entrando pelos olhos e o sol queimando o coco, como dizia minha avó.
O encontro das águas do Amazonas com o Negro foi uma emoção. Não só as cores não se misturam, como a densidade diferente da água não deixa que isso aconteça. A temperatura dos rios também é muito diferente, o que já dá uma ideia da diversidade da natureza. (Agarrado ao barco, o Fernando nadou intercalando a água dos dois grandes rios e sentido a diferença entre a água morninha do Solimões/Amazonas e a mais fria, do Negro.)
Caminhamos pela mata com guias caboclos e conhecemos um pouco do muito saber da população local. Das plantas que guardam água em seu bojo, para matar a sede de quem se perde na floresta, as sementes e frutinhas comestíveis e as plantas medicinais. A altura das árvores chama a atenção, como o desenho rendado que o sol faz no chão, ao permear sua folhagem. É mágico avistar uma sumaúma, árvore sagrada para muitos povos. Como as árvores, em geral, a sumaúma é generosa. Na época das chuvas, armazena água em seu enorme tronco, e na seca descarrega essa água, com um estrondo que se ouve a quilômetros. É tanta a água, que abastece uma grande área, umedecendo as raízes de suas companheiras. Não foi por acaso que escolhi, como abertura do livro Qual é o seu Norte? Histórias da Amazônia (Companhia das Letrinhas, 2012) o conto “A sumaúma”.
As praias fluviais de Mosqueiro, balneário de Belém, tinham areias brancas e o rio era limpo. As cachoeiras de Tarumã e Tarumãzinho, perto de Manaus, eram de tirar o fôlego: uma ducha alta e forte no meio do verde... até a lente da máquina tomou banho e ganhou fungos... Há anos, porém, as praias de Mosqueiro estão poluídas e as cachoeiras não existem mais! Sumiram com o desmatamento e os aterramentos das construções. O igarapé da Cachoeira Baixa do Tarumã, um dos principais contribuintes da bacia do rio Tarumã-Açu, tem pouca água e revela o lixo tóxico na espuma química que toma conta do seu leito de ponta a ponta.
Um ano depois, viajamos de Belém a Manaus, pelo rio Amazonas, contemplando o mais belo nascer do sol e o mais belo poente que já vi. O rio é tão largo, que dá a impressão que estamos no mar, porque não se vê a margem oposta. De tempos em tempos, surgem algumas ilhas. Em Santarém, vendiam animais silvestres, e um passageiro comprou um filhote de onça-pintada para levar ao Rio de Janeiro, sob a indignação de alguns e a indiferença ou inconsciência de muitos.
Em 1976, com Fernando, meu irmão e um amigo paraense, estreamos a recém-reinaugurada Belém-Brasília. No Pará, a estrada era vazia, cruzando a mata. Quando parávamos para apreciar a paisagem, lagartos vinham se banhar ao sol em cima do carro, e os passarinhos faziam um rebuliço de manhã cedinho e no fim do dia. Tínhamos de ir com cuidado, também: a certa altura, uma longa cobra deslizou, rápida, e atravessou a estrada à nossa frente. Não havia cidades no caminho. Pousamos em casas à beira da estrada, que alugavam quartos, e foi então que aprendemos a dormir em rede e tomar banho frio. O amigo paraense nos levou ao balneário de Belém – a praia de Salinas, a 216 km da capital. Areia branca, mar limpo, lotada de carros e turistas no fim de semana. Nosso amigo nos apresentou o Lago da Coca-Cola, lagoa de água doce e marrom, como o rio Negro, na qual nadávamos depois do mergulho no mar. Mas qual não foi nossa surpresa, ao fim do dia, quando a praia esvaziou e estava lotada de latinhas e lixo. Quase não dava para andar. Foi chocante ver aquele lixão numa natureza tão bela e ainda não poluída!
A ilha de Marajó nos trouxe boas surpresas. Não tínhamos ideia do tempo de viagem, nem de por onde o barco passaria. No cais de Belém, o piloto do barco logo disse para armarmos a rede. Mas que rede? Ninguém estava preparado para dormir no barco. E fomos mesmo assim, sem rede, curtindo a noite fechada, com os ruídos de animais e às vezes um brilho amarelo e redondo que nos mostravam como olhos de onça. Dormimos no chão, meio sufocados pelas redes. O café, feito pelo barqueiro, foi com a água do rio Guamá, assim como o feijão do almoço. Água limpinha, transparente... Hoje, os urubus e o lixo tomam conta do Guamá, rio que banha Belém.
