Trecho do livro O FIM DA POBREZA

Introdução Este livro é sobre como acabar com a pobreza em nosso tempo. Não é uma previsão. Não prevejo o que vai acontecer, apenas explico o que pode acontecer. Atualmente, mais de 8 milhões de pessoas em todo o mundo morrem a cada ano porque são pobres demais para permanecer vivas. Nossa geração pode tomar a decisão de acabar com a miséria até 2025. Todas as manhãs, nossos jornais poderiam anunciar: "Mais de 20 mil pessoas morreram ontem de miséria". As matérias poriam os números em contexto: até 8 mil crianças mortas pela malária, 5 mil mães e pais mortos de tuberculose, 7500 adultos jovens vítimas de aids e outros milhares mortos de diarréia, infecção respiratória e outras doenças mortais que atacam corpos enfraquecidos pela fome crônica. Os pobres morrem em hospitais que não têm medicamentos, em aldeias que carecem de mosquiteiros, em casas que não possuem água potável. Morrem sem nome, sem comentário público. É triste, mas essas matérias raramente são escritas. A maioria das pessoas não tem consciência das lutas cotidianas pela sobrevivência e da enorme quantidade de gente pobre em todo o mundo que perde essa luta. A partir de 11 de setembro de 2001, os Estados Unidos iniciaram uma guerra contra o terror, mas esqueceram as causas mais profundas da instabilidade global. Os US$ 450 bilhões que o país gastará neste ano com suas forças militares jamais comprarão a paz apenas 15 bilhões, e cerca da trigésima parte disso, for destinadas aos mais pobres dos pobres do mundo, cujas sociedades estão desestabilizadas pela miséria e, portanto, se tornam lugares de agitação, violência e até do terrorismo global. Esses 15 bilhões representam uma porcentagem minúscula da renda dos Estados Unidos, apenas US$ 0,15 de cada US$ 100 do produto nacional bruto americano (PNB). A parte do PNB dos EUA destinada a ajudar os pobres vem declinando há décadas e é uma fração minúscula do que o país repetidamente prometeu e deixou de dar. É também muito menos do que os Estados Unidos deveria dar para resolver a crise da miséria e, desse modo, promover a segurança nacional do país. Este livro, portanto, é sobre como fazer as escolhas certas, escolhas que podem levar a um mundo muito mais seguro, baseado numa verdadeira reverência e respeito pela vida humana. Passei os últimos vinte anos trabalhando com chefes de Estado, ministros das finanças e da saúde e moradores de aldeias em dezenas de países de todos os cantos do mundo. Visitei mais de cem países, com cerca de 90% da população mundial, e neles trabalhei. A experiência cumulativa de ver o mundo de muitos pontos privilegiados ajudou-me a apreciar as reais circunstâncias de nosso planeta - as causas da pobreza, o papel das políticas dos países ricos e as possibilidades para o futuro. Ganhar uma perspectiva adequada sobre essas questões tem sido minha luta e meu desafio durante duas décadas. Nenhuma outra coisa em minha vida intelectual e em meu engajamento político tem sido mais recompensadora. Tive a felicidade de observar alguns sucessos reais - e contribuir para eles: o fim da hiperinflação, a introdução de novas moedas nacionais estáveis, o cancelamento de dívidas não pagas, a conversão de economias comunistas moribundas em economias de mercado dinâmicas, o início do Fundo Global de Combate à Aids, Tuberculose e Malária, e tratamento medicamentoso moderno para pessoas pobres infectadas pelo HIV. Compreendi cada vez mais o abismo existente entre o que o mundo rico diz que está fazendo para ajudar os pobres e o que de fato faz. E também adquiri gradualmente consciência, mediante minha pesquisa científica e meu trabalho de campo de consultor, do imenso poder que está nas mãos de nossa geração para acabar com o sofrimento imenso dos miseráveis e, desse modo, tornar nossa vida mais segura nesse mesmo processo. Nas páginas seguintes, exporei o que testemunhei e aprendi em sociedades tão diversas quanto Bolívia, Polônia, Rússia, China, Índia e Quênia. Os leitores verão que todas as partes do mundo têm a chance de participar de uma era de prosperidade sem precedentes aproveitando-se da ciência, da tecnologia e dos mercados globais. Mas verão também que certas partes do mundo estão