Trecho do livro O SUPER-HOMEM VAI AO SUPERMERCADO

I. O SUPER-HOMEM VAI AO SUPERMERCADO Por uma vez que seja, tentemos pensar numa convenção política sem nos perder em esquemas de fato e conseqüência. A política tem suas virtudes, virtudes até demais - ela não competiria com o beisebol como tópico de conversa se não satisfizesse inúmeras coisas -, mas podemos suspeitar que seu apelo secreto é parecido com o da nicotina. Fumar cigarros separa o indivíduo da sua própria vida, ele sente menos, o que muitas vezes é uma bênção, e a política isola-o da história; a maioria das pessoas que se nutrem da vida política está no jogo não para fazer história, mas para ser afastada da história que está sendo feita. Se aquela convenção democrata que se recolheu por trás do rosto do verão de 1960 está um pouco esquecida em meio à excitação da proximidade da eleição, pode ser exatamente a hora de refletir sobre ela de novo, porque a montanha de fatos que ocultou seus traços em julho último foi varrida pelos ventos da Alta Televisão, e o homem das ruas (esse termo político peculiar que se refere ao quixotesco eleitor que marcará seu voto movido por uma razão tão notável quanto: "Tive um tenente puxa-saco que era a cara de Nixon", ou "Esse Kennedy deve usar dentadura"), o não tão fácil de prever homem das ruas esqueceu quase tudo o que aconteceu e teria tanta dificuldade em dizer contra quem Kennedy estava brigando quanto você ou eu teríamos de responder quem estava na liderança da liga americana de beisebol durante o mês de junho. Portanto, tentar falar sobre o que aconteceu é mais fácil agora do que era nos dias da convenção; como não preciso abarcar tudo - um ato de escrita que demanda mais uma escavadeira do que uma caneta -, posso tentar defender meu pequeno ponto de vista e enfeitá-lo com uma ou duas fitinhas de metáfora. Melhor assim. Pois os mistérios são perturbados pelos fatos, e a convenção democrata de 1960 começou como um mistério e terminou como outro. Uma vez que o mistério é uma emoção que repugna ao animal político (que outro motivo justifica levar uma vida de jantares de comida ruim, fumaça de charuto, cadeiras de armar, mau hálito e torturante jargão enfadonho, se não o de evitar os ecos do que não é conhecido?), a separação física entre o que estava acontecendo na tribuna, nas salas de conchavos, nos comitês de campanha, e o que estava acontecendo paralelamente à história da nação era mistério bastante para afundar o processo nas trevas. Foi, por um lado, uma convenção aborrecida, uma das menos interessantes segundo a opinião geral, aliviada aqui e ali por lampejos de cor local, agitada por duas meias horas de excitação por conta das manifestações pró-Stevenson, mantida à tona pela classe da máquina de Kennedy, transtornada pela surpresa da indicação de Johnson à vice-presidência, mas assim mesmo aborrecida, desanimada em seu tom geral, com as grandes fiestas reprimidas, os mexericos triviais, nenhuma atmosfera real de empolgação, apenas momentos, ou, como se diz nas touradas, detalhes. Contudo, foi também - alguém poderia argumentar, e ainda pode -, foi também uma das convenções mais importantes da história da América, possivelmente a mais importante. O homem indicado por ela era diferente de todos os políticos que haviam concorrido à presidência na história do país, e se fosse eleito chegaria ao poder num ano em que a América corria o risco de resvalar para um profundo declínio. 1. Uma descrição dos delegados Filhos e filhas da República num legítimo pânico; pequenos profissionais do judô político de cidades pequenas na grande cidade e no grande momento A depressão obviamente tem várias raízes: ela é a duvidosa proteção que advém do não-reconhecimento do fracasso, é o peso físico da exaustão, e é também, com muita freqüência, aquela disciplina da vontade ou do ego que nos permite continuar trabalhando quando nossa emoção não confessada é o pânico. E era pânico, acho, o sentimento predominante no peito dos delegados partidários que chegavam para se reunir em Los Angeles. Os delegados não são os filhos e filhas mais nobres da República; um homem de bom gosto que, chegando de Marte, desse uma rápida olhada num salão de convenção iria embora para sempre, convencido de ter visto os mais sinistros porões do inferno. Se ainda se percebe o leve aroma de um vinho celebrador, do condimento picante de uma tourada, do som e da fúria de um duelo de cavaleiros, tudo isso é logo engolido e regurgitado pelos sentidos até virar um arroto asqueroso e mortal do qual é preciso se livrar - o gás letal da fumaça de charuto, do ar amanhecido, das dentaduras frouxas, das bundas esparramadas, o pútrido, triste, laborioso e burocrático gás letal do linguajar e das caras ("Sim, aquelas caras", diz o homem de Marte: advogados, juízes, cabos eleitorais, mafiosos, fidalgos e capangas do Sul, senhoras grã-finas, sindicalistas e pelegos), de palavras pomposas e longas pausas que caem como uma pesada e dolorosa febre, a febre de estar dentro da história, acima da história, ou será simplesmente atrás da história? Um pânico legítimo para um delegado. A América é uma nação de sabichões sem raízes; estamos sempre criando