Trecho do livro O ARQUIPÉLAGO - VOL. 2

Lenço encarnado [continuação] 18 Maria Valéria costumava ler os jornais todos os dias, com os óculos acavalados no longo nariz. Flora gostava de observá-la nessas ocasiões. A velha não podia ler sem mover os lábios. De vez em quando fazia um comentário em voz alta - hum! -, encolhia os ombros - mentira! - ou sacudia a cabeça - boa bisca! - e assim por diante... Naquela tarde de maio a Dinda lia o Correio do Povo, sentada na sua cadeira de balanço, enquanto Flora bordava a seu lado. As crianças brincavam no vestíbulo, numa grande algazarra. - Vão pro quintal! - gritou a velha. - Não posso ler com esse barulho. Flora ergueu-se para fazer que os filhos cumprissem a ordem. Ao passar pela sala de visitas, surpreendeu Sílvia sentada na frente do retrato de Rodrigo, as mãos pousadas no regaço, uma névoa triste nos olhos. Quando deu pela presença da madrinha, ficou perturbada, como se a tivessem pilhado a roubar doces na despensa. Flora compreendeu tudo e comoveu-se. - Minha querida! - exclamou. - Que é que estás fazendo aqui sozinha? Vai lá pra cima brincar com a Alicinha. Quando voltou para a sala de jantar, minutos mais tarde, Maria Valéria lançou-lhe um olhar por cima dos óculos e perguntou: - Que bicho será este? - Que bicho? A velha tornou a baixar o olhar para o jornal e leu: - Habeas corpus. Todo o mundo está pedindo esse negócio. - Ah! Deve ser coisa de advogado. O Rodrigo uma vez me explicou. Parece que é para tirar uma pessoa da cadeia. - Hum... Muitos assisistas tinham sido presos em Porto Alegre e outras localidades do estado: jornalistas, políticos e gente do povo. A coisa ficava cada vez mais preta. A Dinda ergueu-se, brusca, amassou com raiva o jornal e atirou-o em cima duma cadeira, como se aquelas folhas de papel fossem as principais responsáveis pela situação em que se encontrava o Rio Grande e o resto do mundo. Aproximou-se da janela e olhou para fora. - Chii! - exclamou. - Estamos bem arranjadas... - Que foi que houve? - A dona Vanja vem nos visitar. Está atravessando a rua... Flora sorriu. Maria Valéria embirrava com a tia de Chiru. D. Evangelina Mena era uma velha limpinha e ágil, com algo de passarinho nos movimentos e no olhar. Grande ledora de novelas folhetinescas, falava difícil, empregava vocábulos e frases que a gente em geral só encontra em livros ou notícias de jornal. Era talvez a única pessoa em Santa Fé que usava palavras como alhures, algures e nenhures. Nunca pedia silêncio; sussurrava: caluda! Quando queria estimular alguém, exclamava: eia! Sus! - Caspité! era uma de suas interjeições prediletas. Para ela povo era sempre turbamulta; mãe, genitora; vaga-lume, pirilampo; cobra, ofídio. Tinha seus adjetivos, advérbios, substantivos e verbos arrumadinhos aos pares. Aspiração nunca se separava de lídima. Massa sempre andava junto com ignara. E podia haver uma coisa preparada que não fosse adrede? Sorrindo, Flora foi abrir-lhe a porta. Tinha uma ternura particular por d. Vanja. Divertia-se e ao mesmo tempo comovia-se com essas peculiaridades da velhinha que tanto irritavam Maria Valéria. E ali estava a criatura agora no portal do Sobrado, com seus olhos azuis de boneca, suas roupas imaculadas, um chapéu com flores e frutas de pano posto meio de lado na cabeça completamente branca. No rostinho enrugado e emurchecido, havia ainda uma certa graça e vivacidade de menina. - Olaré! Flora abraçou-a e beijou-a. - Entre, dona Vanja. Mas suba devagarinho a escada. Maria Valéria recebeu-a com um simples aperto de mão e imediatamente seus olhos de Terra focaram-se, críticos, na tia de Chiru. Reprovava a maneira como ela se vestia. Só faltava botar bananas, laranjas e abacaxis como enfeites no chapéu! E verde-claro era lá cor que uma mulher velha e viúva usasse? D. Vanja sentou-se, pediu notícias de Licurgo e dos "meninos". Apesar de ter verdadeira adoração pelo sobrinho, não parecia muito preocupada por sabê-lo na