Trecho do livro UMIDADE

UMIDADE 1. O Liminha jamais sonhou em ter uma mulher como a Mariana. Quando ele conheceu Mariana, seus sonhos começaram. Aqueles peitos empinados como um par de golfinhos saltando em sincronia num tanque de exibições, aquilo era o bicho, cara, se entusiasmava o Liminha diante dos amigos. - Que mulher! E digo mais: que puta mulher. Putíssima - amplificava o Liminha. Quem a conhecia, como o Rubens, concordava: putissíssima mulher. Quando pegava um sol, então, ficava pra lá de tesão. Morenaça, mas com luzes loiras manchando os cabelos castanhos, o que dava um halo exótico àquela cara de Claudia Schiffer. Sim, o Liminha achava a Mariana a cara escarrada da jovem Claudia Schiffer em versão tropical, os zigomas salientes e arredondados, os lábios grossos, o ar de tédio irônico na expressão, os olhos indecifráveis. As minissaias mais generosas comprovavam: celulite zero naquelas pernas de manequim atlética. Só músculo e a pele mais lisa do mundo. Uma seda. Aquilo era um outdoor ambulante, rotulava o Liminha. Clean, como ele gostava. Sempre saída do banho e da frente de uma dúzia de espelhos. Não era abonada, a Mariana, pelo contrário. Berço modesto, filha única de mãe viúva que vivia de pensão e do aluguel de uma casinha, nada mais. Seu microssalário de auxiliar de alguma coisa numa pequena agência de publicidade não devia dar pra nenhum luxo, mesmo pruma jovem solteira. Mesmo assim ela se arranjava e sempre dava um jeito de descolar grifes de patricinha em pontas de estoque, brechós, bazares. Outra coisa: a Mariana estava solteiríssima desde que rompera com o noivo, um mauricinho cheio da grana, filho de um empresário de transportes, cujo sobrenome, Galhardo, circulava colado no baú dos caminhões pelos quatro cantos do país: TRANSGALHARDO. Só em Mariana é que o transgalhardo não colou, já que "a menina se recusou a subir os degraus do altar com o herdeiro", como suspirava a mãe dela para os parentes, amigos e vizinhos em geral. Muita gente não entendeu como é que a Mariana tinha deixado escapar uma oportunidade daquelas. Liminha e todos os pirocudos do pedaço se animaram. Liminha mais do que todos, se isso era possível. - Essa Mariana é uma apoteose - derramava-se o Liminha nas happy hours. - E ainda por cima é honesta. Deu um pé na bunda do Transgalhardo. - E insistia: - Não é uma xota registradora atrás de marido rico, como essas gostosinhas com quem a gente topa por aí, a toda hora, em todo canto. Tô certo ou tô errado? Estava certíssimo, ecoavam os colegas e amigos da happy hour. Um dia o Liminha tomou coragem e ligou pra Mariana na agência. Ela disse alô, e ele, na lata: "Vamos ao cinema?". Ela quis saber quem estava falando. Ele disse que era ele, o Liminha, da BigNet. - Lembra de mim? Você disse que eu parecia o Michael Douglas jovem - ele mentiu. - Eu disse isso?! O truque deu certo. Ela riu e acabou topando o cinema na sexta. Topou, caralho! Ela topou! O Liminha não acreditava. Quase mijou nas calças de excitação. Mijou um pouco, até. O último romântico, o Liminha. Ir ao cinema aproxima as pessoas pelo inconsciente. Estranhos que partilham o mesmo sonho na sala escura estabelecem mais facilmente uma base comum de afetividade. Essa era a tese do Liminha, que ao prospectar um possível cliente pedia sempre para abaixarem um pouco a luz antes de acessar no computador os sites construídos e administrados pela BigNet. Assim, enquanto apresentava o portfólio vivo de sua empresa no próprio computador do cliente, ia criando vínculos subliminares com ele ou ela que não raro se transformavam em bons negócios. Quando o filme - terror, com a Nicole Kidman - acabou e as luzes se acenderam, o Liminha e a Mariana estavam de fato mais íntimos, ela, aterrada, buscando proteção física nele. - Não gosto de filme com cadáver que anda e fala - disse Mariana, apertando o braço do novo amigo. Liminha pensou se não tinha dado uma bola fora. De fato, filme de terror não é pra qualquer paladar. Agora, toda vez que as imagens horripilantes do filme viessem à cabeça de Mariana, ela se lembraria dele, criando uma associação negativa. A conferir, inquietava-se o mercadólogo. Bom, Mariana ficou de fato mexida com o filme, isso era visível. Ponto a meu favor, computava o Liminha. Você trabalha melhor a mente de uma mulher que já está emocionada por imagens impactantes. Ela fica mais vulnerável, mais fácil de abordar, influenciar, penetrar. Ele encostou o braço no dela, de leve, na escada rolante do shopping. E ela deixou. Pelo menos pareceu não se incomodar. Pele quente, macia, ele registrou. Uma troca de calores físicos é sempre um bom começo, calculava o Liminha. Teve ganas de enlaçar aquela cinturinha, mas ficou sem saber se teria mesmo coragem de fazer isso, pois a escada do shopping os despejou no piso inferior