Trecho do livro CAETANA DIZ NÃO

Prólogo Estas histórias começam com um casamento e com uma morte. Elas nos falam de duas mulheres, uma jovem e nascida escrava, a outra velha e de família ilustre. Por suas origens, essas mulheres marcam os extremos tangíveis da riqueza, da influência e do poder na vida e na cultura brasileira do século XIX. Contudo, cada uma delas, à sua maneira, buscou impor sua vontade: a escrava, para evitar um marido indesejável; a privilegiada, para dotar a família de seus ex-escravos de recursos para uma vida livre. Suas tentativas as ligaram de modo ainda mais firme às relações de influência exercidas pelos homens que tinham poder em suas vidas: o fazendeiro e dono da escrava, que ordenou seu casamento, e seu tio e padrinho, também escravo; e outro fazendeiro que administrou os negócios da idosa tia enquanto ela vivia e que foi o testamenteiro depois que ela morreu. Assim, as histórias dessas mulheres não podem ser contadas sem incluir seus laços cruciais com esses homens experientes e importantes. Mas, mesmo as contando da forma mais completa possível, elas acabam de modo ambíguo. Ou, antes, elas não têm fim. Não é certo que a escrava tenha conseguido levar uma vida celibatária, embora adiante eu comente o que penso a esse respeito; e, de uma forma diferente, permanece inexplicado o que teria acontecido à família de escravos libertos. O cenário amplo é o vale do rio Paraíba, no Sudeste do Brasil, durante os primeiros anos da década de 1830 até meados da década de 1860. De suas nascentes na serra do Quebra Cangalha, o rio corre primeiro para sudoeste até uma passagem entre as montanhas, onde muda abruptamente de curso ao descer para o vale e depois continua na direção nordeste, mais ou menos paralelo à costa pela maior parte de seus pouco mais de mil quilômetros. Alimentado na margem norte pelas águas da serra da Mantiqueira e, do lado sul, pelas águas que descem da cadeia de montanhas que seguem a costa para formar a serra do Mar, o Paraíba deságua no oceano Atlântico ao norte da cidade de Campos. O rio se alarga no trecho médio do vale, mas, apesar de seu volume de água, suas muitas corredeiras impedem que seja navegável, exceto perto da foz, e assim mesmo apenas por barcos pequenos. As chuvas de verão caem do final da primavera até o início do outono; os dias ensolarados de inverno são secos e as noites, frias. Cadeias de morros com elevações entre 90 e 360 metros cercam a região. A partir do final do século XVIII e dos primeiros anos do século XIX, homens com energia, ambição e capital para comprar escravos acharam essas condições ideais para plantar um novo produto: café. Estimulados pela Coroa portuguesa sedenta de lucros coloniais, receberam vastas concessões de terras cobertas de floresta densa que eles limparam para plantar café ao longo do vale do Paraíba. Transportavam a safra no lombo de mulas por estradas primitivas que atravessavam as escarpas para chegar a pequenas cidades costeiras e embarcá-la em barcos que seguiam para os movimentados portos de Santos e do Rio de Janeiro. A região cafeeira que flanqueava o Paraíba, estendendo-se do leste da província de São Paulo até a província do Rio de Janeiro, é o cenário das duas histórias deste livro. Os eventos centrais aconteceram em duas fazendas, uma no município de Santo Antônio de Paraibuna, perto das nascentes do Paraíba, e a outra quase quatrocentos quilômetros rio abaixo, na paróquia de Pati do Alferes, no meio curso do vale. São histórias diferentes, sem conexão uma com a outra, exceto no importante sentido de que pertenceram à mesma cultura, sociedade e economia gerais - e as utilizo para iluminá-las. Embora a ação principal da primeira história tivesse acabado quando os acontecimentos centrais da segunda apenas começavam, elas podem ser lidas em qualquer ordem e se sustentam sozinhas. Mas pretendo que sejam um par contrastante para exemplificar tanto os laços coesivos que fazem dessa cultura um todo reconhecível quanto as variações que demonstram sua flexibilidade perene. Nenhuma das histórias nos foi deixada por completo e nenhuma delas é contada pelas próprias protagonistas. São histórias recuperadas, coletadas e reunidas a partir de fontes originalmente registradas e guardadas por razões muito diferentes e particulares. Os documentos centrais são uma petição eclesiástica de anulação de casamento que consiste