Trecho do livro FEITORES DO CORPO, MISSIONÁRIOS DA MENTE

INTRODUÇÃO [...] o dono de certo número de escravos rústicos, sendo bom agricultor, preenche somente a metade de sua tarefa, devendo juntamente possuir e exercer as partes que constituem o bom chefe de um pequeno reinado, no qual, por governar despoticamente, e acumular as atribuições de legislador, magistrado, comandante, juiz e algumas vezes de verdugo, nem por isso é menos responsável do seu bom governo, do qual depende a prosperidade da família. Por tanto, trataremos de entrada, e mais largamente do que outro qualquer assunto, um objeto de interesse tão transcendente como é a conduta e disciplina dos escravos. Carlos Augusto Taunay, Manual do agricultor brasileiro, 1839. [...] a profissão de um administrador requer a experiência de muitos anos, além de uma boa dose de sagacidade e moderação; toda escravaria é uma comunidade, e a pessoa que a comanda um déspota que exerce as funções diversas de administrador, médico e juiz, de cuja sentença não há apelação. Eu pouco conheço uma posição com tamanha responsabilidade, ou que demande habilidades mais vastas, quanto esta [...] Dr. Collins, Practical rules for the management and medical treatment of negro slaves in the sugar colonies, 1803. Capítulo Segundo. Dos negros, de seu caráter, das diferentes nações importadas em nossas ilhas, e da maneira de administrar os escravos considerados sobre todos os aspectos. Este capítulo [é] o mais essencial de todos [...] Poyen Sainte-Marie, De l'exploitation des sucreries, 1792. Esses três trechos foram escritos por senhores de escravos do Novo Mundo em idiomas, tempos e espaços diferentes. O primeiro trecho voltava-se para os produtores rurais escravistas do Império do Brasil; o segundo, para os proprietários e administradores dos engenhos de açúcar das Antilhas inglesas da primeira década do século XIX; o terceiro, para esses mesmos grupos nas Antilhas francesas de fins do século XVIII. Apesar dessa diversidade, a mensagem desses textos - todos eles manuais agrícolas - era unívoca: a administração dos escravos era a principal questão a ser enfrentada pelos proprietários rurais do Novo Mundo que tinham sua produção destinada ao mercado mundial. A historiografia sobre a escravidão moderna cedo percebeu a importância do assunto para a compreensão dos sistemas escravistas coloniais e nacionais das Américas. Desde a primeira metade do século XX, diversos historiadores reservaram um bom espaço em seus trabalhos para o exame da administração de escravos nas diferentes regiões americanas de plantation. O tema, contudo, verificou um verdadeiro salto somente nas últimas três décadas, acompanhando o boom dos estudos sobre a escravidão moderna ocorrido a partir de então. Há, na historiografia atual, duas linhas gerais de investigação do tema, uma derivada da New Economic Historye a outra da Labor History. A primeira delas, a cliometria, busca aplicar métodos econométricos à análise da escravidão moderna, com o propósito de discutir a eficiência econômica da instituição do cativeiro. A segunda linha, a história social do trabalho, inspirando-se nas obras de E. P. Thompson e Herbert Gutman sobre a formação da classe operária na Inglaterra e nos Estados Unidos, tem por objeto, como seu nome indica, a história social dos trabalhadores escravos. As investigações que seguem essa linha examinam as relações entre trabalho e vida escrava tomando a análise do processo de trabalho como o foco de suas pesquisas. A cliometria e a história social do trabalho contribuíram de modo notável para o conhecimento das práticas de administração dos escravos nas plantations do Novo Mundo. No entanto, muito resta a ser feito sobre o tema. Em sua maioria, os estudos disponíveis são bastante circunscritos no tempo e no espaço; há certas regiões escravistas que não foram examinadas; os esforços de síntese ainda são poucos. O que importa salientar, acima de tudo, é que esses estudos se ocuparam exclusivamente das práticas de administração dos escravos. Noutros termos, ainda não há, na historiografia da escravidão moderna, uma análise das idéias sobre a gestão escravista. Tal é o objeto deste livro: as idéias sobre a administração dos escravos elaboradas nas Américas entre os séculos XVII e XIX. O trabalho lida, portanto, com dois séculos da vigência da escravidão negra em diferentes espaços do Novo Mundo: Brasil, entre a segunda metade do século XVII e a década de 1860, Caribe inglês e francês, entre a segunda metade do século XVII e fins do século XVIII, e sul dos Estados Unidos e Cuba, entre a segunda metade do século XVIII e a década de 1860. O corte cronológico inicial explica-se pelo fato de as primeiras reflexões impressas sobre a administração dos escravos das plantations do Novo Mundo terem aparecido somente na segunda metade do XVII; o corte final, pela derrocada do escravismo no sul dos Estados Unidos, que, ao representar a queda da maior sociedade escravista do continente americano, teve impacto decisivo na determinação do fim da escravidão nas demais