revolução. Para ela, aquele movimento armado era apenas uma espécie de parada. Romântica, só via o lado glorioso das guerras. Recitava com freqüência "O estudante alsaciano", sabia frases célebres de grandes generais da história. Sonhava com ver Chiru voltar da revolução feito herói, "feliz, coberto de glória, mostrando em cada ferida o hino duma vitória" - como dizia o poema. Não lhe passava pela cabeça a idéia de que seu querido sobrinho pudesse ser morto. Preocupava-se um pouco, isso sim, com a possibilidade de o "menino" apanhar algum resfriado, a senhora sabe, "as marchas forçadas nessas estepes do Rio Grande, nos dias hibernais que se aproximam, as geadas branquejando as campinas infinitas... enfim, todas essas contumélias da sorte, inclusive o perigo de comer alguma fruta verde e ter algum distúrbio intestinal, que Deus queira tal não aconteça". - E vacê como vai? - perguntou-lhe Maria Valéria, sem o menor interesse. A visitante disse que ia bem "graças ao Supremo Arquiteto do Universo". (Era viúva dum maçom.) Ao dizer essas palavras alisou uma prega da saia. Depois abriu a bolsa bordada de contas de vidro coloridas e tirou de dentro dela um lencinho rendado recendente a patchuli. Soltou um suspiro. - Mas estou muito triste, hoje... - murmurou. - Que foi que aconteceu? - Não leram então o Correio do Povo? Flora teve um sobressalto. - Alguma notícia ruim? - Muito ruim. Morreu a Jacqueline Fleuriot. - Quem? - Então não sabem? A personagem principal d'A ré misteriosa, que o Correio estava publicando em folhetim. Apareceu hoje o último episódio. O jovem causídico finalmente descobriu que a ré que ele defendia tão ardorosamente, por pura piedade, outra não era que sua própria genitora. Muito tarde, tarde demais! Com a saúde minada por tantas emoções, a pobre Jacqueline, depois de abraçar o filho, entregou a alma ao Criador. Maria Valéria e Flora entreolharam-se. Uma revolução convulsionava todo o estado, irmãos se matavam uns aos outros nos campos e nas cidades, e ali estava d. Evangelina Mena com os olhos cheios de lágrimas por causa d'A ré misteriosa. Era demais! Maria Valéria sentiu a necessidade de fazê-la voltar à realidade. - Fiz uns quindins hoje de manhã - disse. - Vacê quer? O rosto de d. Vanja resplandeceu. - Adoro quindins! São como pequenos sóis, não é mesmo? ou como medalhões de ouro de algum potentado asiático, não acha? Já de pé, a outra replicou: - Não acho. Pra mim, quindim é quindim. O principal é que esteja bem-feito. Pronunciou essas palavras e marchou na direção da despensa. 19 No dia seguinte, ao entardecer, o cel. Barbalho apareceu fardado na casa dos Cambarás para dizer às mulheres que, embora a posição do Exército fosse de rigorosa neutralidade naquela "luta fratricida", ele considerava seu dever de militar e de brasileiro zelar pela segurança e tranqüilidade de todas as famílias, sem distinção de credo político, e garantir a inviolabilidade de todos os lares, bem como os direitos civis de cada cidadão. - Não permitirei abusos - disse, sentado muito teso na cadeira. - Quero saber se posso ser-lhes útil em alguma coisa. Flora estava comovida com as palavras do comandante da guarnição. Não, não precisavam de nada especial, e ficavam muito gratas... Maria Valéria interrompeu-a: - O senhor sabe o que fizeram pro Arão? - perguntou. - Pois dês do dia que os provisórios quiseram agarrar o rapaz, achamos melhor ele ficar aqui em casa. Mas, que diabo! O vivente não pode passar o resto da vida escondido atrás de nossas saias. O coronel engoliu em seco: - Já providenciei - disse. - Avistei-me com o coronel Madruga. Prometeu não só deixar o moço em paz como também cessar esse recrutamento forçado, a maneador. Fez-se um silêncio. Flora não encontrava assunto. O militar também não falava. Maria Valéria, que odiava uniformes, esfriava o visitante com a geada de seu olhar. Naquela noite deram a notícia a Arão Stein, que ficou contente por saber que poderia voltar