Trecho do livro SIMPLICIDADES INSOLÚVEIS

QUARTO 88 "Laura? Oi, sou eu. Acabei de chegar. Depois ligo com calma, quando você voltar do trabalho. A mensagem é só para lhe dizer que a viagem foi boa e que o hotel é mais que decente. O quarto é grande, tem muita luz. Pena que os sons ecoem um pouco (estou ouvindo o eco da minha voz), mas paciência. Agora vou tomar um banho e depois dar um giro pelas redondezas. Quando estava vindo da estação, vi o parque e a praia que se abre para o oceano." "Oi, Laura, sou eu de novo. Você devia ver o espelho que há neste quarto. É enorme. Ocupa uma parede inteira, de frente para a janela, e dá a impressão de que o ambiente é ainda maior e luminoso. Era assim que você pensava redecorar o estúdio, né? Bem, devo dizer que me parece uma ótima idéia: o quarto parece realmente ter o dobro do tamanho. Depois a gente se fala." "Laura, onde você anda? Recebeu as minhas mensagens? Ainda não saí, talvez seja melhor descansar um pouco. O espelho é absolutamente incrível, você devia ver. Gostaria de saber como conseguiram colocá-lo aqui dentro. Ele não passa pela porta. Talvez ele tenha sido montado antes de terminarem as outras paredes. Foi fixado diretamente na parede, sem suportes, e a superfície é perfeitamente limpa, sem nenhum grão de poeira. As imagens são tão nítidas que parecem verdadeiras. Você acha que é possível encontrar um desses aí? Por favor, me ligue assim que voltar." "Desculpe, sou eu ainda. Espero não entupir a sua secretária eletrônica. O fato é que não consegui dormir: esse espelho me perturba. Observei-o bem de perto, e é simplesmente perfeito. E não é só isso. Botei a mão e não ficou nenhuma marca. Geralmente, quando a gente toca uma superfície de vidro, fica uma marca, né? Mas neste caso é como se eu nem tivesse chegado perto. De que material será feito? Confesso que tentei até arranhá-lo, mas nada. Outra coisa estranha: é impossível escrever neste espelho. Tentei com um pincel atômico. Não acontece nada!" "Alô, Laura? Agora você vai dizer que estou maluco, mas começo a suspeitar que aquilo não é de fato um espelho. Não existem espelhos assim. Estou começando a achar que ali não há nada, e que o que eu vejo no espelho na verdade é tudo real. É como se houvesse um plano que separasse duas partes absolutamente simétricas do quarto. O problema é que não posso passar para o outro lado e checar, porque sempre esbarro na minha imagem. Aliás, não sei bem como dizer, mas temo que não seja a minha imagem. Temo que seja algum outro absolutamente parecido comigo, que se move exatamente como eu! Mas que brincadeira é essa?!" "Laura? Laura? A superfície é quente ao tato!" "Laura, por que você não me liga? Estou de fato preocupado! Fiz mil testes e não tem jeito: aquele sujeito faz exatamente os mesmos movimentos que eu faço. Ele me copia em cada mínimo detalhe. A única diferença é que o que eu faço com a mão direita, o outro faz com a esquerda. E obviamente traz o relógio no outro pulso." "Não resisto a ligar de novo. Estou aqui há quatro horas e me parece uma vida. Ou talvez devesse dizer: estamos aqui há quatro horas. É claro que somos dois. E talvez vocês também sejam duas. Se não, para quem ele estaria ligando neste momento? Estou certo de que não só executamos os mesmos movimentos, mas também temos as mesmas sensações e provavelmente as mesmas ocupações. Laura, não ria, mas estou achando que esse "espelho" é uma espécie de limite invisível que separa dois universos perfeitamente simétricos, o nosso universo e a sua réplica. Agora vou sair e tentar apurar se essa fronteira prossegue do lado de fora ou se é só uma bruxaria deste quarto." "Oi, sou eu ainda. Não saí porque estou desconfiado. Aqui pelo menos tenho a sensação de estar com a situação sob controle: controlo todos os movimentos dele. É como se a minha réplica fosse um fantoche que eu movimento a meu bel-prazer." "Laura, e se, ao contrário, é ele quem está me controlando? E se sou eu a marionete dele? No entanto, me sinto perfeitamente livre para fazer o que eu quero, como sempre fiz. Sou eu que decido telefonar e deixar todas essas mensagens. Sou eu que decido me virar para o outro lado, se quiser. Será que somos livres e controlados ao mesmo tempo? Laura, por favor, ligue para mim assim que puder!" "Mas onde você está, Laura? Preciso fazer alguma coisa. Preciso me livrar desse cara aqui. O problema é que não tenho a mínima idéia de como proceder. Tentei sair pela porta e depois voltar, mas obviamente ele fez o mesmo." "Ele tem uma pistola idêntica à minha. Tentei não pensar que eu gostaria de dar um tiro nele, pois assim ele não pensaria em atirar também em mim. Seja como for, não aconteceria nada, né? Nossos projéteis se encontrariam bem ali, no meio do quarto. Laura, ligue para mim, isso é um verdadeiro pesadelo." "Laura? Há um modo de me livrar dele. Um modo só."