Trecho do livro O ARQUIPÉLAGO - VOL. 3

O cavalo e o obelisco 1 Naquele sábado de fins de julho de 1930, Rodrigo reuniu alguns amigos no Sobrado para comemorar o aniversário de Flora. Chegaram primeiro os Macedos: d. Veridiana, gorducha e matronal, o rosto redondo, a pele de requeijão, anéis faiscantes nos dedos, toda metida no seu rico casacão de peles, e envolta numa atmosfera de L'Origan de Coty e naftalina; Juquinha, sempre jovial, com sua invejável cabeleira negra e espessa, enfarpelado numa roupa escura feita antes da Revolução de 23, e que já agora começava a ficar-lhe apertada nos lugares mais inconvenientes. O dr. Dante Camerino veio com a mulher na esteira dos sogros: ele já com sua barriguinha próspera, pois tinha boa clínica, fazia dinheiro, começava a ensaiar-se em aventuras pecuárias; ela cada vez mais parecida com a mãe, de quem ganhara no último Natal o casacão de peles que ostentava agora. (Desse casal dissera Rodrigo com terna ironia: "Entendem-se bem: engordam de comum acordo".) Contra a expectativa do dono da casa, que convidara os vizinhos americanos por pura cortesia, compareceram também à festa o rev. Dobson e sra. D. Dorothy, alvoroçada, soltando suas risadinhas nervosas, procurando ser amável com todos: o pastor sem saber onde colocar as manoplas incendiadas de pêlos ruivos ou acomodar as pernas de joão-grande: ambos com um ar vago, transparente e indeciso, como fantasmas sem experiência que estivessem assombrando uma casa pela primeira vez. Pouco depois entraram os Prates. O dr. Terêncio, que agora, morto o pai, era o chefe de seu clã, entregou à criada no vestíbulo o sobretudo preto trespassado, feito por um dos melhores alfaiates de Paris, tirou as luvas de pele de cão e jogou-as dentro do seu chapéu Gelot que a rapariga segurava; e, depois de ajustar o nó da gravata num gesto automático, tomou do braço da mulher e dirigiu-a para a sala de visitas, com a gravidade de quem carrega um andor. Marília Prates tinha mesmo algo de madona, uma beleza meio seca e morta de imagem de pau pintado. Trazia um vestido de seda negro, simplicíssimo, recendia a Nuit de Noël e como única jóia estadeava no peito, à maneira de broche, uma comenda da Ordem da Rosa que o Imperador conferira a seu bisavô, general das tropas legalistas que em 35 combateram os Farrapos. Raramente sorria, tinha orgulho de sua árvore genealógica, gostava de livros, sabia o seu francês, passara com o marido alguns anos em Paris e - afirmavam as comadres maliciosas - não dava duas palavras sem dizer: "Uma vez nos Champs Elysées...". Os Prates entraram na sala e foram cumprimentando as pessoas que ali já se encontravam: Laurentina Quadros, indiática e séria, com aspecto de mulher de cacique, as mãos pousadas no regaço, sentada numa postura de retrato antigo; Santuzza Carbone, de peitos monumentais, corada e exuberante, numa sutil redolência a manjerona e alho, já a mastigar docinhos e pasteisinhos roubados na cozinha graças a seus privilégios de íntima da casa; Mariquinhas Matos, entronizada numa poltrona sob o espelho grande, sorrindo como a Mona Lisa, esforçando-se por parecer o próprio quadro de Da Vinci. D. Marília e o dr. Terêncio deram parabéns a Flora. Rodrigo beijou a mão da recém-chegada, apertou a do marido, disse-lhes de sua alegria de tê-los no Sobrado e foi logo perguntando ao homem: "Que bebes? Um porto? Um conhaquezinho?". O dr. Prates aceitou o porto e depois, à sua maneira reservada, saiu a cumprimentar os outros convivas: Chiru (que como