para casa. Maria Valéria também sentiu um desafogo. Gostava do judeu à sua maneira seca e secreta. Durante os dias em que o tivera como hóspede, impacientava-se ante as visitas diárias de d. Sara, que, gorda, duma brancura de queijo caseiro, e arrastando as pernas de elefante, vinha "lamber a cria". Ficava a um canto a choramingar, abraçada ao filho, lambuzando-lhe o rosto de beijos. Maria Valéria achava indecentes aquelas demonstrações exageradas de amor. À noite, os Carbone também apareceram. Só dois assuntos despertavam realmente o interesse de Carlo: cirurgia e culinária. Falava de ambos com o mesmo gosto, a mesma gula. As mulheres do Sobrado achavam difícil manter uma conversação com ele. Santuzza subiu para o andar superior, logo ao chegar. Costumava fazer dormir as crianças com suas canções de berço. Bibi adormeceu logo. Jango recusou-se a deixá-la entrar no quarto. Edu recebeu-a de má catadura, fechou os olhos enquanto a italiana, sentada na beira de sua cama, cantava baixinho. Depois de uns instantes abriu um olho e disse: "Não grita que eu quero dormir". Para Alicinha, que estava deitada com a boneca ao lado, Santuzza contou histórias de gnomos, gigantes, príncipes e fadas - aventuras que se passavam em países estranhos, onde havia florestas de pinheiros e grandes montanhas cobertas de neve. Roque Bandeira apareceu pouco antes das nove e ficou a conversar com Arão Stein no escritório. Discutiram a revolução à luz das últimas notícias. - Não vais negar - disse Tio Bicho - que mesmo sem levar em conta princípios e idéias, essa revolução tem seu lado bonito. Revela pelo menos a fibra da raça. Sabes que há um menino de quinze anos nas forças de Zeca Neto e um velho de oitenta e oito com Felipe Portinho? E sabes que ambos são igualmente bravos? Isso não te diz nada? Stein sacudiu a cabeça negativamente: - Diz, mas não o que estás pensando. - Considera só a fama que está conquistando o general Honório Lemes. É um caboclo iletrado, simples, e no entanto se vai transformando num ídolo popular, num grande caudilho, num símbolo... - Fugindo sempre... - Nem sempre. Luta quando lhe convém, e isso é de bom general. Esquiva-se quando não lhe convém lutar. Depois, deves saber que ele tem pouca munição. Mas o interessante é que o homem deixa o inimigo louco, desnorteado, com seus movimentos. Quando a gente imagina que o general Honório está num lugar, ele surge noutro completamente inesperado... Stein encarou o amigo. - Não sejas romântico. Não sejas obtuso. Esqueces que quem está morrendo na revolução é o homem do povo, o que sempre viveu na miséria, passando fome, frio e necessidades. Morrem porque são fiéis aos seus patrões, aos seus chefes políticos, ao seu partido, à cor de seu lenço. O mundo capitalista sempre procurou exaltar, através de seus escritores assalariados, essa fidelidade estúpida a coisas inexistentes, esse entusiasmo por mitos absurdos. Sabes por quê? Porque isso convém aos seus interesses. Que é que o povo lucra com uma revolução como essa? - E não achas que há uma certa beleza no fato de eles brigarem sem pensar em vantagens? - Não acho. O erro está exatamente nisso. Deviam pensar em resultados materiais. Ser maragato ou republicano na verdade não significa nada. As revoluções se fazem para melhorar as condições sociais. Que é que esperas dessa revolução? O voto secreto? Mas de que serve isso se o povo não se educa, não aprende a usar o seu voto, a escolher o seu candidato? O que pode resultar dessa choldra toda é uma mudança de patrão. O povo continuará na mesma, mal alimentado, malvestido, infeliz... Tio Bicho sorria. - Não esqueças que estás na casa dum homem que acredita na revolução e que, mal ou bem, está na coxilha, brigando e arriscando a própria vida. - Eu sei. Achas que sou um ingrato, que esqueci o que o doutor Rodrigo fez por mim. Não. A coisa é outra. Ele não precisa da minha gratidão, nem acho que a deseje. Gosto dele como pessoa, mas me sinto