Trecho do livro DEVE TER SIDO ALGUMA COISA QUE EU COMI

INTRODUÇÃO Como comemos hoje em dia O indicador conhecido tecnicamente como índice calamar, ou IC, mede com precisão até onde já avançamos como uma nação de comedores nos últimos trinta anos. Nos anos 60 e em boa parte dos 70, o consumo de frutos do mar no país estava entre os mais baixos do mundo. (Eram mais populares em Chipre, Japão, Coréia, Espanha, Grécia e Itália.) Poucos americanos se aproximariam de uma lula. Tudo nelas causava repulsa. Meu próprio IC pessoal (ou ICP) dava dó, de verdade. Então, em meados dos anos 80, o ic simplesmente disparou. Frutos do mar começaram a surgir em cada canto dos Estados Unidos. Em seguida viria o peixe cru. Hoje, raros são os restaurantes que não oferecem como entrada lulinhas fritas, crocantes e temperadas, acompanhadas por molhos regionais. Amamos mastigar aquele adorável monte de pequenos tentáculos. Apreciamos a sensação de ter suas fileiras de minúsculas ventosas girando em nossas línguas. Também andei comendo insetos, mas chegaremos lá no momento adequado. Dessa forma, traçando um gráfico do consumo anual de lulas pelo americano médio, seja homem, mulher ou criança, obtemos um indicador exato, ainda que simplista, de como superamos totalmente nossa aversão inata a certos alimentos, e de como aprendemos a apreciá-los, seja por pressão social ou por uma verdadeira abertura e evolução como seres humanos. A rigor, deveríamos chamar o IC de índice cefalópode, porque as estatísticas oficiais da Organização para a Agricultura e Alimentação (FAO) das Nações Unidas agrupam lulas, polvos e calamares em geral sob a denominação mais abrangente de cefalópodes. De acordo com a FAO, o consumo de cefalópodes nos Estados Unidos hoje é 184 vezes maior do que no início dos anos 60! Pode-se imaginar melhor exemplo da verdade universal de que nenhuma comida é repugnante em si mesma? Crianças não sentem nenhum asco pelo cheiro ou pela visão de uma carne apodrecendo e fervendo de vermes. Há 42 culturas ao redor do globo que comem ratos. Assim, a criatura que antes só servia para povoar pesadelos que assombravam o sono anglo-americano acabou se tornando algo bem corriqueiro. Qual terá sido a força divina ou cósmica capaz de produzir tal mudança? Arriscaria o palpite de que pelo menos metade do crédito deve ser dado a este autor e sua incansável campanha internacional em prol da confrontação e, se possível, da humilhação das pessoas que se escondem atrás de falsas alergias, intolerâncias inventadas, absurdos a respeito de nutrição e gosto provinciano. Quando o leitor chegar ao capítulo "Fobia de formaggio" tudo ficará mais claro. Em "Taro, taro, taro", quase tive uma recaída, infelizmente. Como contei na introdução de meu primeiro livro, O homem que comeu de tudo [Companhia das Letras, 2000], quando me tornei o crítico gastronômico da Vogue, senti a obrigação ética de forçar-me a enfrentar todos os preconceitos e tabus, culturais ou psicológicos, que me impediam de ser o onívoro perfeito, o crítico neutro ideal. Seis heróicos meses depois, atingi a meta, com apenas duas exceções. Primeiro, falhei em superar minha aversão às sobremesas dos restaurantes indianos. Mas como eu as aceitei inteiramente em meu coração, repudio quem quer que veja nisso uma monumental e completa derrota pessoal. E segundo, pelo pouco tempo disponível, adiei temporariamente encarar a questão dos insetos. Pois embora eles sejam nutritivos, crocantes e cheios de proteínas, baratos e fáceis de preparar, a maioria das pessoas que conheço no norte da Europa e na América do Norte (com exceção do México) evita insetos. Em outros lugares há grande predileção por gafanhotos, grilos, formigas, cupins, mariposas, besouros e também pelas larvas e