de costume não trouxera a mulher, coitada da Norata, sempre às voltas com os bacuris), a juba reluzente de brilhantina, uma chamativa gravata de seda azul-ferrete com uma rosa amarela pintada a óleo, e que em geral ele só usava em duas ou três ocasiões solenes durante o ano. O Neco, constrangido numa velha fatiota preta, que raramente tirava da mala, e que lhe havia sido feita pelo Salomão em priscas eras, e o velho Aderbal, também infeliz dentro da sua roupa de enterro, batizado e casamento, a meter de quando em quando o indicador entre o pescoço e o colarinho duro... Rodrigo entregou ao dr. Terêncio o cálice de porto e conduziu-o ao escritório, onde Arão Stein e Roque Bandeira estavam sentados no sofá - o Tio Bicho já com um copo de cerveja ao lado, o judeu entusiasmado a enumerar as conseqüências do crash da Bolsa de Nova York. José Lírio escutava-o sem interesse, sentado a um canto, quieto e sonolento como gato velho em borralho. Seriam quase nove horas quando Roberta Ladário entrou no Sobrado acompanhada pelo ten. Bernardo Quaresma. Estavam ambos ainda no vestíbulo a se desfazerem dos abrigos e já quase todas as mulheres na sala manifestavam na expressão fisionômica, em diferentes graus de intensidade, a sua estranheza ou desaprovação ante o fato escandaloso de uma moça solteira andar na rua àquelas horas da noite na companhia dum homem jovem que não era seu parente chegado. Mariquinhas deu voz à sua crítica, segredando-a ao ouvido de Flora, que sacudiu de leve a cabeça e transmitiu a observação da Gioconda a Santuzza, a qual encolheu os ombros e fez "Eh!". Laurentina, porém, absteve-se de qualquer comentário, mesmo monossilábico, e Marília Prates procedeu como se estivesse ausente. Rodrigo veio radiante beijar a mão da professora e abraçar o tenente de artilharia, que estava vestido à paisana e entanguido de frio. - Naturalmente vocês todos conhecem a Roberta... - disse o dono da casa, olhando em torno. - E o nosso Bernardo... nem se fala! Claro, todos conheciam! Muito desembaraçada, com sua graça carioca e balzaquiana, Roberta Ladário pôs-se a distribuir beijinhos, começando com Flora, a quem entregou um presente. As mulheres em geral achavam a forasteira "dada e simpática", mas encaravam essas suas virtudes com uma certa reserva serrana. Não se sentiam muito à vontade ante seus chiados e sua desenvoltura teatral. Reprovavam a maneira exagerada com que ela pintava o rosto, principalmente as pálpebras, quase sempre tocadas duma sombra azulada, que lhe dava um jeito de atriz... "A senhora vê, uma professora!" E como se tudo isso não bastasse, Roberta fumava em público, cruzava as pernas como homem, escrevia e até publicava versos! D. Laurentina recebeu impassível o beijo da professora. Marília manteve-a à distância, com um olhar glacial. Santuzza pegou com ambas as mãos a cabeça da moça e beijou-lhe sonoramente as faces, numa espécie de solidariedade de mulherona para mulherona. A Gioconda esquivou-se ao beijo, graças a um estratagema: levantou-se, segurou a outra pelos braços, conservando-a afastada de si, e disse duma maneira em que se sentia a hipocrisia de suas palavras: - Estás maravilhosa hoje, Roberta! E a professora, risonha: - Achas? Muito obrigada, meu bem. Desde que chegara a Santa Fé, havia menos de cinco meses, Roberta Ladário, professora da Escola Elementar, era um dos assuntos mais discutidos na cidade. Os homens estavam fascinados por aquela morenaça vistosa, bonita de cara, bem-feita de corpo e um tanto livre