Trecho do livro PLEXUS

1. Em seu vestido persa justo, com um turbante do mesmo tecido, ela estava deslumbrante. A primavera tinha chegado e ela envergara um par de luvas compridas e uma linda estola de pele cor de mostarda envolvendo descuidadamente seu pescoço cheio e colunar. Tínhamos escolhido Brooklyn Heights para lá procurar um apartamento, pensando em ficar o mais longe possível de todas as pessoas que conhecíamos, especialmente Kronski e Arthur Raymond. Ulric era o único a quem tínhamos a intenção de dar o novo endereço. Seria uma autêntica "vita nuova" para nós, livre de intrusões do mundo exterior. No dia em que começamos a procurar nosso ninho de amor, estávamos radiantes de felicidade. Cada vez que entrávamos num vestíbulo e tocávamos a campainha eu a abraçava e beijava vezes sem conta. O vestido a envolvia como uma bainha de faca. Ela nunca tivera uma aparência tão tentadora. Às vezes a porta se abria antes que tivéssemos tempo de nos desvencilhar. Ocasionalmente, pediam-nos que apresentássemos a aliança de casados ou a certidão de casamento. Ao cair da tarde encontramos uma sulista de espírito aberto e bom coração que pareceu gostar de nós na mesma hora. Era um lugar estupendo que ela tinha para alugar, mas muito além das nossas possibilidades. Mona, claro, ficou determinada a consegui-lo; era o tipo de lugar em que ela sempre sonhara viver. O fato de o aluguel custar o dobro do que pretendíamos pagar não a perturbava. Era para eu deixar tudo por sua conta - e ela "daria um jeito". A verdade é que eu queria o apartamento tanto quanto ela, mas não tinha ilusões quanto a "dar um jeito" no aluguel. Estava convencido de que, caso alugássemos aquele apartamento, acabaríamos afundando. A mulher com quem lidávamos não desconfiou nem um pouco, claro, de que representávamos um alto risco. Estávamos confortavelmente sentados em seus aposentos do andar de cima, tomando um xerez. Dali a pouco seu marido chegou. Ele também pareceu achar que éramos um casal do tipo certo. Era da Virgínia, um perfeito cavalheiro da cabeça aos pés. Minha posição no mundo Cosmodemônico causou-lhes uma impressão evidente. Manifestaram um sincero espanto por uma pessoa tão jovem como eu ocupar posição de tamanha responsabilidade. Mona, como não podia deixar de ser, explorou o fato ao máximo. A crer no que ela dizia, eu estava à beira de ser promovido a superintendente e, dali a poucos anos, a uma vice-presidência. "Não foi isso que o senhor Twilliger lhe disse?", perguntou-me, obrigando-me a assentir com a cabeça. O desfecho foi que acabamos deixando um depósito, uma simples nota de dez, que parecia um tanto ridículo diante do valor do aluguel, de noventa dólares por mês. Como iríamos fazer para levantar o saldo do aluguel daquele primeiro mês, para não falar da compra da mobília e da parafernália restante de que precisávamos, disso eu não tinha a menor idéia. A meu ver, aquele depósito tinha sido dez dólares jogados fora. Um gesto feito para salvar as aparências, nada mais. De que Mona iria mudar de idéia, assim que nos afastássemos das garras generosas daquele casal, eu estava convencido. Mas me enganava, como sempre. Ela estava decidida a mudar-se para lá o mais cedo possível. Os demais oitenta dólares? Conseguimos com um de seus admiradores devotados, um dos atendendentes num hotel, o Broztell. "E esse, quem é?", arrisquei-me a perguntar, jamais tendo ouvido antes nenhuma menção ao nome. "Não se lembra? Eu o apresentei a você poucas semanas atrás - quando você e Ulric se encontraram conosco na Quinta Avenida. Ele é perfeitamente inofensivo." Tudo parecia indicar que todos eles sempre eram "perfeitamente inofensivos". Era a maneira que ela encontrava de me informar que jamais cogitariam de constrangê-la pedindo-lhe que passasse uma noite com eles. Eram todos uns "cavalheiros", e geralmente, ainda por cima, todos palermas. Fiz um grande esforço para lembrar como era a aparência daquele pamonha específico. Só consegui lembrar que era bastante jovem e pálido. Em suma, indistinguível. Como ela fazia para impedir que aqueles galantes admiradores a procurassem, alguns deles tão ardentes e impetuosos, era um mistério para mim. Sem dúvida, como no passado fizera comigo, devia fazê-los crer que vivia com os pais, que sua mãe era uma bruxa e seu pai não podia sair da cama, morrendo de câncer. Felizmente, era raro eu me interessar muito por aqueles garbosos pretendentes. (Melhor não me aprofundar demais, foi o que sempre me repeti.) A coisa importante a ter em mente era - "perfeitamente inofensivos". Mas iríamos precisar de um pouco mais que o dinheiro do aluguel para montar uma casa. E descobri, claro, que Mona já pensara em tudo. Trezentos dólares ela extorquira do pobre otário. Tinha pedido quinhentos, mas ele protestou, dizendo que sua conta bancária estava quase esgotada. Como castigo por mostrar-se tão imprevidente, ela ainda o fez comprar-lhe um exótico vestido de camponesa e um par de sapatos caros. Que aquilo lhe servisse de lição! Já que ela precisava comparecer a um ensaio naquela tarde, decidi ir eu mesmo escolher os móveis e outras coisas. A idéia de pagar à vista por esses artigos, quando o princípio essencial do nosso país era a compra a prazo, pareceu-me uma bobagem. Pensei imediatamente em Dolores, que se tornara compradora de uma das grandes lojas de departamentos da Fulton Street. Dolores, eu tinha certeza, saberia cuidar de mim. Levei menos de uma hora para escolher tudo de que estávamos precisando para guarnecer nosso luxuoso ninho de amor. Fiz minhas escolhas com gosto e critério, sem esquecer de incluir na encomenda uma bela escrivaninha, dotada de muitas gavetas. Dolores não conseguiu esconder uma ponta de preocupação com nossa capacidade de honrar os pagamentos mensais, mas consegui superar suas dúvidas garantindo-lhe que Mona vinha ganhando extraordinariamente bem no teatro. Além disso, eu ainda não ocupava o meu emprego no bordel Cosmocóccico? "Sim, mas a pensão", murmurou ela. "Ah, isso! Mas isso eu não pretendo continuar pagando por muito tempo", respondi com um sorriso. "Está me dizendo que pretende deixá-la na mão?" "Ou coisa parecida", admiti. "Não dá para carregar