Trecho do livro O SOL E A SOMBRA

INTRODUÇÃO Forjada por Vieira no final do século XVII e presente na epígrafe deste livro, a metáfora do sol e sua sombra ilustra bem o que era mandar e governar no império português, sobretudo depois da Restauração dos Bragança no trono (1640). É certo que Vieira pensava em algo muito mais complexo, que transcendia o poder temporal e norteava todo o seu pensamento teológico. Contudo, na medida em que a irradiação de luminosidade permanece igual mesmo que a sombra varie, torna-se possível pensar no sol enquanto metáfora do poder temporal dos reis, sendo o próprio jesuíta quem, na seqüência da alusão à figura solar, se refere à prática administrativa do Império. Assim, se em princípio as diretrizes metropolitanas deviam ser seguidas, a distância distendia-lhes as malhas, as situações específicas coloriam-nas com tons locais. Nessas zonas de sombra, por outro lado, os interesses metropolitanos se combinavam aos regionais e acabavam produzindo alternativas peculiares, já que, como viu Edmund Burke para um império bem diferente - o britânico do século XVIII -, os mares se encrespavam e passavam-se meses entre a ordem e a execução. Elites locais e administradores enviados pelo rei buscaram ações comuns com freqüência maior do que se imaginou há cerca de cinqüenta anos, e fizeram-no de forma ambivalente: o enriquecimento desenfreado, os interesses escusos, o contrabando, as várias arbitrariedades e injustiças combinaram-se não raro com a busca de soluções eficazes para crises econômicas e fiscais, a melhoria das condições de vida, o sonho de uma formação política capaz de atender aos interesses do Reino e aos das conquistas. O ideal de um império luso-brasileiro deve também ser visto nessa chave: a tentativa de combinar as várias zonas de sombra e repensar o centro solar de irradiação do poder, pois acreditava-se, como Giovanni Botero no final do século XVI, que os Estados constituídos por partes não eram mais desunidos que os dotados de territórios contínuos: em perspectiva oposta à de Burke - espectador horrorizado de revoluções -, o mar podia ser poderoso elemento de união. Aprendemos com a história que essa empreitada era impossível por serem irredutíveis os interesses em jogo, irreconciliáveis a metrópole e suas colônias, e porque idéias e disposições mudavam de significado quando atravessavam os oceanos, conforme ensinou Fernando Novais num dos clássicos da historiografia brasileira, Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial. Mas só o tempo e a possibilidade da interpretação são capazes de fornecer esta certeza: para os homens que viveram naquela época, os jogos ainda não estavam feitos, ou pelo menos não se sabia que estavam. Talvez nenhuma análise historiográfica tenha captado as contradições, os impasses e os limites da Ilustração nas colônias americanas como o fez a ficção de Alejo Carpentier: contradições que tornavam Madri triste, feia e apagada para um senhor mexicano crescido entre "a largueza e o adorno" das ruas de sua cidade natal, pródigas em fachadas cobertas de azulejos, querubins e "cornucópias que extraíam frutas da pedra"; impasses e limites expressos na figura de Henri Christophe, ex-escravo feito tirano no Haiti; na guilhotina implacável a desembarcar no Novo Mundo junto com a liberdade; nos "últimos jacobinos" que, perseguidos na França, levantavam a cabeça em território americano para, em seguida, preservarem a escravidão. Este livro é uma tentativa de entender aspectos da política e administração setecentistas do império português atlântico à luz de algumas situações específicas sem, contudo, perder de vista o enquadramento geral. Não se preocupa com a questão mais técnica dos órgãos que viabilizaram o mando português na América: o governo-geral, as provedorias, as juntas, os tribunais, que começam, por sinal, a ser estudados por jovens historiadores brasileiros, mais de trinta anos depois de publicado o livro inovador e hoje clássico de Stuart Schwartz, Burocracia e sociedade no Brasil colonial. Há sem dúvida muito a fazer nesse campo, mas os objetivos do presente estudo são outros: entender os significados do mando no império português, o modo como se constituíram estruturalmente e, ao mesmo tempo, foram se tecendo ao sabor de conjunturas e de atuações individuais; situações e personagens que obedeciam a normas e determinações emanadas do centro do poder, mas que as recriavam na prática cotidiana, tornando às vezes o ponto de chegada tão distinto do ponto de partida que, não raro, ocultava-se ou mesmo se perdia a idéia e o sentido originais - se é que cabe falar de um sentido, por mais cara que me pareça a idéia, conforme expressada por Caio Prado Jr. com relação aos nexos colonizadores lusos na América. Em que pese o interesse predominante que, ao longo de minha trajetória, dediquei à história cultural e social, a preocupação com os aspectos políticos e administrativos do Império não é nova para mim. No final da década de 1970, a dialética do mando metropolitano havia chamado minha atenção a ponto de merecer tratamento mais detido num dos capítulos de Desclassificados do ouro (1980). Ali, a ação dos governadores da capitania de Minas Gerais foi qualificada de "prática do bater-e-soprar", e a natureza do poder foi vista como eminentemente contraditória, tendendo ora à centralização, ora à autonomia; pautando-se ora pela violência, ora