
Árvores que habitam muitas infâncias
Com a chegada do clássico “A árvore generosa” ao catálogo da Companhia das Letrinhas, autores falam da importância da natureza na infância
Para os leitores, ela é capaz de dar vida a personagens que parecem ter saído da mente de uma criança – dentre elas, uma menina tão microscópica que só pode ser vista com olhos de infância. Para os interessados na literatura contemporânea, ela faz parte de uma geração de novas artistas brasileiras cuja produção é promissora. Seus trabalhos ressoam o compromisso com o frescor de ver o mundo pela primeira vez. Francine Matsumoto, 29, mais conhecida como Fran Matsumoto, é uma premiada artista de livros ilustrados que vem despontando em algumas das distinções mais relevantes do segmento.
Sua obra mais recente é Você não vai acreditar no que eu vi (Brinque-Book, 2024), que mostra com certo humor as ambiguidades que podem habitar a relação entre irmãos, evocando uma boa dose de fantasia e nos conduzindo a um desfecho surpreendente. O mais velho diz ter visto uma criatura enorme, com orelhas gigantes, uma cauda cheia de espinhos e olhos assustadores - o que já seria o suficiente para deixar o caçula de cabelo em pé. Mas não é bem isso que acontece...
Minúscula (Brinque-Book, 2022), seu segundo trabalho publicado, foi finalista do prêmio Jabuti 2023, na categoria ilustração, e também finalista da Mostra de Ilustradores da Feira do Livro Infantil e Juvenil de Bolonha 2024. Um livro que usa o humor afinado de uma criança para contar o que acontece quando precisamos conviver com o desconhecido.
Fran Matsumoto no lançamento de sua obra mais recente: Você não vai acreditar no que eu vi (Brinque-Book, 2024)
Julia Donaldson, criadora de O Grúfalo (Brinque-Book, 1999), um dos monstrengos mais famosos da literatura para as infâncias, tem uma teoria. A de que muitas pessoas acabam se tornando, mais cedo ou mais tarde, quem elas queriam ser aos cinco anos. A experiência de Matsumoto corrobora essa hipótese. Quando conta que adora desenhar desde pequena, confirma que podemos, em qualquer idade, ouvir a criança que fomos.
“A infância é um período de grande experimentação e poder explorar o livro de todas as formas é muito rico", Francine Matsumoto, escritora e ilustradora
Fran possui cinco livros publicados no total, incluindo livros ilustrados de sua autoria e também uma graphic novel. O primeiro livro dela como autora do texto e das imagens, Tatá (Barbatana, 2019), recebeu o selo Distinção Cátedra 10, pela Cátedra Unesco de Leitura PUC-Rio de 2020. Trata-se de um conto ilustrado sobre a devastação das florestas brasileiras. Na sequência, veio o livro ilustrado Minúscula e, logo em seguida, Broto (Barbatana, 2023), que foi considerado um dos melhores roteiros de quadrinhos do Brasil naquele ano, e configura a estreia da autora na novela gráfica – criada em parceria com a roteirista e produtora audiovisual Raíssa Kaspar. A história dá voz aos silêncios de uma despedida, e aborda a importância dos familiares ancestrais em quem somos hoje.
O relacionamento entre irmão permeado por um bocado de fantasia dá o tom de Você não vai acreditar no que eu vi (Brinque-Book, 2024)
Fran Matsumoto nasceu em 1995, no Vale do Paraíba, e mora em São Paulo, capital, desde 2013. Ela vem de uma família nipo-brasileira, característica que aparece em suas criações, suas referências artísticas, nos projetos que sonha para o futuro e nas lembranças mais saborosas. “A gente ia muito à casa da minha batian, a família era toda bem unida, muitos tios e tias, íamos sempre aos undokais que tinham na cidade, comíamos bastante fukashi manju, gobo, gohan com feijão”. Nos seus livros, ela se preocupa em criar personagens racializados, geralmente pouco identificados na literatura de forma geral, ou representados somente em narrativas localizadas. “Cresci com minha família japonesa, me identifico muito com essa mistura Brasil-Japão e já tenho alguns (vários) projetos que abordam tanto a imigração quanto essa relação com a minha família”, conta.
“Procuro sempre colocar personagens asiáticas e também birraciais nas minhas histórias e ilustrações. Sinto uma falta de representatividade neste aspecto, e acho importante também incluir pessoas racializadas em histórias que não necessariamente falam sobre questões raciais", Fran Matsumoto, escritora e ilustradora
Em seu livro mais autobiográfico até aqui, Conversas com Batiã (2019), Fran Matsumoto explora mais detidamente as origens nipo-brasileiras, e dedica à sua avó uma história sobre a imigração japonesa no Brasil, contada do ponto de vista de uma criança. Lançada de forma independente no CCXP (festival de cultura pop em múltiplas linguagens), a obra está prevista para ser publicada em HQ.