pupas das traças gigantes. Em Presencia de la comida prehispánica, Teresa Yturbide conta que quando os conquistadores chegaram à América, encontraram os maias e os astecas se deliciando com vermes do milho torradinhos, tacos recheados com toritos (besouros do abacate) grelhados e lagartas vermelhas e brancas que se reproduzem e vivem nos agaves. (Para reter a gordura das vermelhas, elas eram primeiro tostadas em fogo baixo, depois esmagadas com tomatillos e chiles grelhados, e comidas com tortilhas de milho azul.) E além disso eles comiam besouros jumil, larvas de cupins, lagartas verdes, pupas e ovos de marimbondos, formigas lava-pés, saúvas, bicho da sálvia e bicho do agave secados ao sol, alguns tão compridos quanto suas mãos e com tentáculos na cabeça. Devo admitir uma angustiada ambivalência com respeito aos insetos. Meu progresso no sentido de tornar-me completamente onívoro tem sido lento nessa área, embora determinado. Comecei no famoso restaurante Cien Años, em Tijuana, onde o caviar de mosquito e muitas das outras especialidades mexicanas com insetos estavam fora de época, mas pudemos pedir gafanhotos fritos, que vieram acompanhados por uma porção de molho verde e uma cestinha das tortilhas de milho azul, leves e quentes, típicas de Puebla. Fazíamos tacos enrolando os gafanhotos nelas, com um pouco de molho, e era uma delícia. As criaturinhas eram adocicadas e com sabor amendoado, e como em outros insetos que experimentei, a fritura em óleo muito quente elimina seus fluidos corporais pegajosos, tornando-os sutis e crocantes, fazendo crer que são na verdade saborosas pepitas, sementes de abóbora assadas e salgadas. Mesmo assim não dava para esquecer que estava comendo tacos de insetos. Ficava imaginando os gafanhotos ressuscitando e saltando fora da tortilha, para o tapete vermelho da minha língua e depois goela abaixo. Eu me saí melhor no mercado coberto de Chiang Mai, na Tailândia. É claro que recusei as baratas gigantes empanadas, mas comi com gosto os vermes amarelos de bambu fritos: com o formato de um peso de papéis e medindo uns três centímetros cada um, eles não têm cara nem pernas, o que é uma grande atração para o novato nessas comidas. Pelo preço de um ou dois baht, comprei um saco deles e os comi como se fossem Doritos. Adoro quase tudo que é fritura, em particular Doritos. Minha segunda viagem até Chiang Mai foi um salto de anos-luz à frente. No capítulo intitulado, singela mas eloqüentemente, "Tailândia", compartilho a boa notícia de que minha fobia de insetos está quase totalmente superada. Mas toda essa conversa a respeito de insetos está me desviando do assunto. Muita gente que escreve sobre o tema o faz para causar impacto, e mesmo sendo a última pessoa no mundo a evitar o sensacionalismo, é preciso que eu me atenha às lições fundamentais que devemos tirar de nossa vida como onívoros e de nossas responsabilidades como mamíferos. Em todo o reino da natureza, só os mamíferos, as fêmeas dos mamíferos, alimentam seus filhotes dando-lhes uma parte de seu próprio corpo. Para nós a comida não é somente o jantar. Nossas atitudes com relação à alimentação espelham nossos sentimentos sobre maternidade e nutrição, sobre dar e dividir, sobre tradição e comunidade - e sobre o mundo natural parecer inerentemente benigno ou hostil. Algumas pessoas têm uma atitude positiva, outras nem tanto. De que tipo você é? Faça um teste simples. Leia as duas afirmações que se seguem e escolha qual delas, com toda a honestidade, é mais provável que você diga. 1. "Estou me sentindo péssimo hoje, minha pele está cheia de caroços, e mal consigo enxergar. Deve ter sido alguma coisa que eu comi." 2. "Estou me sentindo leve como uma pluma hoje, meu pensamento está claro como água e tenho vontade