presas numa espiral descendente de empobrecimento, fome e doença. Não faz sentido pregar aos agonizantes que eles deveriam ter se saído melhor com o que lhes coube na vida. Em vez disso, nossa tarefa é ajudá-los a subir na escada do desenvolvimento, pelo menos para firmar um pé no primeiro degrau, a partir do qual eles podem prosseguir sozinhos. Sou otimista? O otimismo e o pessimismo são irrelevantes. A questão não é prever o que vai acontecer, mas ajudar a moldar o futuro. Trata-se de uma tarefa coletiva, tanto para mim como para você. Embora os manuais de introdução à economia preguem o individualismo e os mercados descentralizados, nossa segurança e nossa prosperidade dependem pelo menos igualmente das decisões coletivas de lutar contra a doença, promover a boa ciência e a difusão da educação, proporcionar infra-estrutura crítica e agir em uníssono para ajudar os mais miseráveis. Quando as precondições de infra-estrutura básica (estradas, energia e portos) e de capital humano (saúde e educação) estão disponíveis, os mercados são poderosas máquinas de desenvolvimento. Sem essas precondições, os mercados podem cruelmente esquecer grandes parcelas da população mundial, deixando-as na pobreza e no sofrimento sem alívio. A ação coletiva, por meio da eficiente oferta governamental de saúde, educação, infra-estrutura, bem como da ajuda externa, quando necessário, sustenta o sucesso econômico. Há 85 anos, o grande economista inglês John Maynard Keynes meditou sobre as terríveis circunstâncias da Grande Depressão. A partir das profundezas do desespero que o cercava, ele escreveu em 1930 Possibilidades econômicas para nossos netos. Numa época de coerção e sofrimento, ele previu o fim da pobreza na Grã-Bretanha e em outros países industriais no tempo de seus netos, perto do final do século XX. Keynes enfatizou a tremenda marcha da ciência e da tecnologia e a capacidade desses avanços em tecnologia de sustentar o crescimento econômico continuado com juros compostos, crescimento suficiente, com efeito, para acabar com o velho "problema econômico" de ter o suficiente para comer e renda suficiente para suprir as outras necessidades básicas. Keynes tinha razão: a miséria não existe mais nos países ricos de hoje e está desaparecendo da maioria dos países de renda média do mundo. Hoje, podemos invocar a mesma lógica para declarar que a miséria pode acabar não na época de nossos netos, mas em nosso tempo. A riqueza do mundo abastado, o poder dos vastos armazéns de conhecimento de hoje e a diminuição da fração do mundo que precisa de ajuda, tudo isso torna o fim da pobreza uma possibilidade realista até o ano de 2025. Keynes se perguntava como a sociedade de seus netos usaria sua riqueza e sua libertação sem precedentes da milenar luta pela sobrevivência diária. Essa é exatamente a pergunta a que temos de responder. Teremos o bom senso de usar nossa riqueza com sabedoria, para curar um planeta dividido, para acabar com o sofrimento daqueles que ainda estão presos na pobreza e para forjar um laço comum de humanidade, segurança e objetivo compartilhado por culturas e regiões diferentes? Este livro não vai responder a essa pergunta. Em vez disso, ajudará a mostrar o caminho para uma trilha de paz e prosperidade, baseada numa compreensão detalhada de como a economia mundial chegou aonde está hoje, e de como nossa geração poderia mobilizar nossas capacidades nos próximos vinte anos para eliminar a miséria que ainda resta. Espero que, ao mostrar os contornos dessa trilha promissora, eu torne mais provável a sua escolha. Por enquanto, sou grato pela oportunidade de compartilhar o que vi do mundo e das possibilidades econômicas para o nosso tempo. 