A raiva é nossa amiga

23/09/2024

Você conhece o baiacu? Essa espécie de peixe, que pode viver tanto em água doce como em água salgada, tem uma característica muito marcante: quando se sente ameaçado, começa a inflar, inflar e inflaaar... chegando a triplicar de tamanho. Tudo isso para espantar seus oponentes. Ele também pode liberar uma toxina capaz de paralisar os músculos de suas vítimas, impedindo-as de respirar – um golpe fatal.

O baiacu que adorava fantasias

Capa de 'O baiacu que adorava fantasias (Brinque-Book, 2024) da Banda Fera Neném 

Mas o baiacu cuja história é contada no livro-canção O baiacu que adorava fantasias (Brinque-Book, 2024), da Banda Fera Neném, não queria nada além de se fantasiar. Ele usava plumas, tutu, brilhos e tantos outros adereços para se vestir como outros peixes - e até como uma sereia. E adorava o resultado. O problema é que os outros peixes sempre zombavam dele. Toda vez que o baiacu estava achando sua fantasia o máximo, vinha algum desagradável dizer que aquilo não tinha nada a ver. E aí ele ficava tão chateado e com tanta raiva, que começava a inflar, inflar e inflar... Até a fantasia rasgar. 

O baiacu não é o único bicho que se infla (e parece prester a explodir!) quando enfurecido. A raiva é um sentimento comum a seres das mais diversas espécies, incluindo a nossa a dos humanos.

“Nós somos bichos e, como bichos, precisamos saber nos proteger”, diz a psicanalista e especialista em saúde mental Elisama Santos, autora de livros como Por que gritamos? e Conversas corajosas (Editora Paz e Terra). Ela explica que é justamente por isso que nascemos com certa agressividade, que é natural, e faz parte da nossa existência. A questão é que como não aprendemos a lidar com a raiva, às vezes deixamos a nossa agressividade agir de forma descontrolada - e destrutiva.

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Raiva: um incômodo necessário - e que precisa ser dosado

Embora ninguém goste muito de sentir a raiva, é importante lembrar que todo sentimento é válido e essencial para que vivamos bem. “Tudo o que nós sentimos tem uma razão de existir e nos conta algo importante sobre nós”, explica Elisama. A raiva, entre outras emoções que talvez não sejam classificadas como “agradáveis”, comunica, por exemplo, que alguma necessidade sua não está sendo atendida. 

“A criança, como todo filhote, nasce com essa capacidade de defender a si mesma, de defender o que é importante para ela, de demonstrar a frustração, o que, em regra, vem com a raiva”, afirma. Porém, conforme crescemos e convivemos em sociedade, aprendemos que é errado demonstrar sentimentos mais difíceis e que normalmente chateiam quem está por perto. “Talvez a raiva seja o maior deles”, pontua Elisama.

Você já viu uma criança pequena com raiva? Ela chora, se joga no chão, ataca objetos, bate, morde... O problema não está em sentir raiva, já que se trata de uma emoção natural, que nasce conosco e que serve como proteção. O problema, é que no caso das crianças em especial - e de alguns adultos - faltam mecanismos para controlar a erupção que essa emoção pode provocar, causando o que parece ser uma reação desproporcional.

E isso não acontece só com crianças humanas - nem só com baiacus. “Filhotes de animais peçonhentos costumam inocular mais veneno do que um animal adulto”, explica Elisama. Isso acontece porque o filhote ainda não sabe medir o tanto de veneno necessário para cada situação, para cada ameaça, para o tamanho de cada bicho. E acaba inoculando todo o seu estoque. “Os nossos filhotes, humanos, também são assim”, compara a psicanalista. “A questão é que, à medida que esse ‘filhote’ cresce, ele nem sempre tem um exercício de entender a raiva, de tentar compreender o que esse sentimento está comunicando e de desenvolver ferramentas saudáveis, respeitosas – com nós mesmos e com os outros – para lidar com essa raiva”, explica.

Como usar a raiva como propulsora - e não destruidora

A raiva pode nos ajudar em inúmeras situações. Ela nos protege de perigos, nos mantém alertas e é uma expressão de nossa indignação com alguma situação que consideramos prejudicial ou injusta, com nós mesmos e com os outros. Por isso, é importante que as crianças saibam desde cedo que este é um sentimento mais do que normal e válido, que nos protege e também nos move.