uma pedra em torno do pescoço a vida inteira, não é?" Ela achou aquilo típico do canalha que eu era. Mas o disse, contudo, dando a impressão de achar os canalhas pessoas adoráveis. Na despedida, ainda acrescentou: "Acho que eu devia saber que não posso confiar em você". "E essa agora!", respondi. "Se não pagarmos eles mandam tomar os móveis de volta. Qual é o problema?" "Não estou pensando na loja", disse ela. "Estou pensando em mim." "Ora, ora! Você sabe muito bem que eu jamais deixaria você na mão." E é claro que deixei, mas contra minha intenção. Àquela altura, a despeito das minhas apreensões iniciais, eu ainda acreditava de fato, sinceramente, que tudo acabaria dando perfeitamente certo. Toda vez que eu era atingido pela dúvida ou pelo desespero, podia contar que Mona me aplicaria uma injeção. Mona vivia totalmente no futuro. O passado era um sonho fabuloso que ela distorcia à vontade. Ninguém jamais devia tirar conclusões do passado - um modo nada confiável de avaliar as coisas. O passado, na medida em que equivalia ao fracasso e à frustração, simplesmente não existia. Em muito pouco tempo já nos sentíamos perfeitamente à vontade em nossos belíssimos novos aposentos. Ficamos sabendo que a casa pertencera antes a um juiz rico, o qual a tinha reformado para deixá-la de acordo com seus caprichos. Devia ser um homem de muito bom gosto e uma espécie de sibarita. Os pisos eram de madeira trabalhada, os lambris da parede, de nogueira encerada; havia cortinas de seda rosa, e estantes tão espaçosas que poderiam ser convertidas em camas. Ocupávamos a metade dianteira do primeiro andar, com vista para a área mais tranqüila e aristocrática de todo o Brooklyn. Nossos vizinhos todos tinham limusines, mordomos, cães e gatos caros cujas refeições nos deixavam com a boca cheia d'água. A nossa era a única residência do quarteirão a ter sido dividida em apartamentos. Atrás dos nossos dois aposentos, e separada deles por uma porta de correr, ficava uma sala enorme à qual tinham sido acrescentados um banheiro e uma quitinete. Por algum motivo, continuava sem inquilinos. Talvez lembrasse demais um claustro. Na maior parte do dia, devido a suas janelas de vidro colorido, o aposento era bastante escuro, ou, melhor dizendo, tinha uma iluminação muito moderada. Mas quando o sol do fim da tarde atingia os vitrais, projetando desenhos de fogo no piso muito encerado, eu gostava de entrar lá e ficar andando de um lado para outro em disposição meditativa. Às vezes tirávamos a roupa e dançávamos ali, admirando os alegres desenhos que os vitrais projetavam em nossos corpos nus. Nas disposições mais exaltadas, eu calçava um par de chinelos escorregadios e produzia uma imitação de uma estrela da patinação no gelo, ou andava de um lado para outro plantando bananeira enquanto cantava em falsete. Às vezes, depois de tomar algumas bebidas, eu tentava reproduzir os trejeitos dos meus palhaços favoritos do palco de variedades. Os primeiros meses, quando todas as nossas necessidades eram providencialmente atendidas, correram de maneira esplêndida. Não há outra palavra. Ninguém nos visitava de surpresa. Vivíamos exclusivamente um para o outro - num ninho cálido e confortável. Não precisávamos de ninguém, nem mesmo do Todo-Poderoso. Ou pelo menos era o que achávamos. A magnífica biblioteca da Montague Street, um lugar que parecia um necrotério mas era abarrotado de tesouros, ficava ali perto. Enquanto Mona estava no teatro, eu lia. Lia o que me desse vontade de ler, e com uma atenção redobrada. E muitas vezes ler era impossível - aquele lugar era simplesmente bom demais. Lembro de mim fechando o livro, levantando-me lentamente da poltrona e caminhando sereno e meditativo de aposento em aposento, tomado por uma satisfação absoluta. É verdade, eu não queria mais nada, só uma contínua e ininterrupta sucessão de mais da mesma coisa. Tudo o que eu possuía, tudo o que eu usava, tudo o que eu vestia, eram presentes que Mona me dava: o roupão de seda, mais adequado a um galã de matinê que a este seu criado, os esplêndidos chinelos marroquinos, a piteira que eu só usava na presença dela. Toda vez que eu batia a cinza no cinzeiro, debruçava-me para apreciá-lo melhor. Ela comprara três deles, todos únicos, exóticos, belíssimos. Eram tão bonitos, tão preciosos, que quase caíamos em adoração diante deles. A vizinhança, por si, já era notável. Uma pequena caminhada em qualquer direção levava-me às áreas mais diversas: à região fantástica além da estrutura metálica da Brooklyn Bridge; aos ancoradouros das antigas balsas, onde se reuniam árabes, turcos, sírios, gregos e outros povos do Levante; às docas e cais onde vapores do mundo todo ancoravam; ao centro comercial perto de Borough Hall, uma região que à noite adquiria uma aparência espectral. No cerne de Columbia Heights ficavam imponentes igrejas antigas, sedes de clubes, mansões dos ricos, todas parte de um núcleo sólido e tradicional que vinha sendo corroído aos poucos pelas hordas invasoras de estrangeiros, párias e vagabundos vindos de confins distantes. Em criança eu viera muitas vezes até ali visitar minha tia que morava em cima de um estábulo ligado a uma das mais horrendas mansões antigas. A pouca distância, na Sackett Street, morara meu velho amigo Al Burger, cujo pai comandava um rebocador. Eu tinha uns quinze anos quando conheci Al Burger - às margens do rio Neversink. Foi ele quem me ensinou a nadar como um peixe, mergulhar em águas rasas, lutar à maneira dos índios, atirar com arco e flecha, usar meus punhos, correr sem cansar, e assim por diante. Os pais de Al eram holandeses, e, por estranho que possa parecer, todos tinham um esplêndido senso de humor, com a única exceção de seu irmão Jim, que era um atleta, um dândi e um imbecil vaidoso e estúpido. À diferença do que ocorria com seus ancestrais, porém, sua casa vivia entregue ao desmazelo mais desolador. Cada um deles, ao que parecia, agia como lhe dava na telha. Havia ainda duas irmãs, ambas muito bonitas, e a mãe, que tinha modos bastante vulgares mas também era linda, e ainda muito alegre, indolente e generosa. Tinha sido cantora de ópera. Quanto ao velho, "o capitão", dificilmente era visto. Quando