de sorrir para o mundo! Deve ter sido alguma coisa que eu comi." Se seus sentimentos tendem a ser do primeiro tipo, é bem possível que você tenha preconceitos paranóicos contra o universo e uma longa jornada pela frente. Mas a culpa não é só sua. Boa parte do mundo à nossa volta ainda está organizada para nos incutir medos relacionados à comida. Lendo os jornais, qualquer um poderia achar que a principal causa de morte é a comida. E não é. Ninguém aconselharia uma atitude relaxada com relação aos germes. Comi frango cru somente duas vezes, e foi no Japão, com molho de amendoim, já que todo mundo estava comendo. O fato é que doenças de origem alimentar estão no máximo entre as vinte principais causas de morte. Há três vezes mais homicídios, seis vezes mais suicídios e vinte vezes mais acidentes fatais. Desconfiei que algo não se encaixava dois anos atrás, quando os maiores jornais noticiaram com alarde que os americanos sofrem 76 milhões de intoxicações alimentares por ano, incluindo aí 325 mil hospitalizações e 5 mil mortes! O serviço de notícias Xinhua, da China, soltou então o seguinte boletim: "Morrem 5 mil americanos". Estavam de gozação. Ou talvez não. O caso é que a imprensa americana tinha certamente dado munição e consolo ao inimigo. Serão falsos, esses números? Não exatamente. Mas já tinham mais de um ano de idade quando os jornais os divulgaram. (Reconheci-os no ato, de minhas pesquisas sobre queijos feitos com leite não pasteurizado, que aparecem no capítulo "A crise do queijo".) Haviam sido publicados originalmente no outono de 1999, em Emerging Infectious Diseases, um periódico de grande penetração distribuído pelos Centers for Disease Control and Prevention (CDC) [centros federais de controle e prevenção de doenças]. Estatísticas antigas não deveriam aparecer na primeira página dos jornais. Poderiam ser chamadas de doenças nascidas nas redações. Por que os jornais e a FDA [Food and Drug Administration, agência federal americana que regula a liberação no mercado de alimentos e medicamentos] querem nos assustar? Cui bono? [Bom para quem?] O dado verdadeiro é que o número de óbitos relacionados à comida é apenas a metade do que se pensava. As manchetes deveriam ser "Só metade dos americanos que morreram por intoxicação alimentar de fato o fizeram". Outra publicação dos CDC, mais ou menos da mesma época, tinha o seguinte título: "Progressos em saúde pública, 1990-1999: Alimentos mais saudáveis e seguros". Queria ver a Xinhua dar uma apimentada nesse. Como a atual mania de comer a classe Cephalopoda comprova, cada vez está mais fora de moda criar confusão sobre alimentos. Aprendemos a ser céticos com relação a alertas de nutrição. Já sabemos que o sal só faz mal para 8% da população (ou até menos). Boa parte do que o governo informava no "Surgeon general's report on nutrition and health" de 1988 foi desacreditada, juntamente com os nutricionistas que acreditaram nele. Sabemos que comer montes de gordura não animal não causa problemas (sendo melhor, provavelmente, que uma dieta rica em carboidratos); que consumir pomares e hortas inteiros não diminui o risco de câncer do cólon; que beber álcool previne ataques cardíacos; que ninguém é tão intolerante à lactose que não possa tomar um simples copinho de leite; que menos de 2% das pessoas realmente têm alergia a determinados alimentos; que o chocolate pode até mesmo nos proteger. (Ou talvez não. Esse novelo será desemaranhado no capítulo "Sonhos de chocolate", mais adiante.) O público comedor relaxou drasticamente, de acordo com dois indicadores: as pesquisas da National Restaurant Association e um is crescente. is é o índice SnackWell's, que mede o consumo per capita de cookies SnackWell's (com poucas calorias, mas mesmo assim