Com formação em Biologia pela USP (Universidade de São Paulo), ela se mudou para a capital paulista e arriscou uma transição de carreira para se dedicar aos livros que as crianças leem. Porém, engana-se quem pensar que uma carreira não se conecta à outra. O amor pela vida e os complexos modos de compreendê-la podem alimentar tanto a prática de bióloga quanto a de escritora e ilustradora. Não por acaso, a estreia literária da artista acontece no mesmo ano de sua formação universitária.
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A curiosidade pelo aspecto selvagem que nos habita é um aspecto comum a muitos artistas. Dentre eles, Shaun Tan, uma das referências artísticas de Fran. “Uma criatura não representa necessariamente uma coisa ou outra; apenas é”, escreve o autor, no livro Creature (2023). “Um ser misterioso em um mundo misterioso, muito parecido com você e eu, tentando se encaixar, tentando ser único ou apenas tentando entender as coisas da melhor maneira possível”, diz Tan. Essa ideia traz à tona dois elementos que impulsionam a criação de Fran Matsumoto: a possibilidade de se entender pela história do outro, e a natureza, estranha e fascinante, de estar vivo. Como a filósofa norte-americana Donna Haraway, também bióloga, ajuda a pensar, ser um indivíduo é sempre tornar-se comum.
Em Você não vai acreditar no que eu vi, Fran adentra com originalidade dois temas recorrentes das narrativas para a infância: o medo de monstros e a relação entre irmãos. Porém, o monstro não é bem aquilo que pensamos; e a criança mais nova é quem carrega o rumo da história para um desfecho inesperado. O mecanismo de inversão de perspectivas, que convida quem lê a prestar atenção em detalhes que só são notados quando se lê cada elemento do livro – desde os aspectos pictóricos até a trama visual – como uma narrativa a ser desvendada. Neste livro, a autora utiliza o recurso do contraponto, em que o texto verbal e as ilustrações apresentam pontos de vista diversos. O resultado é um leitor engajado na leitura, sempre aberta a interpretações variadas.
Percorrer universos comuns a partir de outros olhares é uma marca a ser valorizada no trabalho de Fran Matsumoto, em que os personagens e enredos propõem novas maneiras de perceber o que acontece ao nosso redor.
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A literatura para as infâncias é uma prática em si mesma conectada aos começos. Quem se propõe a fazer arte para crianças experimenta a infância depois de sair dela. E vêm das crianças alguns procedimentos criativos fundamentais. No caso de Fran, valorizar as ideias que parecem não ter sentido é uma dessas abordagens. “Eu tenho um caderno de ideias. Às vezes, surge uma no meio da noite e eu preciso anotar, senão não consigo dormir com medo de esquecer. Depois vou ler e muitas vezes nem parece grande coisa. Ou então não consigo entender qual era a ideia original. Mas até isso é legal, porque lendo umas coisas aparentemente meio sem sentido, surgem outras ideias”.
Não por acaso, um de seus livros foi buscar desdobramentos justamente na percepção infantil. E não de qualquer criança, mas sim dela própria. Minúscula conta a história de duas meninas, uma que acabou de nascer, e outra um pouco mais velha, intrigada por que aquele ser é tão minúsculo. Mais que uma narrativa sobre irmãos, é uma recuperação de memórias, que passa pelo sensorial e pela reconexão com um ponto de vista inaugural sobre o mundo. As sensações da autora quando a irmã Jaqueline nasceu foram o pulo do gato para criar o livro.
“Eu pedia para os meus pais uma irmã, mas eu achava que ela iria vir do meu tamanho", Fran Matsumoto, sobre seu livro Minúscula
A seguir, leia a entrevista completa com Fran Matsumoto:
Fran Matsumoto: Sim, eu lia muitos livros. Meu pai lia bastante pra mim também. Inclusive, ele criava muitas histórias pra mim. Acho que meu livro ilustrado favorito de infância era A velhinha que dava nome às coisas (Brinque-Book, 2002). Eu amava também a Píppi Meialonga (Companhia das Letrinhas.
Fran Matsumoto: Foi bem difícil essa decisão de mudar de área, principalmente porque eu já estava há uns seis anos estudando biologia, mas como arte era uma coisa que eu não conseguia parar de pensar, e ficava estudando sempre que eu tinha um tempo livre, acabou sendo meio orgânica essa transição. Meus pais também me apoiaram muito no processo, o que ajudou demais.
Fran Matsumoto: Com certeza influencia, acho que todo tipo de experiência contribui de certa forma. A Biologia em específico contribuiu bastante no meu primeiro livro, Tatá (Barbatana, 2019), que fala sobre as queimadas em biomas brasileiros. Eu tinha acabado de me formar bióloga, e fiz uma pesquisa em bancos de dados de biologia atrás de informações sobre animais ameaçados. Mas, para além disso, também influencia nos temas pelos quais eu me interesso.