1. Um retrato de família global MALAUI: A TEMPESTADE PERFEITA Ainda é meio da manhã no Malaui quando chegamos à pequena aldeia de Nthandire, distante cerca de uma hora de Lilongwe, a capital do país. Viemos por estradas de terra e passamos por mulheres e crianças descalças que carregavam moringas de água, lenha para o fogo e outros fardos. A temperatura matinal é sufocante. Nessa região que planta milho para sua subsistência, de um país pobre e sem saída para o mar do sul da África, as famílias arrancam a sobrevivência de uma terra inclemente. Este ano foi muito mais difícil do que o usual porque as chuvas não vieram, conseqüência provável do ciclo do El Niño. Qualquer que seja a causa, a safra está secando nos campos por onde passamos. Se as aldeias estivessem cheias de homens fisicamente capazes, que pudessem ter construído unidades de coleta de água em pequena escala sobre os tetos e nos campos para armazenar o pouco de chuva que caíra nos meses anteriores, a situação não estaria tão terrível como nesta manhã. Porém, ao chegarmos à aldeia, não vemos nenhum homem jovem capaz. Na verdade, mulheres velhas e dezenas de crianças nos recebem, mas não há, à vista, nenhum homem ou mulher em idade de trabalhar. Onde estão os trabalhadores? - perguntamos. Nos campos? O assistente social que nos levou à aldeia sacode a cabeça com tristeza e diz que não. Estão quase todos mortos. A aldeia fora atacada pela aids, que vem devastando esta parte do Malaui há vários anos. Sobram na aldeia apenas cinco homens com idade entre vinte e quarenta anos. Não estão presentes nesta manhã porque estão todos no enterro de um vizinho que morrera de aids no dia anterior. A presença da morte em Nthandire tem sido avassaladora em anos recentes. As avós que encontramos são as guardiãs de seus netos órfãos. Cada mulher tem sua história de como seus filhos e filhas morreram, deixando para ela o peso de criar e alimentar cinco, dez, às vezes quinze netos órfãos. Essas mulheres atingiram uma idade em que, em lugares mais prósperos, seriam matriarcas reverenciadas gozando um descanso merecido de uma vida inteira de labuta. Mas não há folga agora, nenhuma chance de um momento de alívio, porque as avós dessa aldeia, e de incontáveis outras como esta, sabem que, se pararem por um instante, essas criancinhas morrerão. A margem de sobrevivência é extremamente estreita; às vezes, desaparece por completo. Uma mulher que encontramos diante de sua choça de barro tem quinze netos órfãos, como mostra a fotografia 1. Ao explicar sua situação para nós, ela aponta primeiro para as plantas secas que morreram no campo ao lado de sua choça. Seu pequeno lote, de talvez meio hectare, seria pequeno demais para alimentar sua família, mesmo que as chuvas tivessem sido abundantes. Aos problemas do tamanho pequeno do terreno e da seca acrescenta-se outro: os nutrientes do solo estão tão esgotados nesta parte do Malaui que a produção chega a apenas uma tonelada de milho por hectare com boas chuvas, em comparação com as três toneladas por hectare que seriam típicas de solos saudáveis. Meia tonelada de grãos de um campo de meio hectare não seria suficiente para a nutrição adequada e proporcionaria pouca renda de mercado - talvez nenhuma. Este ano, devido à seca, essa mulher não obterá quase nada. Põe a mão no bolso do avental e tira um punhado de grãos de milho semipodres e infestados de insetos, que será a base do mingau que ela vai preparar para a refeição do final da tarde. Será o único alimento das crianças naquele dia. Pergunto-lhe sobre a saúde das crianças. Ela aponta para uma menina de cerca de quatro anos, que contraíra malária na semana anterior. A mulher tinha carregado a neta nas costas por cerca de dez quilômetros até o hospital local. Quando chegaram lá, não havia quinino, o remédio contra a malária, disponível naquele dia. A criança com febre alta e a avó foram mandadas para casa e instruídas a voltar no dia seguinte. Num pequeno milagre, quando retornaram no dia seguinte, depois da caminhada de dez quilômetros, o quinino havia chegado e a menina respondeu ao tratamento e sobreviveu. Mas foi por pouco. Quando a malária não é tratada dentro de um ou dois dias, a criança pode ser acometida de malária cerebral, seguida por coma e morte. A cada ano, mais de 1 milhão de crianças africanas - talvez até 3 milhões - sucumbem à malária. Essa terrível catástrofe ocorre apesar de essa moléstia ser parcialmente evitável - mediante o uso de mosquiteiros e outros controles ambientais que não chegam às aldeias miseráveis do Malaui e da maior parte do resto do continente - e completamente tratável. Simplesmente não há desculpa concebível para que essa doença acabe com milhões de vidas a cada ano. Nosso guia de Nthandire é um