com mais obrigações para com o povo do que para com ele. O doutor Rodrigo é rico, culto, pode fazer pela própria vida. Mas os outros... Bandeira bocejou, espichou as pernas, afundou o corpanzil na poltrona de couro. - Não sei... Pode ser que tenhas razão, mas deves compreender que fui criado no meio dessa tradição... Não sou indiferente a certos valores gauchescos. Nem todas as minhas leituras racionalistas conseguiram me imunizar contra esse micróbio. Quando leio sobre um ato de bravura, sinto um calafrio. Uma coisa te digo. Tem havido heróis de ambos os lados. Mesmo esses pobres-diabos pegados a maneador, às vezes brigam como gente grande, morrem peleando, não se entregam. Podes dizer o que quiseres, há um aspecto positivo nessa revolução. - Besteiras românticas de pequeno-burguês intelectual. Estás condicionado, meu filho. Vocês letrados glorificam a guerra, vivem com essa história de hinos, bandeiras, tambores, clarinadas, cargas de baioneta, et cetera. Pois os marxistas aí estão pra mudar tudo isso. Pode levar algum tempo, não espero viver suficientemente para ver a sociedade nova. Muitos de nós, talvez eu mesmo, seremos sacrificados, torturados, assassinados... Mas a revolução socialista vai para a frente. Isso vai! - Sabes que tenho minhas simpatias pelo anarquismo... - O que tu és eu sei. Um sujeito preguiçoso e conformista. - Escuta aqui, Arão. Até onde acreditas no que estás dizendo? Refiro-me a acreditar de verdade, do fundo do coração. Não podes ser tão diferente de nós, os romanticões. Pertences à mesma geração. Leste os mesmos livros que nós. Ouviste as mesmas conversas. O fato de seres judeu não te torna tão diferente. Mas falas com tanta veemência, com tanta paixão, com tanta insistência, que às vezes acho que o que procuras não é só convencer os outros, mas também a ti mesmo... Stein ergueu-se e começou a andar dum lado para outro, na frente do amigo. - Escuta uma coisa - disse. - E que essas senhoras não me ouçam. Muitos assisistas escrevem e falam como se fossem verdadeiros libertadores do povo. Na verdade não passam de aristocratas rurais. Com todos os seus erros e apesar dessas besteiras de positivismo, Borges de Medeiros está mais perto do ideal socialista do que esses assisistas latifundiários que andam com um lenço vermelho no pescoço. Muitos deles até chegam a sonhar com a volta da monarquia. - Fez alto na frente do amigo e olhou-o bem nos olhos. - Aposto como não sabes que Júlio de Castilhos queria incluir na Constituição de 14 de julho um artigo em que se falava na incorporação do proletariado. - Fantasias. - Sim, fantasias. Mas isso é sempre melhor do que acreditar no governo duma classe privilegiada de mentalidade feudalista. E te digo mais. O governo de Borges de Medeiros tem favorecido o desenvolvimento da pequena propriedade. Podes esperar que os grandes estancieiros gostem disso? Usa a cabeça. Tamanho não lhe falta. - Está bem, mas devias falar mais baixo. Elas podem estar escutando... - Eu sei que me consideras um ingrato, quase um traidor. Talvez um Judas. - Ninguém te chamou de Judas. - Mas eu sinto que essa é a maneira como vocês os cristãos em geral olham para um judeu. - Não sejas idiota. - O outro dia ouvi dona Maria Valéria perguntar a dona Flora, referindo-se a mim: "Aquele muçulmano já saiu do quarto de banho?". Roque Bandeira soltou uma risada. - Ora, tu conheces a velha. Ela te estima e por isso brinca contigo. Uma vez te chamou também de turco... - Estás vendo? Todos esses nomes: turco, muçulmano, árabe, e até russo têm conotação pejorativa. Eu sinto. - Pois aí é que está o teu erro. Interpretas tudo à tua maneira. És uma sensitiva. Vives procurando profundidades em coisas que pela sua natureza são rasas. Lês nas entrelinhas frases que ninguém escreveu. Roque Bandeira ergueu-se, pôs ambas as mãos no ombro do amigo e murmurou: - Antes que me esqueça. Qualquer dia destes te prendem, te mandam para Porto Alegre e te dão uma sova