aparecia, estava quase sempre bastante embriagado. Não tenho lembrança da mãe de Al jamais ter preparado uma refeição decente para nós. Quando ficávamos com fome, ela nos atirava algumas moedas e nos dizia para irmos fazer compras por nossa conta. E sempre comprávamos as mesmas malditas comidas prontas - salsichas, salada de batata, picles, tortas e bolinhos fritos chamados crullers. Ketchup e mostarda eram usados em abundância. O café era sempre fraco como água de lavar pratos, o leite, azedo, e nunca se encontrava um prato, xícara, faca ou garfo limpo em toda a casa. Mas as refeições eram alegres, e comíamos como lobos. É da vida nas ruas que me lembro melhor e que eu mais gostava. Os amigos de Al pareciam pertencer a outra espécie, diferente dos meninos que eu conhecia. Mais calor, mais liberdade, mais hospitalidade reinavam em Sackett Street. Embora tivessem mais ou menos a mesma idade que eu, aqueles amigos me davam a impressão de ser mais maduros, além de mais independentes. Toda vez que me despedia deles, era dominado pela sensação de ter ficado mais rico. O fato de morarem perto do cais, de suas famílias viverem ali havia várias gerações, de constituírem um grupo mais homogêneo do que o nosso, pode ter alguma coisa a ver com as qualidades que os tornavam tão caros para mim. Dentre eles, havia um de quem ainda me lembro com nitidez, embora já tenha morrido há muito tempo. Frank Schofield. Quando nos conhecemos, Frank só tinha dezessete anos, mas já era do tamanho de um adulto. Não havia absolutamente nada que tivéssemos em comum, vejo agora quando penso em nossa estranha amizade. O que me atraía nele eram seus modos espontâneos, relaxados, joviais, sua absoluta flexibilidade, sua aceitação inequívoca do que lhe era oferecido, fosse uma salsicha já fria, um caloroso aperto de mão, um velho canivete, ou a promessa de voltar para encontrá-lo na semana seguinte. Ele cresceu e tornou-se uma figura imensa, tremendamente acima do peso, e dotado de uma competência algo estranha e instintiva, suficiente para transformá-lo no braço direito de um jornalista muito proeminente, com quem correu mundo e para quem executava todo tipo de tarefa ingrata. É provável que eu não o tenha visto mais de três ou quatro vezes depois dos velhos tempos da Sackett Street. Mas sempre pensava nele. Costumava sentir-me bem só de recordar sua imagem, de tão caloroso que ele era, tão bondoso, tão completamente confiante e crédulo. Nunca me escreveu mais do que cartões-postais. E eu mal conseguia ler os seus garranchos. Uma única linha, dizendo que estava bem, que o mundo era ótimo, e como é que você anda? Sempre que Ulric vinha nos visitar, o que quase sempre ocorria no sábado ou no domingo, eu saía com ele em grandes caminhadas pela antiga vizinhança. Ele também a conhecia bem da infância. Geralmente trazia um bloco de esboços, "para tomar umas notas", como dizia. Eu sempre ficava maravilhado diante da facilidade que ele tinha com o lápis e o pincel. E nunca me ocorreu, uma vez sequer, que um dia eu ainda pudesse vir a fazer a mesma coisa. Ele era pintor e eu era escritor - ou pelo menos esperava tornar-me escritor um dia. O mundo da pintura me parecia um reino de pura mágica, totalmente além do meu alcance. Embora jamais, nos anos que se seguiram, viesse a tornar-se um pintor célebre, Ulric tinha uma extraordinária familiaridade com o mundo da arte. Sobre os pintores que ele amava, ninguém era capaz de falar com mais sentimento e compreensão. Até hoje ainda sou capaz de ouvir as reverberações de suas frases longas e bem construídas acerca de homens como Cimabue, Uccello, Piero della Francesca, Botticelli, Vermeer e outros. Às vezes ficávamos sentados folheando um livro de reproduções - sempre dos grandes mestres, claro. Podíamos passar horas assim - ele, pelo menos, podia -, falando sobre um único quadro. Era sem dúvida por ser ele próprio tão sinceramente humilde e reverente, humilde e reverente no sentido verdadeiro, que Ulric conseguia falar com tanto discernimento e perspicácia sobre "os mestres". Em espírito, ele também era um mestre. E graças a Deus nunca perdeu sua capacidade de reverenciar e idolatrar. São raros, de fato, os adoradores de nascença. Assim como O'Rourke, o detetive, ele tinha a capacidade de, nos momentos mais inesperados, mostrar-se totalmente absorto e arrebatado. Muitas vezes, durante nossas caminhadas pela beira do cais, ele parava para apontar alguma fachada especialmente decrépita ou um muro arruinado, discorrendo longamente acerca de sua beleza em comparação com o fundo de arranha-céus da margem oposta ou os cascos e mastros imensos dos navios ancorados junto ao cais. Podia estar fazendo um frio polar ou soprando um vento gelado, mas Ulric dava a impressão de não se incomodar. Nesses momentos, extraía com ar embaraçado um envelope desbotado do bolso e, com a ponta do que já tinha sido um lápis, empenhava-se em "tomar algumas notas". Pouco resultava dessas anotações, devo dizer. Naquela época, pelo menos. Os homens que viviam fazendo-lhe encomendas - bananas, latas de tomate, abajures etc. - estavam sempre nos seus calcanhares. Entre um "trabalho" e outro ele convidava os amigos, especialmente as amigas mulheres, para posar para ele. Trabalhava furiosamente durante esses intervalos, como que em preparativos para uma exposição ou um salão anual. Diante do cavalete, tinha todos os gestos e maneirismos do "maestro". Era quase aterrorizante testemunhar o frenesi de seu ataque. Mas o resultado, é estranho dizer, era sempre decepcionante. "Maldição", dizia ele, "não passo de um ilustrador." Ainda posso vê-lo de pé ao lado de uma de suas tentativas abortadas, suspirando, arquejando, balbuciando, arrancando os cabelos. Vejo-o estendendo a mão para pegar um álbum sobre Cézanne, procurar uma de suas pinturas favoritas, e então olhar com um sorriso nauseado para sua própria obra. "Olhe só para isso", dizia ele, indicando uma área especialmente bem-sucedida do quadro de Cézanne. "Por que diabos eu não consigo capturar uma coisa assim - uma vez só? Qual é o meu problema, na sua opinião? Ah, meu Deus..." E emitia um suspiro profundo, às vezes um verdadeiro lamento. "Vamos tomar um