táticos que são cegos para a estratégia e estrategistas que não conseguem dar um passo, e quando a cultura termina o seu trabalho as instituições imobilizam-se na indecisão. Um delegado é um homem que escolhe um candidato ao maior cargo público do país, um presidente que lidará com problemas cujas fronteiras residem na ética, na metafísica e, por conseguinte, na ontologia; o delegado se prepara para essa função de escolher esvaziando lixeiras, transportando lixo e dizendo sim nas horas certas durante trinta anos na pequena máquina política de alguma cidade pequena ou grande; sua recompensa, ou pelo menos uma delas, é ser convidado a participar da convenção. Perito em luta livre local, pequeno e geralmente medíocre profissional do pequeno judô político de província, ele chega à cidade grande com 90% de suas opiniões já formadas, e seguirá as ordens do cacique que o trouxe. Embora, é claro, não seja necessariamente tão ruim assim: sua opinião é ouvida - o cacique vai tomar o que ele tem a dizer como um fator interessante a considerar, em meio a quinhentos outros - e, o que é mais importante para o delegado, ele tem a ilusão da liberdade parcial. Ele pode, a menos que seja rigorosamente honesto consigo mesmo - e, nesse caso, por que suportar as picuinhas de uma máquina política? -, ter a ilusão de que ajudou a escolher o candidato, pode até se preocupar muito sinceramente com sua escolha, flertar com a possibilidade de divergir do cacique, calcular seus próprios pequenos ganhos políticos caso siga a estrada da lealdade ou a trilha da negociação firme. Mas, mesmo que ele esteja lá só para fazer número, que seu voto seja uma certeza na cabeça do cacique político, sujeito a ser manipulado para cá ou para lá de acordo com a conveniência deste último, ainda assim, num sentido peculiar o delegado é real para o cacique, o delegado é o grande público americano; o escritório de advocacia que ele possui, o departamento sindical que ele representa, ou a corretora imobiliária, é uma parte da paisagem política que o cacique usa como sua própria imagem de como a votação vai se desenrolar, e se o povo vai gostar do candidato. E se o cacique fica deprimido com o que vê, se o candidato não lhe parece bom, se ele tem uma desagradável impressão de que o candidato não faz o seu tipo (como, digamos, Harry Truman fazia, ou Symington poderia fazer, ou Lyndon Johnson), então o cacique votará nele se for preciso, pois não pode ser surpreendido do lado errado, mas sem sentir o prazer de uma escolha pessoal. O que é o núcleo do pânico. Porque, se o cacique está deprimido, o delegado fica duplamente deprimido, e o fato emocional é que Kennedy está fora de foco, fora do velho foco político, e ele se sente desconfortável; na verdade, é um mistério para o cacique o porquê de Kennedy ter chegado aonde está, não um mistério estrutural; Kennedy está nadando em dinheiro, Kennedy obteve os votos nas primárias, e, mais que tudo, Kennedy tem uma máquina política impecável. É tão boa quanto uma equipe brilhante de Notre Dame, toda disciplina, inteligência e vitalidade, saudável, bem treinada, nunca morosa, ágil como um punhal, pungente como um grande arremesso, uma máquina maravilhosa; o cacique poderia amá-la se um candidato razoável estivesse no seu comando, um Truman, ou mesmo um Stevenson, ou no mínimo um Lyndon Johnson do Norte, mas ela é dirigida por um homem que parece jovem o bastante para ser o treinador do time dos calouros, e isso não é nem um pouco reconfortante. O cacique conhece máquinas políticas, ele sabe das coisas, regulação de preços agrícolas, lei Forand de saúde, lei sindical Landrum-Griffin, mas isso no fim das contas não é muito adequado diante de revolucionários cubanos que parecem beatniks, da competição em torno de mísseis, dos negros saqueando brancos no Congo, das complicações da chuva radiativa e de homens da Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor que a gente faz bem em chamar de cavalheiros. Está tudo fora de controle, tudo o que tem importância está fora do lugar, os assuntos externos são agora o que há de mais quente, e senadores são candidatos em lugar de governadores, uma catástrofe para o velho estilo familiar de mensuração política, no qual o cacique político conhece seu governador e conhece quem seu governador conhece. Então o cacique está deprimido, profundamente deprimido. Ele vem a esta convenção resignado a indicar um homem que ele não compreende, ou digamos que, até onde compreende o candidato que está para ser indicado, ele não está contente com os segredos do seu fascínio, pelo menos não até onde ele intui tais segredos; estes parecem ter pouco a ver com política e muito a ver com a loucura particular da nação que teve milhares - ou seriam centenas de milhares - de pessoas protestando na longa noite anterior à morte de Chessman, e um astro do cinema, o maior de todos, Marlon Brando, junto com eles naquela noite. Sim, este candidato, apesar de todo o seu currículo, seu bom, saudável e convencional currículo liberal, tem uma aura daquela outra vida, da segunda vida americana, daquela longa noite elétrica em que o fulgor do néon indicava o caminho para o burburinho do jazz.