Fran Matsumoto: Acho bem legal estes temas estarem sendo abordados. Literatura é uma coisa bem viva, que reflete a sociedade e os temas daquele momento. Acaba sendo uma coisa bem recíproca, de o mundo influenciar a literatura e o contrário também.
Fran Matsumoto: Acho que a importância pra mim é mais em me fazer acreditar em mim mesma, ter mais confiança no meu trabalho e nas minhas ideias, mas não acho que muda muito na forma de criar os próximos.
Fran Matsumoto: Sim, é super! Eu tenho muito interesse pela imigração japonesa, tenho uma parte da minha estante de livros separada só para este tema, que eu gosto de estudar. Eu cresci com minha família japonesa, então me identifico muito com essa mistura Brasil-Japão e já tenho alguns (vários) projetos que abordam tanto a imigração quanto essa relação com a minha família. Outra coisa que acho que influencia também é que eu procuro sempre colocar personagens asiáticas e também birraciais nas minhas histórias e ilustrações. Sinto uma falta de representatividade neste aspecto, e acho importante também incluir pessoas racializadas em histórias que não necessariamente falam sobre questões raciais.
Fran Matsumoto: Recebo retorno sim! Acho que é a parte mais legal! Eu adoro ver as pessoas se identificando com meus livros. E muitos adultos me mandam mensagens também. Em Minúscula, por exemplo, eu recebi muitas mensagens de adultos que tinham histórias pessoais parecidas, então é bem legal ver que atinge não só crianças.
Fran Matsumoto: Sim, tem inspiração na minha própria experiência com a chegada da minha irmã, que é 8 anos mais nova que eu. Eu pedia para os meus pais uma irmã, mas eu achava que ela iria vir do meu tamanho e ser uma amiga que está sempre em casa e pode sempre brincar comigo. Quando ela finalmente veio, eu já sabia que ela não viria do meu tamanho, mas acabei usando isso como ideia para o livro.
Fran Matsumoto: Com certeza. Eu gosto muito de todos os livros e referências que coloquei no livro, e achei que seria legal criar esse universo do irmão mais novo, um universo formado por muitos monstros.
Fran Matsumoto: Acho que a infância nos convida a ver as coisas de outros ângulos e perspectivas, explorar mesmo. Tanto no âmbito da imagem, que elas observam muitos cantinhos e detalhes, quanto no âmbito da linguagem. Diferentes jogos e brincadeiras de palavras, ritmos diferentes podem ser uma exploração também da língua e das possibilidades dela. Além disso, o livro-álbum proporciona muitas camadas para serem desveladas, não só na imagem e no texto, mas também no design, no formato, no papel, na textura, o objeto todo permite essa exploração.
Fran Matsumoto: Eu tenho um caderno de ideias. Às vezes, surge uma ideia no meio da noite e eu preciso anotar, senão não consigo dormir com medo de esquecer. Depois vou ler e muitas vezes nem parece grande coisa. Ou então não consigo entender qual era a ideia original. Mas até isso é legal, porque lendo umas coisas aparentemente meio sem sentido, surgem outras, e acaba sendo uma bola de neve.
“Eu tiro muita ideia das minhas próprias vivências. Infelizmente eu tenho muito mais projeto do que consigo produzir, então os livros vão saindo muito aos poucos", Fran Matsumoto, escritora e ilustradora
Fran Matsumoto: Eu tenho muitas inspirações. Eu gosto muito do Shaun Tan e das suas histórias mais oníricas. Amo as ilustrações do Sidney Smith e da Beatrice Alemagna. Gosto muito do humor do Jon Klassen. Adoro como a Suzy Lee pensa a estrutura do livro. E uma grande inspiração brasileira pra mim é a Lúcia Hiratsuka, por quem eu tenho muito carinho, ela tem livros maravilhosos e é uma pessoa incrível também.
Fran Matsumoto: Eu não costumo ver muito. Acho que a primeira pessoa que penso mesmo nesse sentido é a própria Lúcia, que trabalha isso belissimamente. Tenho pensado em criar um livro que aborda aspectos da minha cidade, inclusive já conversei com a Lúcia sobre, mas é um dos projetos que está no meu caderninho de ideias e ainda não desenvolvi muito.
Fran Matsumoto: Acho que “família” é uma delas, porque mesmo sem pensar ativamente nisso, esse tema sempre acaba entrando nos meus livros. Talvez “natureza”, que também por eu ser bióloga, acabo sempre pensando bastante tanto em questões, quanto em elementos da natureza. E acho que agora, nos meus últimos projetos, “monstros” entraram bastante.
Fran Matsumoto: Acho que literatura para as infâncias é literatura, podendo atingir leitores de todas as idades. A literatura para as infâncias é uma literatura, assim como as outras, que também permite diferentes tipos de aproximações com o livro, muitas leituras e camadas, além de ser importante na formação de leitores. E a infância é um período de grande exploração, e poder explorar o livro de todas as formas é muito rico.
Fran Matsumoto: Para ganhar vida!
(Texto: Renata Penzani)
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