Trecho do livro AVALOVARA

A ESPIRAL E O QUADRADO Como num relato de Borges, o modelo deste livro seria um poema místico em latim, de que se conserva apenas a versão grega na hipotética Biblioteca Marciana de Veneza... O poema fornece o esqueleto de uma geometria rigorosa e oculta, que o Autor revela numa espécie de guia metalingüístico do leitor, e que dá à narrativa um movimento espiralado, sem começo nem fim quando tomado em si mesmo. O limite está no fato de a espiral ser contida num quadrado, que por sua vez se reparte em quadrados menores, cada um correspondendo a uma letra. O traçado da espiral vai tocando sucessivamente as letras, e cada uma destas corresponde a uma linha da narrativa, voltando periodicamente em segmentos cada vez maiores. As linhas são oito, e o seu desdobramento se traduz na história de um homem e das mulheres que amou: uma na Europa, uma em Recife e sobretudo uma, em São Paulo, que de certo modo recebe a experiência amorosa vivida com as anteriores. As duas primeiras seriam passado, mas funcionando como presente; a última é um presente que se forma a cada instante do passado. Toda a narrativa converge para a plenitude amorosa, numa espécie de gigantesca câmara lenta, que concentrasse o tempo no espaço limitado e no limitado instante em que a plenitude é buscada. O que desde logo prende em Avalovara é a poderosa coexistência da deliberação e da fantasia, do calculado e do imprevisto, tanto no plano quanto na execução de cada parte. Falando do relógio de Julius Heckethorn (uma das linhas da narrativa), o Autor diz que obedecia a "um esquema rigoroso". E "sobre este rigor assenta a idéia de uma ordem do mundo". Mas "como introduzir, então, na obra, o princípio de imprevisto e aleatório, inerente à vida?". A execução do livro é a resposta, fascinante para o leitor, à medida que este vai experimentando a precisão geométrica do arcabouço, a minúcia implacável da descrição e a poesia livre que rompe a cada instante. SATOR AREPO TENET OPERA ROTAS é uma frase inventada por um escravo frígio de Pompéia, feita de cinco palavras, cada uma com cinco letras, que se pode ler igualmente nos dois sentidos, e em cuja composição entram apenas oito letras, que, distribuídas pelos quadrados menores, constituem as linhas narrativas. Nos vinte e cinco quadrados que formam o quadrado grande, onde se contém a espiral, as palavras se sobrepõem horizontalmente, mas também se estendem em colunas verticais, pois a frase pode ser lida indiferentemente da esquerda para a direita, da direita para a esquerda, de cima para baixo, de baixo para cima, em diversos rumos. Assim, na narrativa, o amor é visto do homem para a mulher, da mulher para o homem, do presente para o passado, do passado para o presente, daqui para ali, dali para aqui, numa reversibilidade vertiginosa que traz à baila a evocação da herma de Jano e chega a uma mulher que é também homem, para um homem que poderia eventualmente ser também mulher. As reversibilidades prosseguem ainda noutro plano, quando o Narrador se transforma periodicamente em Autor e a narrativa quebra a imagem do real, para apresentá-lo como fantasia composta. Neste romance, uma das linhas é precisamente a da consciência crítica entrando a cada instante pela série ficcional, denunciando o seu caráter fictício de empresa deliberada, igualmente reversível entre a representação do real e o caráter ilusionista da representação. Daí um livro que não tem medo de se apresentar como livro, como maquinismo montado, como não-realidade - mas do qual jorram o fascínio de uma vida que palpita, o traçado do mundo exterior e a surda potência das emoções. [...] Antonio Candido