de hábitos. Poucas semanas depois de sua chegada, publicara no jornaleco local um poema seu que causara escândalo no plano literário por causa da ausência de rima e metro, e no plano moral pela sua natureza ardentemente erótica. Os versos eram em última análise uma descrição do corpo e dos desejos da autora. "Isso não é um poema", dissera alguém. "É um anúncio!" A madre superiora do Colégio do Sagrado Coração de Jesus, onde Roberta Ladário se hospedava, recebeu uma carta anônima em que um Amigo da Moral, enviando-lhe um recorte do jornal com o poema, perguntava-lhe se depois daquele "acinte" a boa freira permitiria ainda que a devassa continuasse a viver debaixo do mesmo teto que cobria as cabecinhas inocentes das alunas do internato. Ora, a madre superiora, natural da Alemanha, era uma mulher "evoluída", leitora de Goethe, e não reprovava bailes nem cinemas. Leu a carta, mostrou-a a Roberta e depois rasgou-a, dizendo: "Faz de conta que ninguém escreveu, hã?". O ten. Bernardo Quaresma seguia Roberta na sala como um cachorrinho fiel. Era retaco, de pernas arqueadas, nariz adunco, caminhar gingante - traços esses que lhe davam um ar de papagaio. "Mas papagaio muito simpático!", explicava Rodrigo, que tinha já uma afeição quase paternal por aquele alagoano de cara rosada (agora um tanto arroxeada de frio) que servia no Regimento de Artilharia local havia quase um ano, sendo também um dos freqüentadores mais assíduos do Sobrado. De resto o ten. Bernardo conquistara praticamente toda Santa Fé. Loquaz, brincalhão, fazia amigos com facilidade, gostava de dar presentes e prestar serviços. Tinha um cão pastor alemão, o Retirante, seu companheiro quase inseparável, animal tão gregário e popular quanto o dono. À tardinha o tenente de artilharia costumava deixar o hotel onde se hospedava (diziam que dormia com o cachorro na mesma cama) e subia a rua do Comércio na direção da praça da Matriz. As mulheres que ao entardecer costumavam vir debruçar-se nas suas janelas, e os homens que estavam às portas das lojas ou à frente do Clube Comercial, sabiam que podiam contar àquela hora do dia com um espetáculo divertido. Enfarpelado no seu uniforme cáqui (o quepe alto, as perneiras e o talabarte negros contribuíam para aumentar-lhe o porte), lá vinha Bernardo Quaresma no seu tranco de marinheiro, batendo nos lados do culote com seu inseparável pinguelim, a conversar com o cachorro. "Retirante velho, bichinho bom. Quem é que vai ganhar hoje um churrasco? Eta cabra da peste! Dança!" O cachorro começava a girar sobre si mesmo. "Rola!" E o animal rolava na calçada. "Olha o inimigo!" E o Retirante estacava, encostava o ventre nas pedras, estendia as patas traseiras, cobria o focinho com as dianteiras. E as pessoas que viam a cena punham-se a rir, e o tenente de artilharia, feliz, continuava seu caminho, conversando com um e com outro - "Cuca velho, meu bem, como vão as coisas?" -, parando à janela de Esmeralda Pinto para ouvir seus mexericos ou à de Mariquinhas Matos, para lhe dizer um galanteio. E se, ao passar pela frente da Barbearia Elite, o Neco estivesse parado à porta, era certo que o tenente empunhava o pinguelim à guisa de metralhadora, entrincheirava-se atrás dum poste telefônico e abria o fogo contra o barbeiro: - ta-ta-ta-ta-ta. O outro, arreganhando a dentuça eqüina, recuava para trás da porta, e improvisando um revólver com a mão direita disparava também. "Avançar!", gritava o tenente. Retirante precipitava-se na direção do barbeiro e, empinando-se, sentava as patas nos ombros de Neco e quase o derrubava. "Tira este cachorro daqui!" E Bernardo, rindo, vinha em socorro do amigo. "Quieto, cabra da peste!" E o cachorro se aquietava, ficava de língua de fora, resfolgante, a olhar para o dono com olhos ternos, enquanto Neco limpava o casaco, e o tenente o abraçava, dizendo quase sempre coisas assim: "Não faço a barba em barbeiro aqui no Rio Grande por causa da fama de degoladores que vocês gaúchos têm". 