bem engordativos). Daí a tendência dos americanos a ser e permanecer cheios de frescuras nutricionais. A bolha do SnackWell's estourou vários anos antes da do mercado de capitais. Até então, éramos uma nação com uma fixação ridícula em saúde. Assim, as forças do preconceito alimentar e das fobias de comida continuam a rastejar. Minha teoria atual é a seguinte: nenhuma sociedade jamais estimulou a glutonaria. E nunca estimulará. Até recentemente, pouca gente tinha dinheiro sobrando para ser glutão. E quem tinha era contido pela lei, pela religião, pelo costume ou pela escassez. Nada disso nos constrange hoje em dia. Corremos o sério risco de ficar descontrolados. Necessitamos desesperadamente de algo que nos ponha limites. Por isso inventamos os perigos e ameaças nutricionais dos últimos vinte anos. Terá sido coincidência que no mesmo ano, 1982, tenha triplicado o consumo de cefalópodes nos Estados Unidos e aparecido a primeira manchete alarmista sobre comida? Que eu me lembre, foi a difamante (para mim, pelo menos) matéria de capa da revista Time "Sal: um novo vilão?" que detonou o pavor. É claro que não foi coincidência. Coincidências não existem. Podemos então rezar para que essas descobertas nos libertem de verdade. Uma moça que encontrei numa festa me disse: "Conheço você. É o cara que escreve sobre comida como um prazer". Eu não sabia que havia outra maneira de encarar. Este livro no fundo é sobre isto. Sobre galos velhos cozidos em vinho tinto; sobre chouriços fabricados no sul da França, sanduíches de lagosta no Greenwich Village e pão em Roma; sobre o cultivo de vegetais na Califórnia e a alegria de comê-los em Paris; sobre comer uma fritada gigante na peneira na Tailândia e sacrificar tudo para fazer a pizza perfeita. É sobre o sabor do sal e o sabor da carne. Sobre o problema entre corpo e mente. Sobre aquela felicidade pura, primordial que sentimos toda vez que nos convidam para jantar. QUEM ESTÁ TENDO PRAZER? Agora, cada pedacinho de comida que consumo faz ecoar na minha mente a mesma pergunta: Quem está tendo prazer? Serei eu mesmo, ou será meu cérebro? TORO, TORO, TORO TEMPESTADE CEREBRAL NA VIRADA DO ESPETO FESTA ENGESSADA TARO, TARO, TARO Toro, toro, toro "Abaixo, todos abaixo! todos aos botes, depressa!", gritei. "Tua hora e teu arpão estão próximos!" Estava em pé na frente do espelho do meu quarto, admirando-me no uniforme novo e ensaiando um punhado de ordens náuticas que tinha pesquisado na minha edição ensebada de Moby Dick. Logo estaria voando para Ensenada, na costa do Pacífico na Baixa Califórnia, onde teria uma grande aventura em busca do... marlim-azul gigante! Por que um marlim-azul? Tão-somente porque a carne crua de sua barriga é uma das coisas mais deliciosas do mundo. Isso não é o bastante? O marlim-azul é uma das espécies de atum, que são mais ou menos treze, dependendo da pessoa que conta. Está entre as criaturas mais bem desenhadas da natureza, é um dos maiores peixes encontráveis no oceano (parece que o recorde foi oitocentos quilos) e um dos mais velozes (capaz de disparadas de até noventa quilômetros por hora). Marlins-azuis podem nadar do Japão à Califórnia e voltar, das Caraíbas até a Noruega - eles possuem visão binocular, audição apurada, sensores epidérmicos de pressão e temperatura, e propriedades magnéticas no corpo que parecem atuar como bússolas. Têm uma aerodinâmica admirável, baseada na possibilidade de recolher e contrair suas nadadeiras quando se movem em alta velocidade. Seu corpo é composto por 75% de músculos. Do nascimento até a morte, eles não podem parar de se mover um instante sequer, sempre para a frente. Se param, morrem sufocados. São predadores vorazes, consumindo diariamente até 25% do próprio peso em sardinhas, lulas, arenques