Trecho do livro TERRORISTAS DO MILÊNIO

1. REBELIÃO NA MARINA CHELSEA Estava acontecendo uma pequena revolução, tão modesta e bem-comportada que praticamente ninguém notou. Como o visitante de um cenário cinematográfico abandonado, parei na entrada da Marina Chelsea ouvindo o barulho do trânsito matinal na King's Road, aquela reconfortante balbúrdia do rádio dos carros e da sirene das ambulâncias. Para lá do portão se estendiam as ruas do condomínio abandonado, uma visão apocalíptica desprovida de trilha sonora. Faixas de protesto pendiam dos terraços. Contei uma dúzia de carros virados e pelo menos duas casas totalmente queimadas. Apesar de tudo os passantes que cruzavam comigo iam às compras sem demonstrar a mínima preocupação. Parecia que outra festa na Chelsea escapara do controle, e os convidados estavam bêbados demais para perceber. Em certo sentido, pura verdade. A maior parte dos rebeldes e mesmo alguns líderes locais jamais compreenderam o que estava acontecendo no confortável enclave. Não admirava, pois aqueles revolucionários afáveis e bem-educados se rebelavam contra si mesmos. Até eu, David Markham, psicólogo experiente infiltrado na Marina Chelsea como espião da polícia - um logro que eu seria o último a descobrir - deixei de perceber o que ocorria. Mas a inusitada amizade com Richard Gould, dedicado pediatra e líder da revolta, desviava minha atenção. Ele era o doutor Moreau do condomínio, como Kay Churchill, nossa amante compartilhada, o apelidara. Pouco depois de nosso primeiro encontro, Richard perdera o interesse pela Marina Chelsea, avançando para uma revolução muito mais radical, que ele sabia estar bem de acordo com meu temperamento. Aproximei-me do cordão de isolamento que impedia o acesso ao condomínio pela King's Road e mostrei meu passe aos dois policiais que aguardavam a chegada do ministro do Interior. O motorista da van da floricultura discutia com eles, apontando para um gigantesco ramalhete de copos-de-leite sobre o banco do passageiro. Deduzi que um morador local, advogado ou contador bem-sucedido, estivera tão ocupado com a revolução que se esquecera de cancelar a encomenda das flores para a esposa aniversariante. Os guardas se mostraram inflexíveis, recusando ao motorista permissão para entrar no condomínio. Intuíam que algo profundamente suspeito ocorrera naquela comunidade que antes respeitava a lei, um evento que exigia a presença de um ministro de Estado e sua comitiva de sumidades. Os visitantes - consultores do Ministério do Interior, religiosos consternados, psicólogos como eu e assistentes sociais respeitados - iniciariam a visita ao meio-dia, dentro de uma hora. Não haveria policiais armados para nos proteger, pressupunham compreensivelmente que uma classe média rebelada era cordata demais para representar uma ameaça física. Mas, como eu bem sabia, a ameaça seria exatamente física. As aparências enganam e confirmam qualquer coisa. Os policiais gesticularam, autorizando minha passagem. Mal olharam para o passe. Tendo sido provocados durante semanas por mães de família articuladas em jeans esfarrapados, sabiam que meu corte de cabelo na moda, cortesia da equipe de maquiagem da bbc, terno cinza-escuro e bronzeamento artificial excluíam minha pessoa da tribo da Marina Chelsea. Os residentes prefeririam morrer a parecerem um guru televisivo de pouca audiência, um intelectual renegado que vivia no mundo duvidoso das videoconferências e seminários de aeroporto. Mas o terno não passava de um disfarce, eu o usava pela primeira vez em seis meses, após jogar no lixo o paletó de couro gasto e a calça jeans. Saltei sem dificuldade por cima do cordão de isolamento, muito mais em forma do que os policiais imaginavam. As "ações terroristas", como o ministro do Interior as definira, em pouco tempo haviam enrijecido o corpo flácido, conseqüência de anos em saguões de hotel e salas de embarque. Até minha mulher, Sally, sempre tolerante, nunca surpresa, se impressionara com os braços musculosos, ao contar marcas deixadas pelos confrontos com a polícia e os guardas de segurança. Mas um disfarce pode ir longe demais. Ao ver meu reflexo nas janelas quebradas da guarita, afrouxei o nó da gravata. Ainda não sabia direito que papel eu desempenhava. Richard Gould e eu éramos vistos juntos com muita freqüência, e os policiais deveriam me reconhecer como principal cúmplice daquele terrorista procurado. Quando acenei para eles, deram-me as costas, observando a King's Road em busca da limusine do ministro do Interior. Senti