cálice, o que me diz? Por que tentar ser um Cézanne? Eu sei, Henry, o que está errado. Não é só este quadro, ou o que pintei antes, é a minha vida inteira que está errada. A obra de um homem reflete quem ele é, o que ele pensa o dia inteiro, não é? Visto dessa maneira, eu não passo de um pedaço de queijo azedo, não? Bem, assim é que eu faço! Para dentro! " E aqui ele erguia seu copo com um contorção estranha da boca, expressão de uma eloqüência dolorosa, muito dolorosa. Se eu adorava Ulric devido a sua emulação dos mestres, acho que tinha por ele uma verdadeira reverência porque ele desempenhava o papel do "fracassado". Ele sabia extrair música de seus erros e fracassos. Na verdade, era dotado de tamanho senso de humor e de tanta graça que fazia parecer que, afora o sucesso, a melhor coisa que se pode ser nesta vida é um fracasso total. O que deve ser verdade. A coisa que redimia Ulric era sua absoluta falta de ambição. Ele não ansiava pelo reconhecimento: se queria ser um bom pintor, era pela simples alegria de superar-se. Adorava todas as boas coisas da vida, e só as boas. Era um verdadeiro sensualista, do começo ao fim. No xadrez, preferia jogar com peças chinesas, por pior que fosse seu jogo. Sentia o prazer mais agudo em simplesmente manusear aquelas peças de marfim. Lembro-me das visitas que fazia a museus à procura de antigos tabuleiros de xadrez. Se Ulric conseguisse um dia jogar num tabuleiro que no passado tivesse adornado a parede de um castelo medieval, sentir-se-ia no sétimo céu, e nunca mais iria importar-se com o fato de perder ou ganhar. Escolhia todas as coisas que usava com o máximo cuidado - roupas, malas, chinelos, abajures, tudo. Sempre que pegava um objeto ele o acariciava. Tudo que podia ser recuperado era consertado, remendado, restaurado. Falava dos seus pertences da mesma forma como algumas pessoas falam dos respectivos gatos; dedicava-lhes sua total admiração, mesmo que estivesse sozinho com eles. Às vezes eu o pegava falando com suas coisas, dirigindo-se a elas como se fossem velhos amigos. Que contraste com Kronski, por exemplo. Kronski, o pobre demônio infeliz, parecia viver cercado pelos cacarecos descartados por seus ancestrais. Para ele, nada era precioso, nada tinha sentido ou significação. Tudo se despedaçava em suas mãos, ou se rasgava, puía, manchava e sujava. Ainda assim, um belo dia - e como isto veio a ocorrer eu nunca soube - esse mesmo Kronski começou a pintar. E com brilhantismo. Muito brilhantismo. Eu mal conseguia acreditar nos meus olhos. Ele usava cores ousadas e vivas, como se tivesse acabado de chegar da Rússia. E a seus temas também não faltavam ousadia e originalidade. Entregava-se àquilo de oito a dez horas de cada vez, empanturrando-se antes e depois, e sempre cantando, assobiando, trocando o peso do corpo de um pé para o outro, sempre se aplaudindo. Infelizmente, foi só fogo de palha. E cessou em poucos meses. Depois disso, nem uma palavra sobre a pintura. Esqueceu-se, ao que parece, de que algum dia tivesse pegado num pincel... Foi durante o período no qual as coisas iam serenas conosco que conheci um sujeito de primeira na biblioteca da Montague Street. Conheciam-me bem lá porque eu vivia a lhes dar trabalho, pedindo livros que não tinham, insistindo para que obtivessem por empréstimo livros raros e caros de outras bibliotecas, queixando-me da pobreza de seu acervo, da inadequação de seus serviços, e no geral tendo um comportamento insuportável. E para piorar ainda mais, estava sempre pagando multas vultosas por atraso na devolução ou pela perda de livros (de que me apropriava para as minhas próprias prateleiras), ou ainda por devolvê-los com páginas arrancadas. De vez em quando eu recebia uma reprimenda pública, como se ainda fosse um escolar, por sublinhar trechos em tinta vermelha ou anotar comentários nas margens. E então, um belo dia, enquanto procurava por certos livros raros sobre o circo - só Deus sabe por quê -, travei conversa com um senhor de aparência erudita que se revelou membro da equipe de funcionários. No decorrer da conversa, fiquei sabendo que ele tinha freqüentado alguns dos melhores circos da Europa. E o nome Médrano escapou de seus lábios. Aquilo era virtualmente grego para mim, mas eu me lembrava do nome. De qualquer maneira, gostei tanto do sujeito que na mesma hora convidei-o para vir nos visitar na noite seguinte. Assim que saí da biblioteca liguei para Ulric e pedi que também viesse. "Você já ouviu falar do Cirque Médrano?", perguntei. Em resumo, a noite seguinte foi dedicada quase exclusivamente ao Cirque Médrano. Quando o bibliotecário foi embora, eu estava tonto. "Com que então é assim a Europa!", balbuciava sem parar. Não conseguia parar de dizer aquilo. "E aquele sujeito que veio aqui... ele viu isso tudo. Meu Deus! " O bibliotecário aparecia com muita freqüência, sempre trazendo debaixo do braço alguns livros raros que achava que eu fosse gostar de ver. E geralmente também trazia uma garrafa. Às vezes jogava xadrez conosco, e quase nunca ia embora antes das duas ou três da manhã. Toda vez que me visitava, eu o fazia falar sobre a Europa: era o "preço do seu ingresso". Na verdade, eu estava ficando viciado no assunto; era capaz de falar sobre a Europa quase como se eu próprio tivesse estado lá. (Meu pai também era assim. Embora nunca tenha posto os pés fora de Nova York, era capaz de falar sobre Londres, Berlim, Hamburgo, Bremen, Roma, como se tivesse morado no estrangeiro a vida inteira.) Certa noite, Ulric trouxe seu imenso mapa de Paris (o mapa do metrô), e todos nos pusemos de quatro para percorrer as ruas da cidade, visitando as bibliotecas, os museus, as catedrais, as lojas de flores, os matadouros, os cemitérios, os bordéis, as estações de trem, os bals musettes, les magasins e assim por diante. No dia seguinte, eu me sentia tão locupletado, ou melhor, tão repleto da Europa, que não consegui ir trabalhar. Era um antigo hábito meu, tirar um dia de folga toda vez que me dava vontade. Sempre gostei mais dos dias de folga roubados. E isso queria dizer levantar da cama a qualquer hora, ficar andando pela casa de pijama, pôr discos para tocar, mergulhar nos livros, sair para um