2 Quando Roberta passou por Chiru aquela noite, na sala do Sobrado, depois de cumprimentá-lo, este murmurou para o amigo: - Essa morena é um balaço. Olha só que cadeiras, que peitos, que rabo. Deve ser de estouro na cama. E tu sabes duma coisa? O nosso Rodrigo já está fazendo o cerco... Ele pensa que sou cego, mas a mim ele não engana... Neco Rosa lançou para a professora um olhar avaliador de perito e disse: - É um balaço mesmo. E de bala dundum! O ten. Quaresma plantou-se diante dos dois amigos, as pernas abertas, as mãos na cintura, o olhar provocador: - Onde está a revolução que vocês iam fazer? O Rio Grande cantou de galinha. Chiru Mena baixou para o tenente um olhar desdenhoso: - Sai, nanico! Eu tomo aquele quartel de vocês a grito e a pelego! - Qual nada! Gaúcho é só prosa, só farofa. Chiru avançou sobre o tenente e envolveu-o com um abraço de urso, como se quisesse esmagar-lhe o tórax. - Se eu não gostasse tanto de ti, milico safado, eu te reduzia a pó de traque, estás ouvindo? E ficaram a trocar palmadas nas costas, muito amigos, enquanto o Neco cocava as pernas da professora. - Por que não se senta, reverendo? - perguntou Flora ao pastor metodista, mostrando-lhe uma cadeira. - Oh! Muito obrigado - murmurou ele, sentando-se e pousando as mãos sobre os joelhos, enquanto a mulher distribuía olhares e risinhos em derredor, como se procurasse compensar com aquela alegria estereotipada seu pouco conhecimento da língua dos nativos. - Ponha alguma coisa na vitrola - pediu a dona da casa dirigindo-se ao Chiru. O homenzarrão obedeceu e, dentro de poucos segundos, do ventre da Credenza saltavam os sons duma marcha. "Stars and stripes for ever". A mulher do pastor soltou um ah!, juntou as mãos num encantado espanto, como se tivesse visto entrar inesperadamente um primo- irmão recém-chegado dos Estados Unidos. A face do rev. Dobson permaneceu impassível, mas seu pé direito, marcando o compasso da marcha, denunciava-lhe o contentamento. Junto da porta do escritório, na frente de Terêncio, mas sem prestar muita atenção no que este lhe dizia, Rodrigo observava disfarçadamente Roberta Ladário. Aquela mulher excitava-o de tal maneira, que ele não podia vê-la sem desejar agarrá-la ou pelo menos tocá-la. Fora a conquista mais rápida que fizera em toda a sua vida. Mal chegara a Santa Fé, a professora pedira que a levassem ao Sobrado. "Todos me diziam que vir a Santa Fé e não conhecer o doutor Rodrigo Cambará seria o mesmo que ir a Roma e não ver o papa." Rodrigo achara a imagem vulgar mas nem por isso se sentira menos lisonjeado. Vislumbrava nos olhos dela - oh, intuição! oh, sexto sentido! - um mundo de possibilidades e mesmo de facilidades. Aquela fêmea lhe surgira num momento crítico de sua vida. A derrota eleitoral de Getulio Vargas e João Pessoa, o malogro da conspiração revolucionária, o Rio Grande desmoralizado aos olhos do Brasil por não ter levado a cabo suas ameaças revolucionárias... enfim, aquele marasmo, aquela mediocridade de Santa Fé - tudo concorria para que ele se sentisse