Quando conseguimos usar a energia que a raiva desperta (e que nos faz sentir que estamos prestes a explodir) de forma não destrutiva, ela pode nos impulsionar.Em vez de gritar para aliviar a fúria, podemos aprender a comunicar de forma firme e assertiva os nossos limites - e cobrar que eles sejam respeitados! Em vez de nos jogar no chão quando somos vítimas de alguma injustiça, podemos mobilizar outras pessoas que passaram por situações semelhantes para buscar uma solução.  É claro que para isso, precisamos desenvolver algumas ferramentas para aprender a transformar a raiva em ação. 

Você já parou para pensar quantos direitos foram conquistados porque alguém se indignou? Porque alguém ficou furioso com uma injustiça?

 A raiva pode ser o empurrão que necessitamos para agir. Por isso, o objetivo não dever ser eliminá-la mas utilizá-la com sabedori, e sempre na medida adequada, sem que isso nos machuque ou machuque quem está próximo. Aos poucos, as crianças também vão aprendendo a "dosar" essa energia que a raiva desperta, assim como o filhote de cobra, o baiacu e várias outras espécies. 

O baiacu adorava se vestir de outros bichos,, mas recebia críticas

O baiacu adorava se vestir de outros bichos, mas recebia críticas e acabava perdendo a cabeça em O baiacu que adorava fantasias (Brinque-Book, 2024) da Banda Fera Neném 

Como ajudar a criança a lidar com a raiva?

É exatamente aí que entra – ou que deveria entrar – o adulto. “Os pais ou os responsáveis pela criança precisam ajudá-la a identificar o que causa raiva e a criar outras ferramentas para lidar com ela”, diz a psicanalista, que também é educadora parental. “Tem um ditado popular que diz: ‘Para quem só tem martelo, qualquer objeto é prego’. A criança nasceu com o martelinho dela, que é a forma com que ela sabe lidar com a raiva. Aos poucos, ela precisa adquirir outras ferramentas, precisa entender que, sim, existe o martelo, mas tem também a chave-de-fenda, a chave-inglesa, tem toda uma caixa enorme”, ensina Elisama. “À medida que crescemos e ampliamos essa caixa de ferramentas, vamos aprendendo a lidar melhor com as emoções, de formas mais saudáveis”, acrescenta.  

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Ela reforça que a raiva é essencial para a nossa sobrevivência e que a indignação é vital para o ser humano. “Mas ela é como se fosse uma capinha. Tem sempre outro sentimento por baixo dela”, aponta. Pode ser medo, angústia, tristeza... Para entender e conseguir tirar essa capinha e ver o que está escondido, é preciso olhar para esse sentimento e saber lidar com ele. É preciso ouvir o que ele quer nos comunicar.

Como fazer isso na prática? O primeiro passo, segundo Elisama, é ensinar a criança a reconhecer quando ela está com raiva. O baiacu infla. O que acontece com o corpo da criança? O coração acelera? Dá vontade de chorar? Dá vontade de bater? “A reação é diferente para cada um de nós e é importante a criança reconhecer como a raiva chega nela”, explica.

Cada criança vai ter um jeito de sentir a raiva e, por isso, o jeito de lidar com ela também é único e individual. “Respirar fundo pode ser muito bom para a Maria, mas, para o João, pode não funcionar. Pode ser muito bom para Pablo, mas para Joaquina pode ser muito difícil, dependendo do estágio em que a raiva está”, exemplifica. “É preciso descobrir como a raiva se manifesta em cada criança, para ajudar essa criança a entender o que é aquela vontade de bater, aquele coração acelerado, os músculos tensos, a garganta seca”, afirma.

A partir desse reconhecimento, fica mais fácil entender o que está acontecendo, quais podem ser os motivos e como lidar com o sentimento da melhor forma. “Pode ser dançando, pode ser pulando bem forte, pode ser rugindo, como um leão”, diz a especialista. “Muitas vezes, eu pedia que meu filho desenhasse a raiva que estava sentindo”, conta. “Ele pegava o giz de cera e aquilo parecia uma faca. Ela ia desenhando, desenhando e, daqui a pouco, a mão amolecia, o lápis já estava sendo segurado de uma maneira mais tranquila. Isso porque a raiva veio, foi identificada, foi vivenciada de forma respeitosa com ele e com o outro e foi embora”, relata.

A raiva pode ser nossa amiga

Com cada criança funciona de um jeito, mas o principal é sentir a raiva, deixar que ela flua e aprender, aos poucos, o que fazer para experimentar e ouvir esse sentimento, sem deixar que ele rasgue as fantasias que tanto nos fazem feliz - como tantas vezes aconteceu com o baiacu.

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