passeio até o cais e, depois de um belo almoço, ir à matinê. Um bom espetáculo de variedades era o que eu mais apreciava, uma tarde em que rebentava as costelas de tanto rir. Às vezes, depois de um desses feriados, ficava mais difícil ainda voltar para o trabalho. Na verdade, impossível. Mona, muito convenientemente, ligava para o patrão e informava que minha gripe tinha piorado. E ele sempre respondia: "Diga a Henry para passar mais uns dias na cama. Cuide bem dele!". "Achei que dessa vez eles iam desconfiar", dizia Mona. "Eles desconfiam, meu bem. Só que eu sou bom demais. Não conseguem viver sem mim." "Um dia ainda vão mandar alguém aqui para ver se você está doente mesmo." "Nunca atenda a campainha, só isso. Ou diga a eles que eu fui ao médico." Foi uma beleza enquanto durou. Simplesmente esplêndido. Eu tinha perdido todo interesse pelo meu trabalho. Só pensava em começar a escrever. No trabalho, eu fazia cada vez menos, ficava cada vez mais desleixado. Os únicos candidatos que eu me dava ao trabalho de entrevistar eram os mais suspeitos. Meu assistente fazia todo o resto. Sempre que possível, eu saía do escritório a pretexto de inspecionar as agências. Visitava uma ou duas no centro da cidade - só para criar um álibi - e em seguida mergulhava num cinema. Depois do cinema visitava algum outro gerente de agência, apresentava-me no escritório central e logo ia para casa. Às vezes eu passava a tarde numa galeria de arte, ou na biblioteca da rua 42. Às vezes eu ia visitar Ulric ou entrava em algum salão de baile. Ficava doente com freqüência cada vez maior, e por períodos mais longos de cada vez. As coisas estavam mesmo indo de mal a pior. Mona estimulava minha delinqüência. Jamais gostara de mim no papel de gerente de contratações. "Você devia estar escrevendo", dizia ela. "Ótimo", retorquia eu, secretamente satisfeito mas encenando resistência a fim de dar uma satisfação a minha consciência. "Ótimo! Mas vamos viver do quê?" "Deixe por minha conta!" "Mas não podemos continuar dando facadas e enganando as pessoas para sempre!" "Facadas? Todo mundo de quem eu tomo dinheiro emprestado tem dinheiro de sobra para emprestar. É um favor que eu faço a eles." Eu não conseguia ver as coisas do mesmo modo que ela, mas cedia. Afinal, não tinha solução melhor a propor. Para encerrar a discussão, eu sempre dizia: "Bem, mas não vou deixar meu emprego ainda". De vez em quando, num desses feriados roubados, acabávamos na Segunda Avenida, em Nova York. Era impressionante o número de amigos que eu tinha naquela área. Todos judeus, claro, e em sua maioria malucos. Mas ótima companhia. Depois de comer alguma coisa no restaurante de Papa Moskowitz, íamos até o Café Royal. Era o lugar onde a gente sempre encontrava quem estava procurando. Certa noite, enquanto passeávamos pela avenida, quando eu estava a ponto de ir mais uma vez até a vitrine de uma certa livaria para contemplar Dostoievski - havia uma foto dele presa naquela vitrine fazia anos -, encontramos um velho amigo de Arthur Raymond. Nahoum Yood, nada mais nada menos. Nahoum Yood era um homem baixo e inflamado que escrevia em iídiche. Seu rosto parecia uma marreta. Depois de tê-lo visto, você nunca mais o esquecia. Quando ele falava, era sempre muito depressa e de rompante; suas palavras literalmente tropeçavam umas nas outras. Não só emitia faíscas, como fogos de artifício, e ainda cuspia e babava ao mesmo tempo. Seu sotaque, o sotaque de "litvak", era atroz. Mas tinha um sorriso de ouro - como o de Jack Johnson. Que dava a seu rosto um quê de abóbora escavada em máscara para o Halloween. Nunca o vi em nenhum outro estado que não o de efervescência. Tinha sempre acabado de descobrir alguma coisa maravilhosa, alguma coisa inaudita. E ao transmiti-la ainda me dava sempre um banho de esguicho, de graça. Mas valia a pena. Aquele filete líquido que ele emitia pelo espaço entre seus dentes da frente tinha o mesmo efeito estimulante de uma ducha de pressão. Às vezes, junto com o banho de esguicho, vinham algumas sementes de cariz. Agarrando o livro que eu carregava debaixo do braço, ele gritou: "O que você anda lendo? Ah, Hamsun. Bom! Belo escritor". Nem mesmo dissera ainda "Como vai". "Precisamos sentar em algum lugar para conversar. Aonde vocês estão indo? Já jantaram? Estou com fome." "Desculpe", disse eu, "mas quero ir dar uma olhada em Dostoievski." Deixei-o ali de pé, discorrendo muito animado para Mona com as duas mãos (e os dois pés). Plantei-me à frente do retrato de Dostoievski, como já tinha feito tantas outras vezes, para estudar novamente sua fisionomia familiar. Lembrei-me de meu amigo Lou Jacobs, que costumava tirar o chapéu toda vez que passava por uma estátua de Shakespeare. Era mais que uma reverência ou saudação, porém, o que eu fazia a Dostoievski. Era antes uma prece, uma prece para que ele me liberasse o segredo da revelação. Um rosto tão comum e feio, ele tinha. Tão eslavo, tão de mujique. O rosto de um homem que poderia passar despercebido numa multidão. (Nahoum Yood tinha muito mais uma aparência de escritor do que Dostoievski.) Fiquei ali, como sempre, tentando penetrar o mistério da criatura que tinha vivido por trás daquela massa meio informe de traços faciais. As únicas coisas que eu conseguia detectar com clareza eram dor e obstinação. Um homem que obviamente preferia a vida rasteira, um homem recém-saído da prisão. Perdi-me em contemplação. Finalmente vi apenas o artista, o artista trágico, sem precedentes, que criou um verdadeiro panteão de personagens, figuras de que nunca se ouvira falar antes e de que nunca mais se falaria, cada uma delas mais real, mais poderosa, mais misteriosa, mais inescrutável que todos os czares loucos e todos os papas cruéis e perversos juntos. De repente senti a mão pesada de Nahoum Yood em meu ombro. Seus olhos dançavam, sua boca estava coroada por um anel de saliva. O chapéu-coco surrado que ele usava tanto dentro como fora de casa tinha caído sobre seus olhos, o que lhe dava um ar cômico e quase maníaco. "Mysterium!", gritava ele. "Mysterium! Mysterium! " Olhei para ele sem compreender. "Você não leu?", berrou ele. O que parecia ser um grupo numeroso começara a juntar-se à nossa