de borracha, como já fizeram com outros comunistas. - Não tenho ilusões. Estou preparado. - Então o que queres mesmo é ser mártir da causa, não? - Sabes que não é nada disso. Só o espírito mórbido dum cristão condicionado ao capitalismo pode pensar uma coisa dessas. A causa que estou servindo é política, e não religiosa. Não queremos lamber as feridas dos leprosos, como são Francisco de Assis, queremos mas é curar as chagas sociais sem o auxílio de milagres. Não vai ser fácil, mas estou preparado para o pior. Tio Bicho tornou a bocejar. - Acho que vou m'embora. - Espera. Saio contigo. Encaminharam-se para a sala onde estavam as duas mulheres. Stein agradeceu-lhes pela hospitalidade e disse que viria buscar suas coisas no dia seguinte. Maria Valéria seguiu-o com o olhar até vê-lo desaparecer no vestíbulo. Depois que ouviu a batida da porta da rua, resmungou: - Esse sírio deve ter algum parafuso frouxo na cabeça. 20 Estava a Coluna de Licurgo Cambará acampada à beira dum lajeado, a umas seis ou sete léguas de Santa Fé, quando o Romualdinho Caré, sobrinho de Ismália, apareceu um dia montado num rosilho magro e cansado. Reconhecido por Pedro Vacariano, foi levado à presença do comandante. Apeou do cavalo com um ar humilde e encolhido e aproximou-se... Era um caboclo ainda jovem, baixote e trigueiro, de olhos vivos. - Que foi que houve? - perguntou Licurgo. Romualdinho contou que o Angico fora ocupado por soldados do cel. Madruga. O patrão franziu o cenho. - Quando foi isso? - Faz uns quantos dias. - Mas quantos? - Uns quatro ou cinco. Contou que tinha ficado prisioneiro durante algumas horas, mas conseguira escapar e saíra "à percura" da Coluna Revolucionária. Licurgo, pensativo, mordia o cigarro apagado. - Quantos provisórios tem no Angico? Romualdinho hesitou por um momento. - Uns trinta. O comandante - informou ainda - era um tenente, moço direito que tinha tratado bem toda a gente, não permitindo malvadezas nem estragos. - Só que levaram muito gado, muita cavalhada... - acrescentou, com os olhos no chão, como se tivesse sido ele o responsável pela requisição. - Levaram pra onde? - perguntou Licurgo. - Pra Santa Fé ou Cruz Alta. Ouvi um sargento dizer que a tropa do coronel Madruga foi mandada pra fora da cidade... Neste ponto Toríbio e Rodrigo entreolharam-se. Puxando o irmão para um lado, o primeiro murmurou: - Acho que chegou a nossa hora. Mas precisamos saber três coisas importantes. Primeiro, se essa história da saída das tropas é verdadeira; segundo, quanta gente ficou na cidade; terceiro, quais são os pontos mais bem defendidos... - E como é que vamos descobrir? - Mandamos um espião. Rodrigo soltou uma risada. - Isso só da cabeça dum ledor de Ponson du Terrail! Toríbio, porém, convenceu-o da validade da idéia. Juquinha Macedo e Cacique Fagundes aprovaram o plano. O problema era encontrar o espião. Quem poderá ser? Jacó Stumpf ofereceu-se para a missão. O primeiro ímpeto de Rodrigo foi o de recusá-lo sumariamente. Como era que aquele alemão com cara de bocó... Mas não! Talvez por isso mesmo fosse ele a pessoa indicada para a missão. Além do mais, era pouco conhecido na cidade. Interrogou-o: - Achas que vais dar conta do recado? - Zim. - E sabes o que pode acontecer se eles descobrirem a coisa e te prenderem? - Zim. E Jacó passou o indicador rapidamente pelo próprio pescoço, num simulacro de degolamento. - Está bem. Quero deixar bem claro que ninguém te forçou a aceitar a incumbência. O colono sacudiu vigorosamente a cabeça. Durante quase uma hora inteira Rodrigo e Toríbio ficaram a dar-lhe instruções. Devia entrar em Santa Fé a cavalo, desarmado, com um lenço branco no pescoço, procurando dar a impressão de que vinha de uma das colônias. - Entra assim com o ar de quem não quer nada - disse-lhe Rodrigo. - Não puxes prosa com ninguém. Apeia na frente da Casa Sol, diz que queres comprar uns queijos, procura o Veiga, estás compreendendo? Leva o homem pro fundo da loja