e outras delícias vivas. Caçam como lobos, em bandos mortais, que chamamos de "cardumes" para soar mais simpático. Os marlins-azuis estão também entre os mais caros animais selvagens no planeta. Já li que o preço recorde foi 83 500 dólares por um marlim-azul gigante, alcançado em 1992 no maior mercado de peixes do mundo, o Tsukiji, em Tóquio. O que dá quase 240 dólares por quilo. Os lances mais comuns, atualmente, no Tsukiji (pronuncia-se ski-dji) vão de trinta a oitenta dólares por quilo, uma queda no preço relacionada com a crise econômica japonesa. As vendas diárias no Tsukiji estabelecem os preços mundiais para o marlim-azul, porque os japoneses estão dispostos a pagar mais que qualquer outro povo por sua carne. Se você tiver curiosidade, dê uma olhada no site e clique em Preços de Mercado [Market Places], selecione Tokyo-Chuo sob o link Preços do Extremo Oriente [Far East Prices] e role a página até Marlim-azul [Bluefin]. Eu sou sempre curioso. (O atum Ahi, nome que aparece hoje em dia impresso com orgulho em grande parte dos cardápios dos Estados Unidos, é o atum amarelo, ou albacora, que os japoneses consideram inferior não apenas ao marlim-azul mas também ao atum-cachorra, albacorinha e albacora-branca, e pouco superior ao pintado. Ahi é o nome havaiano para o atum amarelo. Os produtos vindos do Havaí têm um charme especial na Califórnia, mas não no resto do país. A Califórnia abriga grande parte dos fabricantes de atum em conserva, o que fazia os donos de restaurantes temerem que os fregueses recusassem um prato chamado "atum grelhado", e foi assim que o nome ahi caiu do céu, pois na Costa Oeste soava vagamente japonês. Exibir ahi nos cardápios é mais ou menos como ter no menu de uma churrascaria fina uma carne padrão de fazenda modelo do USDA [United States Department of Agriculture, o equivalente americano do Ministério da Agricultura].) O preço do marlim-azul depende de seu tamanho, frescor e formato (que deve ser como uma bola de futebol americano, com a parte de baixo achatada). Mais importante é a qualidade da sua carne, em especial a quantidade de o-toro presente - a parte rosada da sua barriga macia e gordurosa. Os especialistas no Tsukiji têm um sashibo, uma espécie de mastro, comprido, fino e oco, que é enfiado sob as guelras e atravessa o peixe, para tirar um pedaço da carne, que sai em camadas, como num corte geológico. A parte de cima do corpo do marlim-azul consiste em carne vermelha, brilhante e saborosa, chamada akami, cuja porção central, a naka, é da melhor qualidade. Entre a parte de cima e a barriga, há o chiai, músculo escuro e sangrento, que muita gente não come, embora Sky King, meu cachorro, não tenha nenhum escrúpulo de fazê-lo. Quase todo o toro está na barriga, e fica mais gordo, delicado e desejado quanto mais perto da cabeça está. As partes do meio e traseira da barriga são toro de qualidade mediana, chu-toro. Na região da cabeça está o o-toro, toro de alta qualidade, a mais procurada e cara carne de peixe que existe. Logo atrás das guelras está o kama, o corte preferido no marlim-azul, apesar de os connaisseurs preferirem o músculo mastigável, para eles digno de verdadeira e profunda adoração gastronômica. Comi um pouco, recentemente, e achei meio cheio de nervos. Alguns atuns do tipo albacora têm, próximo à espinha, na parte superior do dorso, um tipo raro de toro, chamado se-toro. Posso ter comido uma porção, numa casa de sushi em Santa Mônica, mas não tenho muita certeza. Dois finos retângulos pequenos de o-toro num restaurante de sushi de primeira linha nos Estados Unidos custam vinte dólares mais que em Tóquio. Eis por que nunca comi o bastante para me satisfazer. Ou melhor, acho que comi, mas foi só uma vez. Há dias em que me sinto como