uma pontada de desapontamento. Por alguns segundos desejei que me interpelassem. À minha frente estendia-se a Marina Chelsea, com ruas desertas como nunca acontecera nos vinte anos de sua existência. A população inteira sumira, deixando uma zona de silêncio, como se ali houvesse uma reserva ambiental urbana. Oitocentas famílias haviam partido, abandonando cozinhas confortáveis, hortas de ervas e salas cheias de livros. Deram as costas a si mesmos e a tudo em que um dia acreditaram, sem o menor remorso. Para lá dos telhados ouvia-se o ruído do trânsito da zona oeste de Londres, que se atenuava conforme eu percorria a Beaufort Avenue, principal via do bairro. A vasta metrópole que cercava a Marina Chelsea ainda prendia o fôlego. Ali principiara a revolução da classe média, não a insurreição de um proletariado desesperado, mas a rebelião de profissionais liberais instruídos que constituíam quilha e âncora da sociedade. Naquelas ruas plácidas, cenário de incontáveis jantares festivos, cirurgiões e corretores de seguros, arquitetos e gerentes de planos de saúde haviam erguido barricadas e virado seus próprios carros para bloquear a passagem dos carros de bombeiros e equipes de resgate que tentavam salvá-los. Recusaram oferta de ajuda, negando-se a manifestar suas queixas, e até mesmo a revelar se tinham alguma queixa, afinal de contas. Os negociadores do cerco enviados pela subprefeitura de Kensington e Chelsea foram recebidos inicialmente com silêncio, depois com zombarias e por fim com coquetéis molotov. Por razões que ninguém entendia, os moradores da Marina Chelsea iniciaram o desmanche de seu mundo classe-média. Fizeram fogueiras com livros e quadros, brinquedos educativos e vídeos. O noticiário televisivo mostrava famílias de braços dados, rodeadas de carros tombados, rostos orgulhosos iluminados pelas labaredas. Passei por um BMW calcinado, virado de rodas para cima junto ao meio-fio, e parei para observar o tanque de combustível retorcido. Um avião de passageiros sobrevoou a região central de Londres e centenas de janelas quebradas tremeram por causa da vibração das turbinas, como se liberassem o restinho da raiva. Curiosamente, os condôminos que destruíram a Marina Chelsea não demonstraram sentir raiva de nada. Descartaram calmamente seu mundo, como se estivessem pondo o lixo para fora. Aquela placidez sinistra e a indiferença dos residentes em relação aos gigantescos encargos financeiros que teriam de pagar, ainda mais preocupantes, provocaram a visita do ministro do Interior. Henry Kendall, meu colega no Instituto, tinha contatos estreitos com o Ministério do Interior e informou que outros pontos de inquietação da classe média começavam a pipocar em subúrbios abastados de Guildford, Leeds e Manchester. Por toda a Inglaterra uma casta inteira de profissionais formados em curso superior estava rejeitando tudo o que trabalhara duro para conquistar. Observei o avião passar pelo céu de Fulham e se perder entre as vigas expostas do telhado de uma casa queimada no final da Beaufort Avenue. A diretora de uma escola local e seu marido médico, proprietários do imóvel, haviam abandonado a Marina Chelsea levando três filhos. Resistiram até os últimos minutos e sucumbiram à tropa de choque da polícia. Pertenciam à vanguarda da rebelião, decididos a desmascarar a injustiça descarada que comandava sua vida. Imaginei-os a percorrer indefinidamente a M25 no Land Rover enlameado, absortos num transe profundo. Para onde teriam ido? Muitos moradores refugiaram-se em seus chalés no campo ou procuraram amigos que apoiavam a luta com alimentos e e-mails encorajadores. Outros partiram para viagens indefinidas pelo distrito dos Lagos ou pelas Terras Altas da Escócia. Rebocavam trailers, formando a vanguarda de uma classe média itinerante, de uma nova tribo de ciganos com diploma universitário que conhecia a lei e poderia dar muitas dores de cabeça às prefeituras locais. Kay Churchill, docente de estudos cinematográficos na universidade South Bank e minha senhoria, fora detida pela polícia e solta sob fiança. Sempre a proclamar a revolução, ela se refugiou num programa vespertino de tevê a cabo. A casa lotada porém confortável, cheia de sofás puídos e fotos de filmes, sofrera uma inundação pelas potentes mangueiras do corpo de bombeiros de Chelsea. Sentia falta de Kay e sua cabeleira grisalha, opinião errática e vinho a fluir incessante, mas a casa dela, abandonada, era o álibi para chegar lá uma hora antes do ministro do Interior. Torcia para encontrar