Depois de 24 horas de viagem, a primeira parada foi em Cachoeira do Arari. Era noite. O delegado que recebeu o barco contou que não havia pouso para turistas e nos hospedou na casa dele. Nosso quarto tinha rede de casal! Tínhamos 24 anos, a mesma idade de sua filha mais velha. No dia seguinte, um baile nos aguardava. Numa sala que dava para a rua, ouvimos pela primeira vez “Hurricane”, de Bob Dylan. E dançamos muito. Rock e carimbó.
Em 1995, com nossos filhos Diego e Bruno, fomos para o rio Ariaú, no meio do Amazonas, num hotel construído no alto das árvores, por inspiração de Jacques Cousteau. Macaquinhos e passarinhos eram companhia no café da manhã. De barco pelos igarapés, fomos a aldeias indígenas, avistamos jacarés e revoadas de papagaios, tucanos e araras. A viagem até as Anavilhanas foi belíssima. Essa região afastada das cidades estava intacta, mas o rio Negro, às margens de Manaus, já era poluído. Um grande lixão flutuante ocupava uma parte do rio.
Em 2003, para comemorar o aniversário de um grande amigo, conhecemos o Amapá. De Macapá, fomos à ilha do Coração, no rio Araguari. Passamos dois dias ali, em casa de amigos, num isolamento único, com um céu com o maior número de estrelas que já vi. Esta ilha e outras vizinhas já não existem mais. A mudança climática fez as águas cobrirem uma grande área do Amapá. As enchentes de grande porte tornaram-se comuns em todos os estados da região Norte. E, para completar o desequilíbrio ecológico, houve uma grande seca recente na Amazônia.
Seis anos depois, eu precisava declarar meu amor a Amazônia. Viajamos novamente para pesquisar, conversar, conhecer, para o meu projeto. No Mangal das Garças, pudemos fotografar azulão, garça-branca, guará, flamingo, tracajá, borboleta Júlia e tantos outros. Mergulhei em bibliotecas, conheci professores bilíngues que recriavam línguas indígenas praticamente desaparecidas como a dos ticunas, e fui selecionando contos para compor Qual é o seu Norte? Histórias da Amazônia. Escrevi uma história para mostrar como era a vida de ribeirinhos, em palafitas distantes da cidade, sem luz elétrica. Viviam da troca com os regatões do açaí por feijão, querosene para lampião etc. Contei a vida de Chico Mendes, para o leitor jovem saber quem foi ele e por que morreu. O que a floresta Amazônica contém, o que ela perdeu, e como fazer para recuperá-la. Como viver da mata sem desmatá-la, utilizar os recursos naturais sem extingui-los – a partir do saber dos povos originários até a engenharia florestal. O que é sustentabilidade e como aplicá-la, ao lado das brincadeiras da infância da região, como Arranca-Mandioca. Tudo isso se encontra no livro, belamente ilustrado por Gonzalo Cárcamo. O mapa da Amazônia com suas reservas, parques nacionais e áreas desmatadas faz a abertura do livro.
Na floresta Amazônica há muito a descobrir. A cada ano são registradas novas espécies de animais e de plantas. A Amazônia é um presente que recebemos, que deve ser preservado e restaurado, como está fazendo a Rede de Sementes do Xingu – composta por povos indígenas, comunidades e agricultores familiares –, que coleta e planta sementes nativas para a restauração ecológica da Amazônia e do Cerrado. Vamos, nós também, recuperar o Brasil?
P.S. As cidades também precisam de ajuda. Se numa calçada de São Paulo tiver um canteiro sem árvore, você pode ligar para a prefeitura e pedir o plantio de uma. Cada árvore nova na cidade diminui a extensão dos desastres climáticos.
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Silvana Salerno é apaixonada pela natureza, pela arte e pela cultura popular. Estudou Jornalismo e Letras na USP, Mitologia na Grécia e História da Arte em Florença. Pesquisadora do folclore e da cultura popular, é autora de 40 livros infantojuvenis, recebeu o prêmio de Melhor Reconto e vários Altamente Recomendados pela FNLIJ e distinções Cátedra Unesco. Escreve e realiza palestras sobre Literatura e oficinas de Escrita Criativa porque acredita no poder transformador da literatura.