frustrado, deprimido, amargurado, necessitando novos interesses e estímulos. Sim, Roberta Ladário chegara na hora certa. Contara-lhe que fazia poemas. "Gostaria muito que o senhor os lesse, me desse conselhos, dissesse se prestam, se devo continuar..." Voltara dias depois ao Sobrado com um caderno cheio de versos, e Flora fora suficientemente compreensiva para permitir que ele e Roberta ficassem a sós no escritório, de portas fechadas. Sentaram-se no sofá. Que perfume era aquele que a envolvia? Não conseguiu identificá-lo... mas que importava? Roberta ali estava a seu lado, quase a tocá-lo com os braços, as ancas, as coxas, as pernas... Seu corpo despedia uma quentura perturbadora. Ela abriu o caderno: escrevia com tinta roxa, tinha uma letra graúda, de nítido e ousado desenho. "Este é um poeminha antigo. Veja se gosta." Começou a ler com uma voz que tinha a temperatura do corpo, e de quando em quando voltava a cabeça e envolvia-o com um olhar também cálido, que era evidentemente uma provocação. Ele não conseguia prestar atenção no que a criatura dizia. Apanhava apenas palavras, frases soltas... corpo sedento... cântaro de barro... pássaro... prata. O decote da blusa de Roberta era tão profundo que ele podia ver-lhe o rego dos seios. Não conseguia desviar o olhar daquela misteriosa e sombria canhada entre dois montes de desejo, ó Rei Salomão! "Que tal?" Ele levou algum tempo para responder. "Maravilhoso. Leia outro." Os dedos de unhas longas e esmaltadas de vermelho folhearam o caderno. "Ah! Este é um dos meus favoritos... Ouça." Rodrigo esforçou-se por prestar atenção. A lua no céu toda nua. Toda nua eu, na terra. A lua espera o sol. Mas eu quem espero? Os versos não prestavam, mas a professora estava "no ponto". O braço de Rodrigo estendia-se sobre o respaldo do sofá, por trás da cabeça dela. Um movimento simples bastaria para precipitar tudo: deixar cair a mão esquerda sobre aquelas espáduas, depois levar a direita na direção daqueles seios. Tão simples... Ou seria cedo demais? A mulher continuava a ler, e suas palavras lhe batiam nas têmporas como pedradas, no mesmo compasso do sangue. Suas palavras feriam, doíam. Ele sentia o corpo inteiro túrgido e latejante. Era insuportável! Uma provocação acintosa! Na sua própria casa! E se entrasse alguém? Jamais em toda a sua vida... O caderno tombou. Rodrigo tomou Roberta nos braços, mordeu-lhe a boca, e ela desfaleceu... E nas folgas que ele lhe dava, entre um longo beijo e outro longo beijo, ela balbuciava de olhos cerrados: "Eu te adoro, eu te adoro, eu te adoro". E então ouviram-se passos na sala. E ambos se puseram de pé. Ele passou rápido o lenço nos lábios. Uma batida na porta. Entre! Floriano entrou. E a oportunidade se foi... Roberta saiu do Sobrado incólume. E ele ficou excitado e impaciente, a pensar num lugar seguro onde pudesse ficar com ela algumas horas sem ser molestado, sim, e sem que ela corresse o perigo de perder a reputação. Chegara até a pensar num pretexto para levá-la ao Angico... ("E essa? A Roberta nunca viu uma estância em toda a sua vida! Ah! Precisa conhecer o Angico urgentemente.") Imaginou-se a conduzi-la ao capão onde tivera a Carezinha e tantas outras chinocas. Roberta ia gostar de ver os bugios assanhados nas árvores. Podia até fazer um poema... O dr. Terêncio continuava a falar com sua voz pausada, nítida e autoritária: - ... de sorte que estamos nessa situação ridícula. Perdemos a eleição, ameaçamos céus e terras... acabamos acovardados. O doutor Borges de