volta, um desses ajuntamentos que se formam do nada assim que um vendedor ambulante começa a apregoar suas mercadorias. "Do que você está falando?", perguntei em tom ameno. "Do seu Knut Hamsun. Do maior livro que ele já escreveu - Mysterium é como se chama, em alemão." "Deve estar falando de Mistérios", disse Mona. "Isso, Mistérios", gritou Nahoum Yood. "Ele estava me falando sobre o livro", disse Mona. "Deve ser mesmo uma beleza." "Mais do que Um vagabundo toca em surdina?" Nahoum Yood explodiu: "Este não é nada. Por O cultivo da terra deram-lhe o prêmio Nobel. De Mysterium ninguém sequer ficou sabendo. Veja bem, deixe eu explicar...". Fez uma pausa, deu meia-volta e cuspiu. "Não, melhor não explicar nada. Vá até a sua biblioteca de criança da rua Carnegie e peça o livro. Como é que se chama mesmo em inglês? Mistérios? Quase a mesma coisa - mas Mysterium é bem melhor. Mais mysterischer, nicht?" Deu um de seus sorrisos largos de trilho de bonde e, com isso, a aba de seu chapéu caiu de vez por cima de seus olhos. Subitamente, percebeu que tinha reunido uma platéia. "Vão embora!", gritou, erguendo os dois braços para enxotar as pessoas. "Alguém aqui está vendendo cordões de sapato? O que há com vocês? Será que eu preciso alugar um salão para conversar um pouco em particular com um amigo? Isto aqui não é a Rússia. Vão embora... !", e tornou a agitar os braços. Ninguém arredou pé. Limitaram-se a sorrir com indulgência. Aparentemente eles o conheciam bem, aquele Nahoum Yood. Um deles disse alguma coisa em iídiche. Nahoum Yood deu um sorriso triste e complacente e olhou-nos desolado. "Querem que eu lhes recite alguma coisa em iídiche." "Ótimo", disse eu. "Por que não recita?" Ele tornou a sorrir, submisso dessa vez. "São como crianças", disse ele. "Esperem, vou contar-lhes uma fábula. Vocês sabem o que é uma fábula, não sabem? É uma fábula sobre um cavalo verde de três pernas. Só dá para contar em iídiche... vocês me perdoam." Assim que ele começou a falar iídiche, sua expressão mudou completamente. Assumiu um ar tão sério e desolado que achei que fosse prorromper em lágrimas a qualquer instante. Mas quando olhei para seu público vi que todos riam e se divertiam. Quanto mais séria e dolorida sua expressão, mais seus ouvintes achavam graça. Finalmente, dobravam-se de rir. Nahoum Yood não chegou sequer a esboçar um sorriso. Terminou sua história sem nenhuma expressão no rosto, em meio a uma tempestade de risadas. "Agora", disse ele, dando as costas para sua platéia e agarrando a nós dois pelo braço, "agora vamos a algum lugar ouvir um pouco de música. Conheço um lugarzinho na Hester Street, num sótão. Ciganos romenos. Vamos tomar um pouco de vinho e falar de Mysterium, que tal? Vocês têm dinheiro? Só tenho vinte e três cents." Tornou a sorrir, dessa vez lembrando uma imensa torta de frutas. No caminho, passou o tempo todo tocando a aba do chapéu com os dedos, para este ou aquele. Às vezes parava e travava conversa por alguns minutos. "Desculpem", dizia ele, correndo de volta até nós quase sem fôlego, "mas achei que talvez conseguisse algum dinheiro emprestado. Aquele era o editor de um jornal em iídiche - mas está ainda mais liso do que eu. Vocês têm algum dinheiro, não? Da próxima vez eu pago." No restaurante romeno, encontrei um dos meus ex-mensageiros, Dave Olinski. Ele costumava trabalhar como mensageiro noturno na agência da Grand Street. Eu me lembrava bem dele porque na noite em que o escritório fora assaltado e o cofre revirado, Olinski tinha apanhado até quase morrer. (Na verdade, eu tinha ficado com a impressão de que ele morrera.) Tinha sido a seu próprio pedido que eu o escalara para aquela agência; por ficar situada num bairro de estrangeiros, e por ele falar umas oito línguas, Olinski achava que poderia ganhar muito em gorjetas. Todo mundo o detestava, inclusive os homens com quem ele trabalhava. Toda vez que nos encontrávamos, enchia-me os ouvidos com histórias de Tel Aviv. Era sempre Tel Aviv e Boulogne-sur-Mer. (Carregava consigo postais de todos os portos em que seu navio tinha parado. Mas a maioria dos cartões era de Tel Aviv.) De qualquer maneira, antes dos "acidentes", eu uma vez o mandei entregar uma mensagem em Canarsie, onde havia uma "plage". Eu usava a palavra "plage" porque toda vez que Olinski falava de Boulogne-sur-Mer mencionava a maldita "plage" onde tomara um banho de mar. Depois que parara de trabalhar conosco, dizia-me ele, tornara-se corretor de seguros. Na verdade, bastou-lhe trocar umas poucas palavras comigo para começar a tentar vender-me uma apólice. Por mais que eu desgostasse dele, não fiz nada para fazê-lo calar-se. Achei que podia ser bom para ele ter a oportunidade de praticar comigo. E assim, para grande dissabor de Nahoum Yood, deixei-o tagarelar o tempo que quisesse, fazendo de conta que talvez pudesse me interessar ainda por um seguro de acidentes, saúde e incêndio. Enquanto isso, Olinski pedira bebidas e salgados para nós. Mona levantara-se da mesa para travar conversa com a proprietária. No meio disso tudo, entrou no restaurante um advogado chamado Mannie Hirsch - mais um amigo de Arthur Raymond. Era apaixonado por música, e especialmente apaixonado por Scriabin. Demorou bastante para que Olinski, que fora arrastado para aquela conversa contra sua vontade, entendesse de quem estávamos falando. Quando soube que era apenas um compositor russo, demonstrou um desgosto profundo. Não seria o caso de procurarmos um lugar mais sossegado?, perguntou-me ele. Expliquei-lhe que seria impossível, que ele podia se apressar em me explicar tudo bem depressa, antes de irmos embora. Mannie Hirsch, porém, não parava mais de falar depois de sentar-se à mesa. Olinski então enveredou por sua conversa de rotina, pulando de apólice em apólice; precisava falar muito alto para afogar a voz de Mannie Hirsch. Fiquei escutando os dois ao mesmo tempo. Nahoum Yood tentava ouvir com a mão em concha em torno de uma das orelhas. Finalmente, irrompeu num ataque histérico de riso. Sem nenhum aviso, começou a recitar uma das suas fábulas - em iídiche. Mesmo assim Olinski continuava a falar, agora muito baixo, mas ainda mais depressa do que antes, porque cada minuto