Trecho do livro GATO PRETO EM CAMPO DE NEVE

A primeira viagem de Simbad O MAR ESTÁ TRANQÜILO O Argentina vai partir. O mar está tranqüilo. O belo sol do Rio de Janeiro clareia o cais apinhado de gente. Num esforço de boa vizinhança, a orquestra de bordo toca com pronunciado sotaque norte-americano um samba do Brasil. Estudantes paulistas que vão para uma universidade na Carolina do Norte, debruçam-se felizes à amurada do barco e fazem sinais para terra. No convés inferior os rapazes do Botafogo F. C. berram aleguás tropicais para os torcedores, que lá debaixo lhes respondem com vivas e bandeiras. Contra o azul luminoso deste céu de verão cálido e nítido, as montanhas parecem olhar com adulta benevolência para a cena de adeus. Elas já eram antigas quando aqui chegaram as caravelas dos descobridores; viram a cidade nascer, crescer, sonhar; conhecem os segredos e as paixões dos homens; sabem que outros navios partirão, e que o som de outras palavras de despedida e esperança, encantamento ou angústia, hão de chegar de novo até seus flancos de pedra, trazidas pelo vento do mar. Um boy metido em uniforme branco passa, fazendo soar o gongo. O som oleoso e redondo, lambuzado duma voluptuosa preguiça, evoca em mim imagens orientais. Cerro as pálpebras e vejo um templo chinês, a carantonha lustrosa do Buda de bronze, o fino fio azul do incenso a subir da pira de jade... Abro os olhos e o que vejo é a cara suada dum homem que me pergunta, arquejante: - O senhor é da missão do Botafogo? Respondo-lhe que não. O desconhecido faz meia-volta e sai a correr, gritando: "Nariz! Onde está o Nariz?". E eu fico, com a doce melancolia de não pertencer a nenhuma das missões que se encontram no vapor. Nem estudante paulista nem jogador de futebol. Os guindastes içam para bordo os últimos volumes. A capelinha caiada do alto do morro, para além dos arranha-céus, nada tem a ver com este alvoroço. Um avião prateado cruza os ares, rumo de Niterói. Uma gaivota pousa no verde sujo das águas. Os alto-falantes do Argentina amplificam uma voz grave: os visitantes devem descer imediatamente para terra. O moço do saxofone é ruivo. O do contrabaixo é vesgo. Bóiam cascas de laranja e pedaços de jornal na estreita faixa de mar entre o costado do barco e o paredão do cais. Para quem estará acenando aquela mulher gorda e chorosa, lá embaixo? A voz metálica e rachada do pistom pergunta que é que a baiana tem. E longe, no fundo de corredores que ainda não explorei, o gongo continua a gemer. A meu lado, uma voz quase familiar pergunta: - É a sua primeira viagem, dr. Simbá? EU E O OUTRO Volto-me. É estranho... Julgo estar na frente de um espelho, pois o homem que acaba de me dirigir a palavra se parece de maneira alarmante comigo mesmo. Decerto o calor me fez dormir e isto é apenas um sonho. - Não me conhece? É espantoso! Ouço a minha própria voz... vejo as minhas horrendas sobrancelhas cerradas e híspidas, a cara morena, o nariz largo e lustroso... Acontece apenas que este sujeito é muito mais moço que eu. - Fiquei onde você me deixou há quinze anos passados... - prossegue ele. - Lembra-se? Vossa Excelência resolveu envelhecer, ficar sisudo, fazer carreira, escrever livros e, o que é pior, publicá-los... Faz uma pausa. Apóia os cotovelos na amurada, espraia o olhar pelo cais e continua: - Tenho ainda vinte anos. Gosto de olhar a lua e quando sonho durante a noite não procuro interpretar os sonhos pela manhã. Nunca li Freud e não tenho vergonha de dizer que sou romântico. Ergue uma das sobrancelhas com ar vago, ao mesmo tempo que encolhe de leve os ombros. - Viajo sem passaporte e sem memória. Serei invisível para todos os passageiros deste barco menos para você. Quer um cigarro? - Obrigado. Não fumo. Volta-se para mim num movimento vivo. - E se fôssemos ao bar? - Não bebo. - Eu devia ter adivinhado... Fígado? - Exatamente. No fim de contas, tenho quinze anos mais que você. - Não falemos em coisas tristes. Isto é uma viagem de recreio. - E de estudos... - apresso-me a acrescentar. - Não seja solene. Não bastam as tristezas do mundo, os obrigatórios e desenxabidos problemas de cada dia? Vamos ao uísque. - Já lhe disse que não bebo. - Tome uma laranjada. Venha! Agarra-me o braço e arrasta-me para o bar. Sentamo-nos a uma pequena mesa redonda. O