e conta quem és, donde vens, e pergunta quantos soldados o Madruga levou para fora da cidade, quantos ficaram e onde estão colocados... Logo que conseguires todas as informações, toca de volta pra cá. Mas cuidado, que podem te seguir, entendes? Jacozinho sacudiu afirmativamente a cabeça. De tão claros, seus olhos pareciam vazios. No dia seguinte pela manhã montou a cavalo e se foi. Rodrigo acompanhou-o com o olhar até vê-lo sumir-se do outro lado duma coxilha. - Deus queira que volte. O velho Liroca soltou um suspiro e disse: - Volta. Deus ajuda os inocentes. No dia seguinte ao anoitecer Jacozinho voltou e, ao avistar o acampamento, precipitou-se a galope, soltando gritos. Vendo aquele cavaleiro de lenço branco, e não sabendo de quem se tratava, uma sentinela abriu fogo. O "cavaleiro misterioso", entretanto, continuou a galopar e a gritar. Mais tarde a sentinela contou: - A sorte é que tenho bom olho. O alemão se riu, os dentes de ouro fuzilaram e eu disse cá comigo: "Só pode ser o Jacozinho". Era. Cessei fogo. Jacó Stumpf foi levado à presença de Licurgo e dos outros oficiais. Tudo tinha corrido bem - contou - e ninguém suspeitara de nada. O Veiga informara que realmente uns quinhentos e cinqüenta dos oitocentos homens do corpo provisório do Madruga haviam sido mandados reforçar a brigada de Firmino de Paula em Cruz Alta e Santa Bárbara. Haviam ficado na cidade uns duzentos e cinqüenta. Uns cem estavam acampados na entrada do norte. Uns oitenta montavam guarda à charqueada, na estrada de Flexilha, no sul. Uns cinqüenta e poucos dormiam na Intendência, guarnecendo o centro da cidade. - E o lado da olaria? Jacó abriu a boca. - Que olaria? - O lado onde se põe o sol? O colono quedou-se um instante, pensativo. - Ah! Está desguarnecido. Quanto ao setor oriental, onde ficavam os quartéis, era sabido que estava dentro da zona neutra. - Chegou a nossa hora - disse Rodrigo, olhando em torno para os oficiais mais graduados da Coluna que se haviam reunido à frente da barraca de Licurgo. - A tomada de Santa Fé, além de nos proporcionar a oportunidade de requisitar munição de boca e de guerra, terá um efeito moral extraordinário. - Mas o senhor já pensou - perguntou um dos Macedos - que em três horas os chimangos podem trazer forças de Cruz Alta pra nos contra-atacar? Toríbio interveio: - Cortaremos as linhas telefônicas e telegráficas. Interromperemos todas as comunicações. Até que mandem um próprio ao Madruga, mesmo de automóvel, vai levar algum tempo... - E depois - aduziu Rodrigo, pondo na voz um entusiasmo persuasivo - vai ser um ataque fulminante, de resultados imediatos. Não tenho nenhuma ilusão quanto a mantermos a cidade em nosso poder por muito tempo... Mas que diabo! - exclamou, abrindo os braços. - Nada mais temos feito que fugir desde o dia que saímos do Angico! Se a situação continua assim, seremos esmagados pelo nosso próprio ridículo! Fez-se um silêncio durante o qual Rodrigo se perguntou a si mesmo se o seu plano de atacar Santa Fé nascia mesmo duma necessidade estratégica e política ou apenas do seu desejo de rever a família, voltar à própria casa, descansar daquelas marchas infindáveis e duras, principalmente agora que o inverno se avizinhava. - Que é que o senhor acha? - perguntou Toríbio, encarando o pai. Licurgo baixou a cabeça, cuspiu no chão entre as botas embarradas, depois tornou a alçar a mirada. - A questão não é o que acho. Quero saber a opinião dos outros companheiros. Temos que estudar direito o plano. Passeou o olhar em torno: - Há alguém contra a idéia? Não viu nenhum gesto nem ouviu nenhuma palavra de protesto. - Se todos estão a favor, a idéia está aprovada. Atacamos Santa Fé. - Tem de ser amanhã - disse Rodrigo. - Não podemos perder tempo. - Pois seja o que Deus quiser - murmurou o velho. Rodrigo sentiu na orelha o bafo tépido e úmido de Toríbio, que ciciou: - Tu sabes que a Ismália Caré está na cidade... O Velho anda louco de saudade da china...