assistente social cristão, um malauiano dedicado e compassivo que trabalha para uma organização não-governamental (ONG) local. Ele e seus colegas trabalham contra todas as probabilidades para ajudar aldeias como a que visitamos. A ONG quase não tem financiamento disponível e sobrevive de magras contribuições. Seu grande esforço na aldeia, inclusive para essa família em particular, é oferecer um pedaço de encerado plástico para pôr sob a palha de cada telhado. O encerado evita que as crianças fiquem totalmente expostas aos elementos, de tal modo que, quando chegarem as chuvas, o teto não pingará sobre os quinze netos que dormem embaixo. Essa contribuição de poucos centavos por família é tudo o que a organização de ajuda consegue juntar. Ao caminharmos pela aldeia, outras avós contam histórias semelhantes. Todas perderam filhos e filhas; os que sobraram lutam pela sobrevivência. Há somente pobres nessa aldeia. Nenhuma clínica por perto. Nenhuma fonte de água segura. Nenhuma safra nos campos. E o que é notável, nenhuma ajuda. Paro para perguntar a uma das meninas seu nome e idade. Ela parece ter sete ou oito anos, mas na verdade tem doze, atrofiados por anos de desnutrição. Quando lhe pergunto com o que sonha para sua vida, ela diz que quer ser professora e que está preparada para estudar e trabalhar duro para conseguir isso. Sei que suas chances de sobreviver até a escola secundária e o curso de professora são mínimas, nas circunstâncias em que ela vive. Freqüentar a escola agora é uma questão aleatória. As crianças entram e saem devido a doenças. Sua freqüência depende da urgência com que são necessárias em casa para buscar água e lenha, ou para cuidar dos irmãos ou primos; de poderem comprar material escolar, um uniforme e pagar as taxas locais; e da segurança de caminhar vários quilômetros até a escola. Deixamos a aldeia e voamos mais tarde, no mesmo dia, para a segunda cidade do país, Blantyre, onde visitamos o Hospital Central Rainha Elizabeth, o principal do Malaui. Ali sofremos o segundo choque do dia. Trata-se do hospital em que o governo do país está ansioso por começar um programa de tratamento para os cerca de 900 mil malauianos infectados com o vírus HIV e que estão morrendo de aids por falta de tratamento. O hospital montou uma clínica sem internação para as pessoas que podem pagar o custo de US$ 1 por dia do coquetel anti-retroviral baseado em acordos do Malaui com a produtora indiana de medicamentos genéricos Cipla, pioneira no fornecimento de drogas anti-HIV de baixo custo para países pobres. Uma vez que o governo é pobre demais para cobrir a despesa de US$ 1 diário para todos os necessitados, o programa começou para aqueles poucos malauianos que podem pagar do próprio bolso. Na época de nossa visita, esse local de tratamento oferecia drogas antiaids diariamente para cerca de quatrocentas pessoas que podiam pagá-las - quatrocentas pessoas em um país em que 900 mil estão infectadas. Para o resto, não há acesso aos medicamentos contra aids. Entramos rapidamente numa sala de reuniões com o médico que supervisiona o serviço para pacientes não internados e as alas médicas. Ele nos descreve os pequenos milagres com os pacientes que recebem o tratamento antiaids. A resposta foi impressionante. A taxa de êxito dos remédios é de quase 100%. As variedades de HIV não mostram resistência às drogas porque o povo malauiano jamais teve acesso aos remédios. O médico relata também que a adesão de seus pacientes a esse regime de duas vezes por dia tem sido muito alta. Eles certamente querem ficar vivos. Em suma, o médico está muito contente com os resultados. No momento em que seu relato está nos encorajando, o médico se levanta e sugere que visitemos a enfermaria, que fica do outro lado do corredor. "Enfermaria", na verdade, é um eufemismo chocante, porque não se trata de forma alguma de uma enfermaria. É o lugar aonde os malauianos vão morrer de aids. Não há medicamentos ali. Uma placa anuncia que a sala tem capacidade para 150 leitos. Há 450 pessoas na enfermaria, que são enfiadas em 150 leitos, com três pessoas em cima ou ao redor deles. Na maioria dos casos, duas pessoas estão deitadas cabeça com pé, pé com cabeça - estranhos que partilham