um marlim-azul gigante, minha poderosa musculatura me impulsionando mundo afora, caçando comida. Como o peixe, eu também não posso parar, senão morro. Não é assustador? Tudo isso porque o sabor é uma idéia subjetiva e em constante mutação. Os japoneses não estão sozinhos na sua paixão pela barriga de atum. Possuo um diagrama anatômico de um marlim-azul feito na Itália em 1919. Mostra a ventresca ou sorra bianca, a barriga gordurosa, e acima dela, onde se localiza o chu-toro japonês, fica o tarantello italiano. A parte traseira da cabeça, a mais gordurosa e valorizada, parece que tem o nome de pendini ou spuntatore. As coisas não mudaram muito desde os tempos de Plínio, o Velho, que escreveu sua História natural, no século I d. C.: "As partes melhores são o pescoço e a carne clara da barriga, e da garganta, desde que sejam frescas. [...] As partes mais desprezíveis são aquelas próximas ao rabo, porque desprovidas de gordura. A parte próxima à mandíbula é a mais procurada". Onde você estava quando provou o-toro pela primeira vez? Eu, eu estava em Los Angeles, dez anos atrás, sentado num canto do Ginza Sushiko, um restaurante muito fino de sushi, situado na época numa pequena galeria em Wilshire. A chef, Masa Takayama, colocou dois retângulos delicados e róseos de peixe no meu pratinho. Peguei um, sem saber do que se tratava. No princípio parecia que eu tinha uma segunda língua dentro da boca, bem mais fria que a outra, e então o sabor se afirmou, rico e com um delicado gosto de carne, e não de peixe. A textura é simples de descrever - macia de derreter, chegando perto do imaterial, úmida e fria, nem amanteigada nem aveludada, como as pessoas costumam dizer. Você já provou um retalho de veludo? Tinha consciência de estar passando por um momento de culminância gastronômica inesquecível, como da última vez que provamos um pêssego perfeito; ou o primeiro contato com um camembert de leite cru bem maduro ou com foie gras salteado; ou toda vez que comemos trufas brancas ou pizza bianca. Formulei no ato uma teoria, a de que instantes como esses são agregados à memória genética da raça humana, passando por cima de fronteiras raciais e nacionais, superando quaisquer considerações sobre gostos, cultura, hábitos ou costumes. Entendo superficialmente a emoção da pescaria. Quando era criança, consegui ler metade de O velho e o mar, de Ernest Hemingway, antes de perder o interesse. Participei de uma ou duas excursões até Montauk, no extremo oposto de Long Island, para pescar cherne-listrado e enchova-azul (nenhum parentesco com nosso marlim-azul). Um dos meus amigos mais antigos e equilibrados se tornou um fanático pela pesca com mosca. Ele viaja até a Terra do Fogo (sem brincadeira) para pescar trutas nos rios. E volta trazendo-as consigo. Aliás, ele não gosta do sabor da truta, nem de peixe nenhum. Sua meta é apenas vencer essas criaturas espertíssimas - e, num nível mais profundo, subjugar as forças primordiais da própria natureza. Mas essa não é a minha meta. Não quero subjugar a natureza. Na verdade, o que quero é comê-la. Falando com sinceridade, o marlim-azul pode ser a mais perfeita criatura a habitar os sete mares, mas não passa de um peixe. Para um ser humano, pegar um marlim-azul ou uma truta não é grande coisa. É claro que gosto tanto de dominar as forças básicas do universo quanto qualquer um, mas para mim, como para boa parte da humanidade desde tempos imemoriais, a razão de pescar é ter o que jantar. Os preparativos de minha viagem a Ensenada foram rápidos. O único nó verdadeiro era escolher o traje apropriado. Era dezembro. O clima podia estar temperado e seco, temperado e úmido, frio e seco ou frio e úmido. Eu sabia do que precisava: uma capa leve mas durável, feita de algum material da