meu laptop ainda em cima da mesa de centro, na sala de Kay, onde havíamos estendido os mapas e planejado os ataques incendiários ao National Film Theater e ao Albert Hall. Durante os instantes finais da revolta, quando os helicópteros sobrevoavam a área, Kay empenhara-se tanto em converter o bem-apessoado chefe dos bombeiros para a causa que sobrou tempo para os subordinados romperem os vidros com os jatos de água. Um vizinho tirara Kay da casa, mas o laptop permanecia lá à espera dos especialistas da polícia científica. Cheguei ao fim da Beaufort Avenue, ao silencioso centro da Marina Chelsea. Um prédio de apartamentos com sete andares erguia-se ao lado de Cadogan Circle; faixas pendiam frouxas dos terraços, proclamando seus slogans para o ar mouco. Atravessei a rua, no rumo de Grosvenor Place, o famigerado beco de Kay cujo nome lembrava uma Chelsea antiga, diferente. A ruazinha abrigara um comerciante de antiguidades que acabou preso, dois casais de lésbicas e um piloto de Concorde alcoólatra. Era um paraíso em matéria de bom divertimento e más companhias. Caminhei na direção da caótica casa de Kay, escutando meus passos estalarem atrás de mim, ecos de uma culpa que tentava fugir de cena, embora só se aproximasse ainda mais. Distraído pela visão de tantas casas vazias, tropecei no meio-fio e me apoiei numa caçamba lotada de objetos domésticos. Os revolucionários, sempre gentis com seus vizinhos, haviam encomendado uma dúzia de caçambas gigantescas na semana anterior ao levante. Havia um Volvo incendiado na rua, mas as regras continuavam valendo e o empurraram até uma vaga. Os rebeldes haviam feito a faxina, após a revolução. Quase todos os carros foram desvirados e as chaves estavam no contato, à espera da retomada pelo banco financiador. A caçamba estava cheia de livros, raquetes de tênis, brinquedos infantis e um par de esquis chamuscados. Ao lado de um blazer escolar com monograma queimado havia um terno de pura lã, o uniforme diário do executivo de médio escalão. Jogado no meio do lixo, parecia a farda gasta de um soldado que largara o fuzil e fugira para as montanhas. O terno era estranhamente vulnerável, como a bandeira abandonada de uma civilização inteira, e eu torci para que um dos assessores do ministro do Interior mostrasse isso a ele. Tentei pensar numa resposta, se me pedissem para comentar a cena. Como membro do Instituto Adler, especializado em relações industriais e psicologia do trabalho, eu era uma suposta autoridade em vida emocional no serviço e problemas mentais dos gerentes médios. Mesmo assim, era difícil encontrar uma explicação satisfatória para o terno. Kay Churchill saberia como responder. Enquanto pulava as poças d'água na parte de fora da casa eu ouvia sua voz dentro da minha cabeça: intimidando, implorando, sensata e absolutamente insana. A classe média era o novo proletariado, vítima de uma conspiração que durava séculos, e afinal rompera os grilhões do dever e da responsabilidade social. Daquela vez a resposta absurda era provavelmente a correta. Os bombeiros haviam inundado a casa para evitar que Kay a incendiasse. A água ainda pingava das vigas, uma fina névoa saía dos tijolos. A sala contínua tornara-se uma gruta marinha, a umidade escorria pelo forro rachado, as paredes mais pareciam tapeçarias molhadas. Parei entre os cartazes de Ozu e Bresson, quase esperava ver Kay surgir na cozinha com dois copos e uma garrafa de vinho, presente de um admirador, a insistir em que a batalha fora vencida. Kay partira mas seu mundo animado e dissoluto permanecia a postos - em recados de Post-it grudados no espelho, em cima da lareira, convites para conferências feitos por grupos anarquistas e a coleção de pedras brancas no consolo da lareira. Cada pedregulho, contara, era a recordação de um amor de verão numa praia grega. Gotículas cobriam a foto da filha no porta-retrato, uma adolescente que vivia na Austrália, tirada nas derradeiras férias antes de a guarda dela passar ao marido. Kay seguira em frente, sustentando que a lembrança era uma armadilha dourada, restos do vinho da noite anterior num copo sujo de batom, mas eu a surpreendi mais de uma vez a enxugar lágrimas da foto emoldurada que segurava junto ao peito. O sofá onde Kay e eu cochilávamos juntos era um monte ensopado. Mas meu laptop continuava em cima da pilha de revistas e roteiros cinematográficos. O disco rígido continha provas mais que suficientes para me condenar como cúmplice de Richard Gould. Havia listas de locadoras de vídeo a incendiar, agências