em duzentas páginas manuscritas e um testamento de onze páginas. Nos arquivos das cidades de Paraibuna e Vassouras, bem como no Arquivo Nacional e na Biblioteca Nacional, recorri a outros testamentos, aos inventários post-mortem que contêm uma listagem detalhada de todos os bens, junto com os processos que registravam quaisquer disputas provocadas por sua divisão, e as cartas reveladoras do copiador de um fazendeiro. Uma segunda camada de fontes circundantes aprofunda e expande os contextos das histórias originais: códigos legais, tanto civis como eclesiásticos; um perfil estatístico da província de São Paulo publicado na década de 1830; mapas da população por fogos [residências]; vinte anos de um almanaque; comentários ocasionais publicados sobre eventos locais; e a "memória" escrita por um fazendeiro para seu filho sobre a fundação e administração de uma fazenda. A correspondência das autoridades governamentais locais com o presidente da província e, por fim, com o ministro da Justiça no gabinete do imperador registra a reação urgente a um levante fracassado de escravos. Além de consultar mapas e fotografias da época, visitei ambos os cenários em várias ocasiões e, onde foi possível, as casas de fazenda em que as mulheres e homens sobre os quais escrevo de modo tão incompleto viveram outrora suas vidas reais e vívidas. Há um forte viés judicial nas principais fontes que é ao mesmo tempo inevitável e vantajoso. Inevitável porque a marca da cultura brasileira era profundamente jurídica e porque os brasileiros se preocupavam em autenticar e registrar com cuidado todos os tipos de transação, enquanto o direito codificado regulava a transmissão e a transferência da propriedade familiar e a Igreja definia firmemente o modo de casar ou descasar. Até mesmo os brasileiros comuns sabiam da necessidade do selo de um tabelião e da importância das anotações de um padre nos livros de registro da paróquia. Os processos nos tribunais, cada um com sua própria compilação de documentos amarrados com fio grosso, têm a vantagem especial de fazer a crônica de disputas que se estendiam ao longo dos anos e que se referem a eventos anteriores e precipitadores. Assim, de uma seqüência de atos registrados num processo, vislumbramos um pouco das origens e conseqüências de ações. Os tribunais recolhiam depoimentos de testemunhas relevantes, quem quer que fossem - de pobres e analfabetos a ricos e influentes -, as quais, por sua vez, estavam aptas a fornecer informações sobre aspectos íntimos ou mundanos que nenhuma outra fonte pode oferecer ao historiador. Não obstante, embora nos possibilitem uma aproximação das zonas privadas de escolha e ação que estavam tão seguramente ancoradas na compreensão pública, e por mais sorte que tenhamos em ter acesso a elas, essas fontes são, por sua natureza, implacavelmente silenciosas sobre as questões mais profundas e perturbadoras da motivação. Por que Caetana rejeitou o casamento ou como ela pensou que podia evitar ser esposa, isso não interessava aos juízes eclesiásticos; Werneck não explicou as decisões que tomou em relação aos ex-escravos de sua tia, e ninguém que pudemos ouvir perguntou. Temos que nos contentar, não com conclusões claramente persuasivas, mas com o processo incerto de juntar possibilidades historicamente fundadas, mas ambíguas, algo mais próximo da arqueologia do que da biografia completa. Estas são histórias pequenas sobre eventos vistos de perto, tão perto quanto seria possível chegar. E porque são pequenas e em close-up, elas põem em foco verdades surpreendentes sobre o funcionamento de uma sociedade e uma cultura obscurecidas nas visões mais abrangentes e distantes. Não é com freqüência que podemos testemunhar uma jovem e inexperiente escrava se opor às ordens do seu senhor para depois fugir de sua própria família, ou ver uma mulher idosa assumir o papel de patriarca em relação a uma família de escravos e a seguir não ter êxito em sua empreitada. Se em seu tempo e seu lugar social elas foram pessoas prontamente compreendidas, não obstante nos mostram como podiam ser incomuns as relações concretas de gênero e escravidão. Essas pessoas e o que elas fizeram são, ao mesmo tempo, para tomar emprestada a bela frase de Michael Wood, "comuns e misteriosos, misteriosos do modo como o comum freqüentemente é". Sandra Lauderdale Graham Santa Fé, Novo México, dezembro de 2001