era espacial, que fosse permeável para respirar mas à prova d'água. Meu armário estava forrado de capas supostamente com essas qualidades, reunidas nos últimos vinte anos. Todas deveriam ser impermeáveis mas capazes de permitir a transpiração. Pois eram ou do tipo que suga a água como uma esponja, ou do tipo que fecha tão hermeticamente o corpo que a umidade e a transpiração faziam de mim uma perfeita estufa. Encontrei o que parecia ser o equilíbrio que eu buscava numa capa caríssima, vinda da Patagônia, num preto chique e favorável à silhueta. Não é a cor ideal, caso precise ser resgatado do meio do oceano agitado, mas desde quando elegância tem a ver com praticidade? Minha amiga Gloria Steinem, parafraseando Thoreau, me contou que evita qualquer evento para o qual tenha de comprar roupas novas. Esse é o nosso ponto de discórdia. Seu modo de encarar as coisas diverge profundamente da missão e da visão de mundo de meu principal patrão, a Vogue. Compro com alegria quantas roupas precisar, supérfluas que sejam, apenas para conseguir perseguir e comer o marlim-azul gigante. A sra. Steinem com seus escrúpulos só vai conseguir ficar plantada no cais. O plano era ir guiando até Ensenada, para visitar uma das poucas fazendas de criação de marlins-azuis existentes no mundo, provavelmente a única em toda a costa norte-americana. Depois procuraria um barco para alugar - uma embarcação para pesca de atum, comercial ou particular -, que me transportasse ao encontro do marlim-azul gigante selvagem. Ensenada está a uma hora e meia de viagem depois da fronteira entre os Estados Unidos e o México, seguindo pela costa da Baixa Califórnia. A paisagem costeira na meia hora final é deslumbrante e espetacular em qualquer época do ano, e naquele dia tanto o ar quanto o oceano estavam puros e cristalinos. Fui conduzido até lá por Philippe Charat, um dos sócios majoritários da Maricultura del Norte, proprietária da fazenda de marlins-azuis situada na costa. (Philippe nasceu sessenta anos atrás, em Paris, filho de mãe francesa e pai russo, que se refugiaram no México antes da Segunda Guerra Mundial. Depois ele foi estudar em Harvard e agora vive no Rancho Santa Fé, ao norte de San Diego, como cidadão mexicano com visto de residência permanente nos Estados Unidos.) Ele se oferecera para me mostrar as atividades da fazenda e depois me ajudar a encontrar um barco. E estava planejado um almoço durante a visita, com abalone e um pouco de marlim-azul cru. Só essa promessa de almoço aliviava um pouco a suave depressão que eu sentia, provocada pelo clima perfeito demais, ar muito quente e límpido para o meu traje novinho em folha. Chegamos a uma praia rochosa, convenientemente situada do lado oposto à fazenda de Philippe. Mas a água estava muito agitada para usarmos o pequeno bote da empresa. Assim, viajamos um pouco mais pela costa e subimos num caminhão da companhia, seguindo por uma eternidade nauseante através de uma estradinha horrivelmente perigosa e cheia de cascalho, a pior que já vi na vida. Bem no meio do oceano dava para ver, uma vez ou outra, algo mágico: oito círculos delicados e perfeitos no mar cintilante. Eram os currais para marlins-azuis, bem grandes na realidade, com aproximadamente quarenta metros de diâmetro cada um. Finalmente chegamos a outra praia. Desorientado, temendo ter sido lesado para sempre, subi desajeitadamente num pequeno bote com motor, e fomos abrindo caminho entre os minúsculos barcos dos mergulhadores mexicanos, que pescam ouriços-do-mar, até chegar a mar aberto. Apesar de esses mergulhadores pegarem excelentes espécimes, os compradores japoneses em Tsukiji não se interessam por eles, porque julgam que vinte minutos naquela estradinha dos infernos acaba com a sua qualidade. [...]