de viagem a atacar, galerias e museus a sabotar, bem como as equipes de residentes destacadas para cada ação. Para impressionar Kay eu havia acrescentado notas sobre os estragos causados, ferimentos nos participantes e prováveis pedidos de compensação ao seguro. Ao digitar esses detalhes desnecessários, com o braço de Kay quente em volta dos meus ombros, eu me sentia como quem desenrolava um tapete que me levaria direto para uma cela no presídio. Pensando carinhosamente em Kay, estendi a mão para ajeitar o retrato da filha. Um caco de vidro caiu da moldura e cortou a palma da minha mão, secionando levemente a linha da vida. Ao olhar a mancha brilhante, enquanto procurava o lenço, eu me dei conta de que aquele fora o único sangue derramado por mim na Marina Chelsea durante a rebelião inteira. Fechei a porta ao passar com o laptop debaixo do braço. Olhei para as almofadas da porta de madeira pela última vez e vi, no esmalte liso, uma janela se mover e refletir a luz do sol. Uma folha de janela balançava no apartamento de cobertura do prédio de apartamentos ao lado de Cadogan Circle. Inesperadamente uma mão estendida limpou os vidros, sacudiu o pano de pó e se retirou. Desci à rua e segui no rumo dos apartamentos, passando por um Saab queimado em sua vaga definitiva. Os sem-teto iam invadir a Marina Chelsea, deixando de lado as drogas leves e os colchões duros? Estariam prontos para adotar um novo estilo de vida, para encarar mensalidades escolares e faxineiras brasileiras? Aulas de balé e planos de saúde da BUPA? Nossa revolução acanhada entraria para o calendário folclórico, para ser celebrada ao lado do baile de formatura e do torneio de tênis em Wimbledon. Apertei o botão do elevador no hall do prédio de apartamentos, mantendo o lenço pressionado contra a palma da mão. Decepcionado, lembrei-me de que a energia fora cortada na Marina Chelsea inteira. Subi pela escada, parando para descansar a cada pavimento, rodeado pelas portas abertas dos apartamentos abandonados, como um ator em busca do palco certo. Sentia a cabeça girar quando cheguei ao último andar. Sem pensar, empurrei a porta destrancada e olhei através da sala para a janela que balançara, refletindo o raio de sol. Uma moradora do terceiro andar do mesmo prédio, Vera Blackburn, trabalhara no governo como cientista e era amiga íntima de Kay Churchill. Pelo que me lembro, a cobertura pertencia a uma jovem oculista e a seu marido. As janelas na sala permitiam uma visão clara da Marina Chelsea, pois davam para a Beaufort Avenue, caminho que o ministro do Interior faria em sua visita de inspeção. Pulei uma mala abandonada e entrei na sala. Havia uma sacola de lona azul em cima da mesa, na lateral vi o símbolo da Polícia Metropolitana, era parte do equipamento utilizado para controle de distúrbios. Dentro haveria armas com balas de borracha, gás lacrimogêneo e bastões eletrificados com os quais a polícia se defendia dos inimigos incansáveis que a rodeavam. O laptop pesava cada vez mais em minha mão, num sinal de alerta indireto. Ouvi vozes de duas pessoas no cômodo adjacente, o tom áspero mas contido de uma voz masculina e a resposta aguda de uma mulher. Presumi que um policial e sua colega vigiavam o trajeto do ministro do Interior. Metódicos convictos, haviam limpado a janela para ver melhor o ministro de Estado passear rodeado de conselheiros que aquiesciam com a cabeça. Ao me encontrar em seu posto de observação presumiriam o pior, e sem perda de tempo deduziriam que o laptop de um psicólogo era uma arma potencialmente mortífera. Tentei não tropeçar na mala ao recuar para a porta, notando os quadros de oculista pregados na parede, acima da escrivaninha, com seus círculos feito alvos e linhas de letras sem sentido, que mais pareciam mensagens em código. A porta do quarto se abriu e um homem distraído de terno gasto entrou na sala. O sol bateu nele por trás, mas pude ver sua face subnutrida e o tufo claro no alto da cabeça. Ele notou minha presença, mas parecia entretido com seus próprios problemas, como se eu fosse um paciente que aparecesse em seu consultório sem marcar hora. Olhou pela janela, para a rua deserta com suas casas chamuscadas; tinha a expressão cansada de um médico sobrecarregado tentando exercer sua atividade num subúrbio devastado pela guerra, no Oriente Médio. Por fim dirigiu-se a mim, sorridente, numa súbita demonstração de calor humano. "David? Entre. Estávamos todos esperando por você." Contraditoriamente, percebi que estava ansioso para encontrá-lo.