Trecho do livro DON GIOVANNI OU O DISSOLUTO ABSOLVIDO

Primeiro, por causa do Golem, depois, muito depois, por causa de Kafka, sempre imaginei a cidade de Praga a preto e branco. Ao Golem, refiro-me ao filme de Paul Wegener, não ao livro de Gustav Meyrink, que nunca tive a paciência de ler até ao fim, devo tê-lo visto aí por 1929, quando nem sete anos havia cumprido ainda. Fui, como se vê, um cinéfilo dos mais precoces. A esse Golem de tosco barro e a outras parecidas assombrações do animatógrafo (dizia-se então assim) ficaria eu a dever os pesadelos mais horríveis da minha infância. O abalo foi tal que me curou deles para todo o resto da vida. A leitura do Processo e do Castelo veio muito mais tarde e não fez senão confirmar que aquela cidade onde o rabino Loew havia modelado o Golem por sua mão, quer quisesse, quer não, era mesmo a preto e branco. Até que chegou o dia em que fui ver Praga com os meus próprios olhos. Afinal, não era a preto e branco. É certo que o palácio fortificado de Hradcany podia muito bem ser aquele castelo aonde o agrimensor K. nunca conseguiu que o chamassem, é certo que pelos seus sombrios corredores poderiam ter retumbado os passos pesados do homem de barro, mas a cidade, cá fora, era colorida, nítida, precisa como uma gravura a buril, boa para passear. Passeei portanto. E eis que a prestante pessoa que me servia de guia diz em certa altura: "Agora vou levá-lo ao teatro onde se estreou o Don Giovanni de Mozart". Não exagero nada se digo que o coração me deu um salto dentro do peito. Se há uma ópera no mundo capaz de pôr-me de joelhos, rendido, submetido, é esta. Tinha-me esquecido, ou não lhe dera suficiente atenção se alguma vez o li, que Don Giovanni havia visto a luz da ribalta em Praga. E ali estava o edifício, o Ständetheater, com as suas colunas coríntias ornamentando uma fachada que nem assim alcançara a monumentalidade que o arquitecto devia ter tido em mente. Por aquela porta, num dia do ano da graça de 1787, entrou Wolfgang Amadeus Mozart com a partitura do seu Don Giovanni ossia Il dissoluto punito debaixo do braço para fazer ouvir à gente de Praga a música de cena mais sublime que alguma vez havia sido composta. E ali estava eu, com o pulso agitado e as mãos trémulas, rodeado de século XX por todos os lados, menos por aquele, desejando uma máquina de viajar no tempo para desandar num instante os quase duzentos anos que me separavam daquele momento, e sabendo, que remédio senão sabê-lo, que nem o tempo nem os rios podem voltar para trás. Dava-se uma outra ópera de Mozart (não recordo qual), mas não havia na bilheteira nem uma só entrada para os dias seguintes. Quando os houvesse já eu não estaria em Praga, e a mim nada mais poderia interessar-me que Don Giovanni. Vim ouvi-lo em casa. Tinha-o escutado várias vezes, escutei-o depois não sei quantas, estou a ouvi-lo uma vez mais enquanto escrevo este prólogo à peça teatral que vai adiante, destinada a servir de fundamento dramático ao libreto de uma ópera de Azio Corghi a que pusemos, ele e eu, o título de Don Giovanni ou O dissoluto absolvido. Porquê absolvido, no fim se conhecerá. Fica por decidir se o autor do texto também virá a beneficiar de uma absolvição, ele que se atreveu a criar o seu próprio Don Giovanni, depois de Tirso de Molina, Cicognini, Giliberto, Dorimon, Villiers, Molière, Rosimond, Shadwell, Zamora, Goldoni, Lorenzo da Ponte, Byron, Espronceda, Hoffmann, Zorrilla, Pushkine, Dumas, Mérimée, e não sei quantos mais. Em meu abono, seja o dilecto amigo Azio Corghi minha boa e leal testemunha, apresentarei as provas da resistência que desde o primeiro momento opus ao convite. Comecei por argumentar que sobre as malas-artes de Don Giovanni tudo havia sido dito, que não valia repetir o que outros já tinham feito melhor, que qualquer coisa que escrevesse seria o mesmo que chover no molhado, etc... Era certo que sempre havia pensado que Don Giovanni não podia ser tão mau como o andavam a pintar desde Tirso de Molina, nem Dona Ana e Dona Elvira tão inocentes criaturas, sem falar do Comendador, puro retrato de uma honra social ofendida, nem de um Don Octávio que mal consegue disfarçar a cobardia sob as maviosas tiradas que no texto de Lorenzo da Ponte vai debitando. Azio Corghi insistiu, insistiu, e então, em desespero de causa, atraído pelo desafio, mas ao mesmo tempo intimidado pela responsabilidade da empresa, disse-lhe que se me ocorresse uma ideia, uma ideia boa, o intentaria. Passou o tempo, meses, Azio perguntando, e finalmente a ideia surgiu. Suspeito agora de que não será tão boa quanto ao princípio me tinha parecido, mas o resultado aí está. O pano já pode subir. Faltará a música, que é sempre o melhor de tudo. Oxalá o leitor possa escutar, chegando bem o ouvido à página, aquela outra música que as palavras têm e que estas talvez não tenham perdido por completo. José Saramago