antes que ele pudesse tomar alguma atitude. Ali tinha, ele viu. Inacreditável. A mulher mais gostosa do Cone Sul. Quem diria. O Rubinho não ia acreditar. Ninguém ia acreditar. Mariana era mais que um avião; era um ônibus espacial, uma estação orbital completa, ele comparava, vendo com que graça, com que abandono ela se deixava cativar por uma vitrine da Zoomp anunciando uma tentadora liquidação de jeans. Propôs então uma cantina fora do shopping. Ela topou, mas ficou só na salada. - De sexta, não como carne nem massa - explicou. Ele gostou de ouvir aquilo. Definitivamente, uma garota de princípios. Talvez por isso tivesse rompido com o cafajeste do ex-noivo. Será que ele era um tipo autoritário, ou mesmo sádico, que a obrigava a comer carne e massa toda sexta? "Vai, sua vaca, come aí essa picanha. Anda, piranha, devora logo esse ravióli." Coitadinha da Mariana. Com ele, ia ser diferente. Ela ia poder se fartar de quanta rúcula, alface, agrião e tomate quisesse pastar "de sexta". Na volta, ele parou o Audi diante do prédio de Mariana no Ipiranga, três andares, sem elevador, a fachada carcomida pela pouca prosperidade dos ocupantes. Antes que ela fizesse menção de dar o boa-noite, ele começou: - Vou te dizer uma coisa que eu não devia te dizer... não agora, pelo menos... Tantas reticências... Ela sabia o que vinha pela frente. Ou melhor, pelo lado esquerdo, o do motorista. Ele começou: - Te amo, Mariana. Nunca senti isso por mulher nenhuma, sabia? Não assim tão rápido, tão intenso, tão definitivo. "Te amo?" Logo de cara? Ela não sabia o que pensar. Surpresa não era. Os homens que se aproximavam dela acabavam, mais cedo do que tarde, caindo de paixão tesuda por ela, e caídos ficavam pelo caminho. Mas aquele lá parecia diferente. Não sabia explicar por quê. Talvez nem fosse tão diferente, e ela estivesse apenas achando conveniente arranjar logo um novo idólatra fixo, fosse quem fosse, dentro de um certo padrão, é claro. De todo modo, fechou os olhos e acatou o beijo dele. Depois abriu um olho e viu que ele não tinha fechado os olhos. Safado, pensou. Liminha, que tinha visto aquele olhão aberto dela, pensou o mesmo. E o beijo acabou. O primeiro beijo. Ela saiu do carro com um "Me liga", e nisso ficaram. - Diferente dessas galinhas por aí, que já vão se arreganhando pro primeiro macho que aparece na frente delas - Liminha elogiava no dia seguinte ao Rubens, webdesigner da BigNet e seu melhor amigo. E Mariana foi se deixando namorar, de leve, sem compromisso. Liminha se deslumbrou com o deslumbramento que causava sua entrada nos lugares ao lado daquela presa fabulosa. Nem se ele entrasse com uma tigresa na coleira faria tanto sucesso. Mariana era o alvo certo de todas as retinas, masculinas ou femininas. Homens e mulheres tentavam descobrir que atributos especiais, invisíveis a olho nu, possuía o aparente proprietário daquele monumento. Grana e cacife social? Poderes sobrenaturais? Dote avantajado de ator pornô? Ninguém saberia a resposta, nem o próprio Liminha, que apenas esfregava as mãos, esperando pela "hora H do dia D - de Deu!", conforme comentava com os mais chegados. Só de pensar, já ficava de pau duro, como aconteceu numa reunião para decidir o perfil do novo portal de um megabanco. O cliente, uma loira bunduda de tailleur malva e salto agulha, hesitava entre um estilo "galera" e algo mais sisudo e "bancário". - A menos que vocês tenham outra opção - a mulher jogou pro Liminha, o homem de marketing da BigNet. - Bem, veja... - o Liminha começou, sem completar. Sim, na verdade, ele tinha outra opção, cilíndrica, rija e cabeçuda. Estava logo ali, dentro da calça, debaixo daquela pasta de cartolina aberta em seu colo. Mas quem respondeu à dona, pra sorte dele, foi o Amaral, um dos sócios da BigNet presentes à reunião, desembrulhando um blablablá subsociológico que deu tempo ao Liminha de trazer suas duas cabeças de volta para a Terra. Episódios como esse se repetiam. Não havia muito espaço para outro assunto na mente do apaixonado Liminha. E a hora H, o dia D, não chegavam nunca. Não passava dum B de beijinho, e olhe lá. O Liminha cozinhava no fogo alto da própria ansiedade. Um dia confidenciou com o próprio pênis, nos preâmbulos de uma punheta dedicada a Mariana: - Rapaz, que inveja de você, que vai entrar de cabeça naquela beleza brasileira. Pela porta da frente, como um rei. Ou pela dos fundos, feito um penetra sapeca. Tanto faz. Ele se abria com o Rubens no fumódromo da BigNet: - Essa mina é uma parada, meu amigo. Durona na queda. Tinha comprado umas camisinhas coloridas, coreanas. Andava com três envelopes delas na carteira. Mostrou pro outro. - Pra quando o carnaval chegar. Vou estrear de vermelho. A cor do tesão! - Guarda de lembrança, depois - sugeriu o Rubens, não sem um certo despeito invejoso. [...]