regiões das Américas (Cuba e Brasil) que mantinham o emprego do braço cativo. O corpus documental da pesquisa, por sua vez, é formado por textos impressos coevos que trataram do tema da administração dos escravos nas plantations americanas e que prescreveram normas sobre o assunto: tratados morais, tratados de história natural, memórias econômicas, artigos e manuais agronômicos redigidos por letrados, autoridades coloniais e proprietários rurais, publicados tanto na Europa quanto no Novo Mundo. Os três textos citados na abertura do livro são um bom exemplo do tipo de material que será aqui examinado. O uso desse corpus se justifica pelo fato de as publicações permitirem não só um bom controle do objeto sob investigação, mas sobretudo o exame das idéias na diacronia. O caráter prescritivo dos textos a serem analisados os transformam em documentos privilegiados para se estudar o ideário da administração de escravos: dado o propósito de organizar a produção agrícola escravista, esses escritos simultaneamente sintetizaram práticas de gestão anteriores e propuseram práticas futuras. A análise dos textos prescritivos sobre administração de escravos permite examinar o quadro mental e material envolvido no ato de elaboração das idéias sobre o assunto, pois esses textos foram organizados com base em concepções formuladas em redes de conhecimento historicamente distintas e pretenderam intervir em contextos materiais específicos, isto é, buscaram responder aos problemas das sociedades escravistas a que pertenciam seus autores. Na verdade, os escritos sobre a administração dos escravos voltaram-se para uma situação muito concreta do mundo social: o controle dos trabalhadores cativos. Todos os textos sobre o tema procuraram dar conta do embate senhor-escravo. A natureza desse embate, contudo, não foi sempre a mesma, e tampouco foram iguais as ferramentas mentais utilizadas pelos autores dos textos sobre administração dos escravos. O estudo das idéias sobre a gestão escravista, por conseguinte, exige a investigação tanto dos instrumentos intelectuais que lhes deram sustentação quanto das sociedades escravistas em que procuraram intervir. As sugestões metodológicas de Quentin Skinner e John Pocock sobre a história das idéias são de grande valia para esta pesquisa. Segundo Skinner, para apreender o sentido histórico dos textos do passado, o historiador deve compreender as intenções que guiaram o autor na redação de seu texto e, para tanto, há que atentar ao contexto intelectual e social no qual foi produzido o escrito em questão. O contexto intelectual é constituído pelo conjunto de escritos redigidos ou utilizados no período, dirigidos a questões semelhantes, e que empregaram algumas convenções intelectuais comuns (vocabulário, concepções, assertivas, categorias, conceitos, formas de combinação dos conceitos e categorias empregados). Nesse ponto, Pocock lembra a distinção saussuriana entre langue e parole: o conjunto das convenções intelectuais disponíveis equivaleria à langue, enquanto o texto em si corresponderia à parole. Ao redigir um texto qualquer, seu autor se vale das convenções intelectuais disponíveis para tratar do assunto que é o objeto de seu texto, ordenando os conceitos e categorias que constituem essas convenções com o objetivo de interferir em seu contexto social concreto. Ao elaborar tal método, esses dois autores tiveram em vista a história do pensamento político. Por esse motivo, quando trataram da contextualização do mundo social, quase sempre Skinner e Pocock contentaram-se tão-só em estudar o jogo político e suas instituições. Para o estudo das idéias de gestão escravista que se pretende realizar aqui, é necessária uma definição mais abrangente de contexto social. O exame do contexto intelectual no qual foram produzidos os escritos que trataram da administração dos escravos das plantations do Novo Mundo cuidará das convenções intelectuais empregadas por esses textos, a saber, as convenções sobre oikonomia e agronomia do mundo greco-romano, o discurso bíblico das obrigações recíprocas, e as convenções da economia política e da nova agronomia dos séculos XVIII e XIX. Portanto, a contextualização intelectual das publicações sobre a administração dos escravos será efetuada com base no que se pensou e escreveu no espaço atlântico sobre agronomia e economia. A análise do contexto social dos escritos em tela, por outro lado, encarregar-se-á das tensões políticas, sociais e econômicas dos diferentes sistemas escravistas do Novo Mundo, buscando apontar em que medida essas tensões motivaram ou não o aparecimento dos textos sobre administração de escravos e de que forma esses textos procuraram interferir em seus respectivos contextos materiais. O livro reporta-se a uma questão mais ampla, que vem sendo investigada pela historiografia nas últimas duas décadas: as relações entre escravidão e modernidade. Por meio da análise do impacto do discurso econômico surgido no mundo atlântico a partir de meados dos setecentos nas reflexões sobre a gestão escravista, pretende-se