boy se aproxima. Meu companheiro lhe grita: - Whisky and soda, please! - O seu inglês é pavoroso - vingo-me. - Mas em compensação minha saúde é ótima. Encolho os ombros e no momento seguinte me vejo diante dum copo de uísque, a aceitar esta absurda realidade de sonho: a companhia de meu próprio fantasma, do meu eu de vinte anos. Lanço-lhe um olhar de carinhosa desconfiança quando, sorrindo, ele pergunta: - Não se convenceu ainda de que sou o melhor companheiro de viagem que lhe podia aparecer? - Enfim... - Vá! Beba esse uísque. - À nossa saúde! - À vida! Bebemos um gole largo. O gongo continua a soar. Onde? Longe, talvez no fundo dos corredores dos séculos. O outro sorri para mim. - Sabe duma coisa? - sussurro-lhe. - Há muito que eu andava pensando em procurá-lo... - E por que não procurou? - Ora, você sabe... A gente tem medo de reencontrar os velhos amigos. Às vezes eles mudam... - Já lhe disse que sou o mesmo. Quem mudou foi você. A sonhadora languidez da saudade me toma conta do corpo e do espírito. Deixo-me escorregar preguiçosamente para o fundo da cadeira, as pernas esticadas avançam por baixo da mesa, os tacões dos sapatos deslizam sem ruído pelo soalho encerado. Com o rosto voltado para o alto, fico a mirar o estuque do teto. Mas para além dele vejo imagens de uma idade perdida. - Você se lembra daqueles seus passeios sentimentais pela praça de nossa cidade natal? E a voz do outro: - Sim, o outono. Os garotos prendiam fogo nos pequenos montes de folhas secas e o céu era claro e calmo. O ar se enchia duma fumaça azulada, de perfume meio acre mas esquisitamente delicioso. Não sei por que eu julgava ver a sombra de Verlaine passeando por entre os plátanos da pracinha provinciana. Seguia-lhe os passos sofrendo. E esse sofrimento me dava uma inexplicável felicidade. Eu era feliz por me poder sentir infeliz. Les sanglots longs des violons de l'automne. - Blessent mon coeur d'une langueur monotone... - Ainda bem que você se lembra. É sinal de que nem tudo está perdido. - Sabe que é que estou vendo agora? O interior de um armazém de secos e molhados... Você pintando letras num saco de feijão... e sonhando com aventuras... Vendendo batatas e murmurando versos de Samain... - Respirando alho e recitando Francis Jammes... - O mundo era um mistério e uma promessa. Grandes tempos! Cerro os olhos e o outro continua a falar dentro de meus pensamentos: - Vocês, homens, chamados adultos, tudo fazem para matar nossos melhores sonhos. De tão práticos tornaram-se amargos e ásperos. Assumem ares graves de sabedoria e eficiência. Julgam-se o sal da terra e vivem a falar em nome da experiência, da idade e não sei mais de quê... Mas no fim de contas a única coisa que fazem é matar a poesia, tornando a terra estéril de beleza e bondade. Ora... vão para o diabo! Um apito rouco, longo e trepidante. Estremeço, reteso o corpo. E, depois, passado o susto, digo com o ar mais prosaico do mundo: - Acho que o vapor vai desatracar. O outro ergue o copo: - Bebamos então à saúde da nossa viagem. Que ela seja conduzida pelos ventos da aventura. E que nós dois possamos finalmente reencontrar o continente perdido da poesia e do romance. - Em Detroit, talvez... - resmungo, meio azedo. - Ou nos desertos de Oklahoma, por onde arrastou sua miséria a família Joad, de As vinhas da ira. O outro faz um gesto de indiferença e declama: - J'aime dans le temps Clara d'Ellébeuse... Meu amigo, você é uma besta! - Thank you, my boy. Miro o meu interlocutor com um ar de protetora e condescendente superioridade, que me vem da nossa diferença de idade, e indago: - Já que vamos ser companheiros de viagem, como devo chamar-lhe? - Pode me chamar Malasartes. Sempre gostei de Pedro Malasartes... Não o acha romântico? - Horrorosamente. Estendo a mão para o companheiro invisível. O homem do bar me olha espantado. SINAIS DOS TEMPOS Passa a hora marcada para a saída, mas o paquete continua imóvel. Desço para o convés inferior e ao passar pela frente do guichê de informações encontro drama. Uma senhora de cara descarnada e lívida chora, os braços caídos num desalento ao longo do corpo. Três homens gordos e corados, de aspecto mercantil, conversam animadamente, excitados, lançando olhares insondáveis para o comissário, que está a escutar pachorrento o que lhe diz