o mesmo leito de morte. Ao lado ou embaixo da cama há alguém no chão, às vezes literalmente no chão, às vezes sobre um pedaço de papelão, morrendo. A sala está cheia de gemidos. Trata-se da câmara mortuária onde, nesse dia, três quartos ou mais das pessoas estão no último estágio da aids, sem medicamentos. Membros da família estão sentados junto ao leito, umedecendo lábios secos e observando morrer seus entes queridos. O mesmo médico que trata os pacientes do outro lado do corredor é o encarregado desse serviço. Ele sabe o que poderia ser feito. Ele sabe que cada um desses pacientes poderia se erguer do leito de morte se pudesse pagar US$ 1 por dia. Ele sabe que o problema não é de infra-estrutura, nem de logística, nem de adesão. Ele sabe que o problema é simplesmente que o mundo acha apropriado virar a cara enquanto centenas de malauianos pobres morrem diariamente em conseqüência da miséria. Acabei conhecendo o Malaui relativamente bem depois de várias visitas. Há alguns anos, fui contatado pelo vice-presidente do país, Justin Mulawesi, um indivíduo notavelmente fino, uma figura digna, eloqüente e popular dessa que é, contra todas as probabilidades, uma democracia multipartidária. As probabilidades são poucas porque a democracia está fadada a ser frágil num país pobre em que a renda está em torno de US$ 0,50 por pessoa por dia, ou cerca de US$ 180 anuais, e onde as tensões das doenças, da fome em massa e do choque climático estão por toda parte. É extraordinário que os malauianos tenham conseguido isso, enquanto a comunidade internacional ficou, em larga medida, ao largo de todo esse sofrimento. O próprio vice-presidente Mulawesi perdeu vários membros da família para a aids. Na primeira vez em que falamos da doença, ele me contou com olhos tristes sobre suas novas responsabilidades de chefe da Comissão Nacional sobre Aids. Ele comandou uma equipe de especialistas para projetar uma estratégia nacional contra a doença que pudesse enfrentar esse desafio horrível. Essa equipe viajou pelo mundo - foi a Harvard, Johns Hopkins, Liverpool, Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres e à Organização Mundial da Saúde - para discutir idéias a fim de acelerar a luta contra a moléstia. Com efeito, o Malaui montou uma das primeiras e mais bem concebidas estratégias para levar tratamento a sua população moribunda e deu uma resposta muito séria aos desafios de gerir um novo sistema de entrega de medicamentos, aconselhamento e educação de pacientes, alcance da comunidade e fluxos financeiros que acompanhariam o processo de treinamento de médicos. Com base nisso, o país fez propostas à comunidade internacional para ajudar os malauianos a tentar atingir cerca de um terço do total da população infectada (em torno de 300 mil pessoas) com tratamentos com o coquetel antiaids num período de cinco anos, em escala crescente. No entanto, os processos internacionais são cruéis. Os governos doadores - entre eles, o americano e os europeus - mandaram o Malaui diminuir acentuadamente a escala de sua proposta porque ela era "ambiciosa e cara demais". A proposta seguinte foi cortada para o tratamento de apenas 100 mil pessoas no final de cinco anos. Mesmo isso foi considerado demais. Em um tenso período de cinco dias, os doadores mais uma vez saíram ganhando e obrigaram o Malaui a cortar mais 60% da proposta, baixando para 40 mil em tratamento. Esse plano atrofiado foi submetido ao Fundo Global de Combate à Aids, Tuberculose e Malária. Por incrível que pareça, os doadores que controlam o fundo consideraram adequado fazer novo corte. Depois de uma longa batalha, o Malaui recebeu financiamento para salvar apenas 25 mil pessoas no final de cinco anos - uma condenação à morte promulgada pela comunidade internacional contra a população desse país. Carol Bellamy, do Unicef, descreveu com precisão a situação do Malaui como sendo uma perfeita tempestade, uma tempestade que traz consigo desastre climático, empobrecimento, pandemia de aids e os velhos fardos da malária, da esquistossomose e de outras doenças. Diante desse terrível turbilhão, a comunidade mundial mostrou até agora um pouco de aperto de mãos e até alguma retórica magnânima, mas pouca ação de valor. [...]