discutir aqui em que medida a escravidão negra das Américas, entre fins do século XVIII e meados do XIX, foi compatível com a modernidade econômica e política, isto é, com instituições como a economia de mercado ou o Estado nacional liberal. Os principais objetivos do livro podem ser resumidos em dois pontos. Em primeiro lugar, examinar de que modo os senhores e letrados que escreveram sobre a gestão escravista a partir da segunda metade dos setecentos, valendo-se das ferramentas mentais da economia política, propuseram uma série de mecanismos para aumentar a produtividade do trabalho escravo, com vistas ao incremento das suas unidades produtivas conectadas ao mercado mundial. Em segundo lugar, enfatizando a dimensão política do governo dos escravos, analisar como o princípio da soberania doméstica - isto é, o princípio de que os pontos básicos da dominação escravista caberiam exclusivamente ao livre-arbítrio dos senhores - adequou-se tanto às formas políticas patriarcais do Antigo Regime como às formas liberais dos Estados nacionais oitocentistas. Para tanto, o trabalho foi dividido em três partes. A primeira, composta por um único capítulo, examina a teoria cristã seiscentista do governo dos escravos, calcada nas convenções intelectuais da literatura grega sobre a oikonomia, dos tratados romanos de agricultura e do discurso bíblico das obrigações recíprocas, tal como foi apresentada em tratados morais e de história natural redigidos por missionários europeus no Novo Mundo (jesuítas, dominicanos, anglicanos). A segunda parte, composta por quatro capítulos, trata das idéias sobre o governo dos escravos elaboradas nas Américas entre a segunda metade do século XVIII e o início do XIX, dentro dos quadros mentais inaugurados pela Ilustração. O capítulo 2 analisa as mudanças ocorridas a partir de meados do século XVIII nas convenções intelectuais disponíveis para tratar da administração dos escravos e as tensões políticas, sociais e econômicas do sistema escravista caribenho nesse mesmo período; o capítulo analisa ainda o processo de formação - nas Antilhas francesas e inglesas - de uma teoria sobre a administração dos escravos, fundada sobre premissas bastante distintas das que sustentaram a teoria cristã do governo dos escravos, e também o modo pelo qual a nova teoria procurou interferir em seu contexto material imediato. O capítulo 3 faz uma apresentação do conteúdo dessa teoria, de suas premissas, conceitos e prescrições. O capítulo 4 examina as propostas feitas pelos ilustrados hispano-cubanos e luso-brasileiros para a reforma do governo dos escravos nas Antilhas espanholas e na América portuguesa na passagem do século XVIII para o XIX. O capítulo 5 trata das práticas de administração dos escravos na América do Norte, e explica por que não foram elaborados, nessa região, textos prescritivos sobre o assunto até o início do século XIX. Finalmente, a terceira parte é composta por três capítulos, que tratam das teorias de administração dos escravos construídas no Brasil, em Cuba e nos Estados Unidos entre 1820 e 1860. As teorias oitocentistas escoraram-se nas mesmas convenções intelectuais que deram sustentação à teoria ilustrada da administração dos escravos, mas procuraram interferir em contextos materiais profundamente distintos, sobretudo nos marcos dos Estados nacionais do Brasil e dos Estados Unidos. Cabe um esclarecimento ao leitor acerca do significado do vocábulo "teoria" adotado neste trabalho. A acepção da palavra no vocabulário científico e filosófico contemporâneo contrapõe, por um lado, teoria à prática, e, por outro, teoria ao senso comum. A acepção assumida pelo vocábulo neste trabalho tem um significado diferente, seguindo um sentido que foi corrente entre os séculos XVI e XIX e que não o contrapõe em termos antagônicos à prática. Assim, por "teoria", entende-se um conjunto articulado de idéias destinadas a explicar e a guiar a prática. Para um conjunto de idéias sobre a administração dos escravos constituir uma teoria são necessários o emprego de convenções intelectuais adequadas (por exemplo, o discurso sobre a oikonomia, o discurso bíblico das obrigações recíprocas ou o discurso da economia política) e a sistematização de normas a partir das categorias fornecidas por essas convenções. Nessa acepção, não há dicotomia entre teoria e prática: as teorias sobre a administração dos escravos são saberes voltados para a ação; elas nascem de práticas gerenciais pretéritas, reelaboradas de acordo com as ferramentas mentais mobilizadas, e buscam informar as práticas administrativas futuras. Seu conteúdo, ao mesmo tempo descritivo e normativo, implica que as teorias aqui examinadas procuram apreender a totalidade da relação senhor-escravo, apresentando quase sempre, além das prescrições para a gestão escravista, uma defesa orgânica da instituição. Os textos em inglês, francês e espanhol citados no livro - tanto das fontes como dos historiadores - foram traduzidos para o português, com os cuidados necessários para que não houvesse nenhuma modificação de sentido. [...]