Medeiros acha que a questão ficou encerrada com a decisão das urnas e deu um novo "Pela Ordem" que eu não aprovo mas acato, como soldado disciplinado do Partido. Se havia alguma articulação revolucionária, essa se foi águas abaixo depois do pronunciamento do Chefe. Tu vês, Rodrigo, os jornais do Rio e de São Paulo não nos poupam, nos atacam, nos ridicularizam... E o mais triste, meu amigo, é que quem está pagando a mula roubada é o doutor João Pessoa. O doutor Washington Luís protege os cangaceiros de Princesa para vingar-se do presidente da Paraíba, cujo gesto de independência ele não perdoa nem esquece. Levar Roberta para um hotel? - pensou Rodrigo. Impossível. E se fôssemos os dois em trens diferentes a Santa Maria? Daria muito na vista... Se ao menos ela morasse numa casa... ou mesmo numa pensão. Mas havia de estar hospedada logo num colégio de freiras! Seu olhar encontrou o de Roberta e por um instante ficaram presos um no outro. Rodrigo sentiu uma onda quente subir-lhe das entranhas à cabeça, estonteando-o. E de súbito percebeu que Mariquinhas Matos e Marília Macedo o observavam. Desviou o olhar mas ficou vendo mentalmente a rapariga. Os lábios dela o deixavam meio louco, com vontade de mordê-los: o inferior mais carnudo que o superior. Aquelas narinas abertas e palpitantes eram outro elemento afrodisíaco... E sua voz cariciosa e meio rouca, voz de alcova, parecia estar sempre sugerindo coisas libidinosas. Chiru aproximou-se da Credenza e mudou o disco. Uma valsa de Strauss precipitou as águas do Danúbio para dentro da sala. Roberta bateu a ponta dum cigarro contra a cigarreira de ouro. Bernardo avançou de isqueiro aceso em punho, e a professora "serviu-se do fogo do tenente" (segundo Maria Valéria, que observava a cena com o rabo dos olhos), soltou uma baforada, sorriu e agradeceu. Neco cutucou Chiru com o cotovelo, fez com o olhar um sinal na direção da dupla e murmurou: - O tenente não é rabo pr'aquela pandorga. - Que esperança! Terêncio teve de altear a voz para fazer-se ouvido em meio das golfadas danubianas: - Outra coisa que me preocupa é a situação do Banco Pelotense. Tenho medo duma corrida. Andam boatos por aí... Pensei até em retirar o depósito que mantenho lá, mas o gerente me suplicou que não o fizesse. Está apavorado com a possibilidade de criar-se o pânico entre os depositantes. - Soltou um suspiro. - O preço do charque está baixando assustadoramente. Ninguém tem dinheiro. Meu amigo, há muito que o nosso Rio Grande não atravessa uma hora tão negra. Rodrigo sacudiu lentamente a cabeça, olhando de soslaio para as pernas de Roberta, metidas em meias cor de carne. Flora naquele momento convidou as senhoras a irem para a mesa. - Fizemos só uns frios... - desculpou-se. - Ah! - fez Marília Prates. - Não há nada como um buffet froid... E acompanhou a dona da casa, entrando com ela na sala de jantar. Santuzza seguiu-as ao mesmo tempo que respondia a uma pergunta de d. Laurentina. - O Carlo? Pobrezinho, foi ver um doente em Garibaldina. Vida de cão! Mona Lisa deixou passar um intervalo elegante, para não parecer esfaimada, e depois encaminhou-se para a mesa de frios, ao lado de Dante Camerino e da senhora. Esta ia dizendo: - Bom, eu já resolvi... Hoje quero comer de tudo, porque segunda-feira vou começar uma dieta rigorosa. Camerino sorriu, piscando um olho céptico para Mariquinhas. O velho Aderbal veio sentar-se ao lado da esposa, e Rodrigo teve a impressão - e como isso o irritou! - de que ambos ali ficavam para vigiá-lo.