um homenzinho baixo e calvo, de ar astuto, camisa aberta ao peito, casaco dobrado sobre um dos braços. Um senhor de estatura imponente, vestido com uma elegância européia, ordena a um carregador que lhe desça de novo a bagagem para o cais. - Assim não embarco! - exclama. Ao ritmo de sua indignação, o monóculo que lhe pende do pescoço oscila dum lado para outro, como um pêndulo. O comissário, um sujeito de cara cor de tijolo e olhos de aço, encolhe os ombros, como quem diz: "A mim que me importa?". O homenzinho calvo puxa-lhe frenético a manga do dólmã. - Mas, senhor oficial, eu sou pelos aliados. O interlocutor continua a sacudir os ombros, as mãos displicentemente metidas nos bolsos. - Suas idéias não me interessam - diz. - Para mim o senhor é apenas um passageiro como os outros. O cavalheiro imponente apanha a valise de couro amarelo e se precipita, vermelho e mudo, para a ponte de desembarque. Tem um cravo branco na lapela e uma expressão de mal refreado ódio no rosto. A mulher lívida o segue passivamente, como um cachorro ao encalço do amo, mas um cachorro escorraçado, abandonado e triste, afeito a todos os maus-tratos. Fico a olhar a cena, enquanto ouço alguém explicar que se trata de passageiros com passaporte alemão. O comandante acaba de lhes comunicar que terão de sujeitar-se ao risco de serem retirados de bordo pelas autoridades britânicas, em Port of Spain. O comissário continua a ser assediado pelas frases sincopadas do passageiro de ar astuto. Os três homens gordos se entreolham num pesado silêncio. Não precisam falar para que fiquemos sabendo de sua história. São europeus exilados e fazem parte do numeroso exército dos sem-pátria. Por qualquer razão não quiseram ou não puderam ficar no Brasil. A América do Norte é decerto agora sua última esperança. Vejo-os olhar da porta para o comissário, e deste para os passaportes que têm nas mãos. Os minutos se escoam. Os três homens estão indecisos. O suor lhes escorre pelos rostos curtidos. Suor ou lágrimas? - pergunta Malasartes, sentimental. Passam vultos - outros passageiros, empregados do vapor, funcionários do porto... O comissário continua indiferente. Ordens são ordens, que é que vocês querem? - E o mundo é tão grande... - murmura Malasartes a meu ouvido. - Veja o que fizeram vocês, os homens sem poesia nem piedade. A terra está transformada num inferno inabitável. A vossa decantada sabedoria, o vosso endeusado progresso e as vossas orgulhosas máquinas criaram apenas isso... - Que é que vamos fazer? É o destino, a história com H maiúsculo. Ninguém tem culpa. Você leu o... - Palavras! - exclama o meu fantasma, sem paciência - Palavras! Você explica, raciocina. Mas eu me comovo. Diz isto e, antes que eu o possa deter, precipita-se para os homens indecisos e pergunta ao primeiro deles num inglês dramático: - Que é que há, amigo? O homem franze o cenho, seus olhos brilham de uma luz hostil de desconfiança: - Mind your own business! - rosna ele. - Meta-se com a sua vida. Sem dizer mais nada Malasartes faz meia-volta, desarvorado. - Bem feito - sussurro-lhe. - Você tem de perder essa mania de andar sempre fazendo o papel de bom samaritano. - A culpa ainda é de vocês - replica ele sem me encarar. Até já. Vou ver o mar. Subimos ambos em silêncio. FERIADO Sempre desejei esta viagem, este feriado. Poder entrar por alguns dias na vida fútil e superficial dum navio... Não pensar na hora escura que a humanidade está vivendo... fugir de um mundo em que há miséria, sofrimento, ódio, carnes e almas dilaceradas... Não procurar a razão das coisas nem querer penetrar na alma das outras criaturas e muito menos na minha própria... Esquecer que existe um amanhã, e que cada partir pressupõe um chegar... Achar, por exemplo, que este oceano não é túmulo de cadáveres carcomidos nem esconderijo de submarinos traiçoeiros, mas sim o grande oceano da aventura, dos jogos de luz, das ilhas encantadas, dos iates de recreio... Poder ser por alguns dias quase como aquela bola vermelha que as mãos versáteis de duas raparigas jogam na piscina, dum lado para outro - leve, matinal, rútila e sem consciência... Que me seja permitido lançar ao mar o fardo da memória. Mesmo sabendo que, como o cadáver de um afogado, ele possa continuar seguindo implacavelmente o meu navio... [...]