era precioso. Mesmo quando toda a casa começou a rir alto, Olinski continuou a me vender uma apólice de seguro após a outra. Quando eu finalmente lhe disse que iria pensar no assunto, ele deu a entender que aquilo o deixava mortalmente magoado. "Eu já lhe expliquei tudo com a maior clareza, senhor Miller", choramingou. "Mas eu já possuo duas apólices de seguro", menti. "Nenhum problema", retorquiu ele, "podemos descontar as duas e conseguir-lhe planos bem melhores." "Pois é sobre isso mesmo que eu quero pensar melhor", devolvi. "Mas não existe nada mais para pensar, senhor Miller." "Não sei bem se entendi tudo direito", disse eu. "Talvez seja melhor você passar na minha casa amanhã à noite", e lhe escrevi um falso endereço. "Tem certeza de que vai estar em casa, senhor Miller?" "Se for sair, eu lhe telefono." "Mas eu não tenho telefone, senhor Miller." "Então mando um telegrama." "Mas já tenho dois compromissos marcados para amanhã à noite." "Então passe lá em casa na noite seguinte", disse eu, completamente imune a toda aquela insistência. "Ou então", acrescentei em tom malicioso, "pode passar para me ver depois da meia-noite, se lhe for conveniente. Ficamos sempre acordados até as duas ou três da manhã." "Infelizmente, aí é tarde demais", disse Olinski, com um ar de desconsolo cada vez mais acentuado. "Bem, vamos ver", disse eu, com uma expressão meditativa, coçando a cabeça. "E se nos encontrarmos aqui mesmo neste lugar, daqui a exatamente uma semana? Às nove e meia em ponto." "Aqui não, senhor Miller, por favor." "Tudo bem, então, onde você quiser. Mande um cartão-postal nos próximos dois dias. E traga todas as apólices, está bem?" Durante esta última conversa, Olinski levantara-se da mesa, e agora apertava minha mão em despedida. Quando se virou para reunir seus papéis, descobriu que Mannie Hirsch estava desenhando bichinhos num deles. Noutro, Nahoum Yood estava escrevendo um poema - em iídiche. Olinski ficou tão perturbado com esses desdobramentos inesperados que começou a berrar com os dois em várias línguas ao mesmo tempo. Foi ficando roxo de raiva. Num instante, o leão-de-chácara, um ex-lutador grego, agarrou Olinski pelos fundilhos e jogou-o para fora do lugar... A proprietária sacudiu o punho em seu rosto enquanto ele era jogado pela porta afora. Na rua, o grego revistou seus bolsos, extraiu algumas notas e trouxe para a proprietária; esta lhe deu o troco, que ele jogou em Olinski, o qual estava de quatro na calçada, como se sentisse cãibras. "Que maneira horrível de tratar uma pessoa", disse Mona. "É mesmo, mas ele parece pedir isso", respondi. "Você não devia ter ido tão longe - foi uma crueldade." "Admito, mas ele é um chato. Teria acontecido de qualquer maneira." Ao que comecei a narrar minha experiência anterior com Olisnki. Expliquei como tinha procurado atender seus pedidos, transferindo-o de uma agência para outra. Era sempre a mesma história. Ele sempre acabava maltratado e desrespeitado - "sem nenhum motivo", como sempre dizia. "Não gostam de mim aqui", eram as suas palavras. "Parece que não gostam de você em lugar nenhum", eu finalmente lhe disse um dia. "Qual é afinal o seu problema?" Lembro da expressão que ele me dirigiu quando lhe fiz a pergunta. "Vamos", disse eu, "fale logo, porque é a sua última oportunidade." Para meu espanto, eis o que ele me disse: "Senhor Miller, tenho ambição demais para ser um bom mensageiro. Devia ter uma posição de mais responsabilidade. Com a minha formação, eu daria um bom gerente. Poderia economizar dinheiro para a companhia. Trazer mais negócios, tornar as coisas mais eficientes". "Espere um pouco", interrompi. "Você não sabe que não tem a menor chance de se tornar gerente de uma agência de bairro? Deve estar maluco. Não sabe nem falar inglês direito, quanto mais as outras oito línguas de que vive se gabando. Você é incapaz de se dar bem com o próximo. Você é um chato, não entende? Não venha me falar das suas grandes idéias para o futuro... só me diga uma coisa... como foi que você acabou se tornando o que é... um chato desgraçado, é disso que estou falando." Olinski, ao ouvir essas palavras, piscou feito uma coruja... "Senhor Miller", começou ele, "o senhor deve saber que eu sou uma pessoa decente, que faço o possível..." "Conversa fiada!", exclamei. "Agora me conte, com honestidade, por que você deixou Tel Aviv?" "Porque eu queria me tornar alguma coisa, juro." "E não dava para ser alguma coisa em Tel Aviv - nem em Boulogne-sur-Mer?" Ele deu um sorriso tristonho. Antes que pudesse dizer qualquer coisa, eu continuei: "Você se dava bem com seus pais? Tinha amigos íntimos? Espere um pouco" - ergui a mão para deter sua resposta -, "alguém no mundo inteiro jamais lhe disse que gostava de você? Responda!". Ele ficou calado. Não esmagado, só atônito. "Sabe o que você devia ser?", continuei. "Um informante." Ele não sabia o que a palavra queria dizer. "Escute", expliquei, "o informante ganha dinheiro espionando as outras pessoas, delatando o que elas fazem - isso você entende?" "E eu devia ser informante?", ele guinchou, pondo-se de pé e tentando assumir um ar respeitável. "Exatamente", disse eu, sem pestanejar. "E se não conseguir, podia ser carrasco de enforcamento. Sabe," - e fiz um sinistro gesto circular com a mão - "o sujeito que passa a corda no pescoço deles." Olinski pôs o chapéu na cabeça e deu alguns passos na direção da porta. De repente, deu meia-volta e caminhou calmamente até a minha mesa. Tirou o chapéu, que ficou segurando com as duas mãos. "Desculpe", disse ele, "mas será que não podia me dar mais uma chance - no Harlem?" Isso falando num tom de voz como se nada fora do comum tivesse acontecido. "Mas é claro", respondi brusco, "claro que lhe dou mais uma chance, mas é a última, lembre-se bem. Estou começando a gostar de você, sabia?" Aquilo o deixou mais perturbado que tudo que eu lhe dissera antes. E fiquei surpreso por ele não me perguntar por quê. "Escute, Dave", disse eu, inclinando-me em sua direção como se tivesse algo de confidencial a lhe propor, "vou mandar você para a pior agência que temos. Se você for capaz de se dar bem por lá, vai conseguir se dar bem em qualquer lugar. Mas só vou lhe dar um aviso... não vá me arranjar nenhum problema nessa agência, ou então" - e passei o dedo estendido pela minha garganta - "entendeu?" "As gorjetas lá são boas, senhor Miller?", perguntou ele, fingindo não se abalar com a minha recomendação. "Ninguém dá gorjetas naquela área, meu amigo. E não vá tentar extorquir nada das pessoas. Agradeça a Deus, toda noite quando voltar para casa, por ainda estar vivo. Perdemos oito mensageiros naquela agência nos últimos três anos. Pode fazer os cálculos sozinho." Aqui eu me levantei, agarrei-o pelo braço e escoltei-o até a escada. "Escute, Dave", disse eu, enquanto apertava sua mão, "talvez eu esteja sendo seu amigo sem você saber. Talvez um dia você ainda me agradeça por ter escalado você para a pior agência de Nova York. Você tem tanto a aprender que nem sei por onde posso começar. Acima de tudo, procure ficar de boca fechada. Dê um sorriso de vez em quando, mesmo que doa. Diga sempre obrigado, mesmo que não lhe dêem gorjeta. Fale uma língua só, e o mínimo que lhe for possível. Esqueça a idéia de se tornar gerente. Seja um bom mensageiro. E não diga a ninguém que você vem de Tel Aviv, porque ninguém vai ter a menor idéia do que você está falando. Você nasceu no Bronx, entendeu? Se não consegue se comportar com decência, faça-se de idiota, de bobo, um schlemiel, entendeu? E uma idéia para quando for ao cinema. Vá ver uma comédia, para variar. E não me deixe ouvi-lo falando de novo sobre você!" Caminhar até o metrô aquela noite com Nahoum Yood me trouxe de volta memórias nítidas das minhas expedições noturnas na companhia de O'Rourke. Era para o East Side que eu sempre vinha quando queria sentir-me comovido até o fundo. Era a mesma coisa que voltar para casa. Tudo me era familiar, de um modo que ia além da consciência. Era quase como se eu tivesse conhecido aquele mundo do gueto numa encarnação anterior. A qualidade que mais me tocava era a densidade pululante. Tudo disputava a luz numa profusão gloriosa. Tudo brotava em abundância e tinha um brilho mortiço, como nas telas sombrias de Rembrandt. As surpresas eram constantes, e muitas vezes produzidas pelas ninharias mais comuns. Era o mundo da minha infância, em que os objetos comuns do dia-a-dia adquiriam um caráter sacrossanto. Aqueles pobres estrangeiros desprezados viviam com os objetos descartados de um mundo que seguira em frente. Para mim, viviam de um passado que fora abruptamente asfixiado. O pão que comiam era um pão bom, que se podia comer sem manteiga ou geléia. Os lampiões de querosene banhavam seus aposentos numa luz sagrada. A cama sempre parecia grande e convidativa, a mobília era velha mas confortável. Era uma fonte constante de admiração para mim constatar como eram limpos e ordeiros os interiores daqueles edifícios horrendos que pareciam cair aos pedaços. Nada pode ser mais elegante que uma casa despojada, marcada pela pobreza mas limpa e pacífica. Vi centenas de casas assim nas vezes em que tive de sair à procura de rapazes extraviados. Muitas dessas cenas inesperadas que surpreendíamos no meio da noite pareciam ilustrações do Velho Testamento. Entrávamos lá à procura de um jovem delinqüente ou do autor de pequenos furtos, e saíamos nos sentindo como se tivéssemos repartido o pão com os filhos de Israel. Geralmente os pais não tinham a menor idéia do mundo em que seus filhos tinham penetrado ao entrar para nossa força de mensageiros. Quase nenhum deles jamais tinha posto o pé num edifício de escritórios. Tinham-se transferido de um gueto para outro sem sequer vislumbrar o mundo que havia entre eles. Ocorria-me às vezes o desejo de levar um desses pais até o pregão da Bolsa, onde ele pudesse observar seu filho correndo de um lado para outro como um carro do corpo de bombeiros em meio ao pandemônio selvagem criado pelos corretores enlouquecidos, um jogo nervoso e lucrativo que às vezes permitia ao rapaz ganhar setenta e cinco dólares numa semana. Alguns desses "rapazes" continuavam a ser rapazes, embora já tivessem chegado aos trinta ou quarenta anos de idade e possuíssem, em certos casos, quarteirões inteiros de imóveis, fazendas, prédios de apartamentos ou volumosos maços de títulos de grande valor. Muitos tinham contas bancárias com mais de dez mil dólares. Ainda assim, continuavam a ser mensageiros, e continuariam mensageiros até morrer... Que mundo incongruente para receber o mergulho do imigrante! Eu próprio mal conseguia situar-me nele. Com todas as vantagens de uma educação americana eu também (em meu vigésimo oitavo ano de vida) não me vira obrigado a procurar aquela mais rasteira de todas as ocupações? E não era com extrema dificuldade que conseguia ganhar dezesseis ou dezessete dólares por semana? Dali a pouco eu estaria deixando aquele mundo para abrir meu caminho como escritor, e nessa qualidade ficaria ainda mais desvalido que o mais reles daqueles imigrantes. Dali a pouco eu estaria mendigando furtivamente pelas ruas à noite, até nas redondezas da minha própria casa. Dali a pouco eu estaria me postando diante das vitrines dos restaurantes, contemplando com inveja e desespero as coisas boas que ali havia para comer. Dali a pouco eu estaria agradecendo aos meninos jornaleiros que me dariam moedas de cinco ou dez cents para comprar uma xícara de café e uma rosquinha. Sim, muito antes que essas coisas viessem a acontecer eu pensava justamente nessas eventualidades. A razão de eu adorar tanto o meu novo ninho de amor talvez fosse saber que ele não teria condições de durar muito. Nosso ninho de amor "japonês", como eu o chamava: porque era despojado, imaculado, o divã baixo colocado no centro exato do aposento, as luzes bem distribuídas, nenhum objeto além da conta, as paredes emitindo um sutil fogo aveludado, o assoalho sempre brilhante, como se fosse raspado e encerado a cada manhã. Inconscientemente, fazíamos tudo de maneira ritualista, e era o lugar que nos impelia a esse comportamento. Criado para um homem rico, tinha sido alugado por dois devotos que possuíam apenas uma riqueza interior. Cada livro de nossas estantes fora adquirido com luta, devorado com entusiasmo, e enriquecera nossas vidas. Mesmo nossa Bíblia surrada tinha uma história... [...]