pela contemporização. Essa busca oscilante da justa medida foi constitutiva do processo de construção do poder nos Estados modernos por ser imprescindível à preservação e à perpetuação do mando no mundo de então: no meu entender, os absolutismos procuraram seguir uma prática política pendular, evitando identificarem-se com um grupo social específico e combinando o rigor com certa dose de contemporização. As dimensões do império português, onde grandes distâncias separavam as diferentes conquistas e o centro decisório do sistema - Lisboa -, imprimiram uma complexidade notável ao poder exercido no seu âmbito. Até onde se podia apertar sem que a corda arrebentasse? Como temperar o rigor com a tolerância, ou vice-versa, sem pôr em risco o funcionamento do todo - o mando no Império e, em última instância, o próprio Império? Os dez capítulos que constituem este livro foram escritos ao longo dos últimos dez anos, o reavivar do interesse pelo mando e pela administração do Império tendo sido atiçado quando da edição crítica que organizei, entre 1993 e 1994, para o Discurso histórico e político sobre a sublevação de 1720, a pedido da Fundação João Pinheiro. Parte da correspondência do conde de Assumar referente aos anos entre 1717 e 1720 já havia sido estudada por mim em Desclassificados do ouro, mas o contato com outras cartas, suas e de sua família, bem como a leitura de outros documentos - o inventário de sua biblioteca, o discurso que proferiu ao tomar posse do governo de São Paulo e Minas do Ouro (1717), a memória que escreveu quando foi vice-rei da Índia -, permitiram-me ver a personagem e a própria prática administrativa sob viés novo. Assumar me ensinou que não importava desqualificar os capitães-generais portugueses sem procurar entender a lógica de suas ações, não cabia querer que tivessem feito diferente, identificando-se com os da terra e defendendo seus interesses em detrimento dos da metrópole, mesmo porque tal distinção era, na época, quase impossível. Ao contrário, é surpreendente que vários administradores tivessem conseguido ir além de posições dominantes nos conselhos do Reino e enxergado a especificidade presente em nexos que eram, sobretudo, coloniais. A trajetória e a inteligência incomum de Assumar ensinaram-me, igualmente, que os administradores tinham defeitos mas também qualidades, e que o compromisso brasileiro de construir uma nação jovem e espaná-la do legado colonial impunha, ao mesmo tempo, a construção de certa memória, as mais das vezes unilateral, assentada em abordagens que davam conta de um único lado da moeda. Por ter convivido tanto tempo com essa personagem, acabei lhe dando aqui atenção maior que a dedicada a outros governantes. Sob a inspiração desse governador, passei a selecionar, desde 1994, problemas e trajetórias referentes ao império português, tentando ir além da relação Brasil-Portugal e, sempre que possível, entender o sistema como um todo. A importância crescente do centro-sul no contexto da América portuguesa acirrou rivalidades regionais, expressou-se em situações peculiares e implicou a reavaliação do controle português sobre as colônias, em particular as atlânticas. Homens como Rodrigo César de Meneses e Luís Diogo Lobo da Silva têm sua história engastada também no continente africano. Outros, como Sebastião da Veiga Cabral, Dom Antonio de Noronha ou José Tomás de Meneses, deslocaram-se apenas entre Portugal e a América, mas as peripécias por que passaram se tornam mais inteligíveis quando postas em contexto imperial. As fontes para o estudo da administração podem ser maçantíssimas: decretos, cartas régias, consultas, promoções militares secas e burocráticas, listas intermináveis de nomes - nada que se compare com as divertidas Devassas Eclesiásticas ou os extraordinários processos da Inquisição com que me ocupei durante boa parte de uma vida de pesquisa. O primeiro obstáculo, portanto, é contornar o tédio que invade a leitura dos documentos e se acostumar a extrair leite de pedra. Mas há também conjuntos documentais interessantes, constituídos pelos papéis reunidos com o objetivo de comprovar os serviços prestados e úteis ao estudo mais vertical de alguns governos e experiências administrativas. Trabalhar com a administração implica ainda ultrapassar mais de um obstáculo ideológico (cap. 1): o tema parece menor, cheira a conservadorismo, embaralha Reino e conquistas, administradores e administrados, antes justificando a ação dos avós afinados com as políticas metropolitanas, ou mudos ante sua iniqüidade, do que a dor da violência cometida contra os antepassados índios e escravos. E, no entanto, a análise das tensões entre a metrópole e as colônias - ou conquistas - brasílicas sugere que a unidade política destas foi idéia surgida antes na cabeça dos integrantes dos centros decisórios do poder em Lisboa que na dos insurretos - muitos deles reinóis - alevantados em Minas, Bahia ou Pernambuco no início do século XVIII (cap. 2). Preconceitos bem enraizados no passado colonial, como os que exaltam, mas com maior freqüência denigrem os paulistas - abomináveis predadores de índios -, foram manipulados por administradores coloniais e tiveram defensores ilustres como o jesuíta Andreoni, autor de Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas - obra até hoje fundamental para a compreensão de nossa história (caps. 2 e 3). Mais de um governador se arvorou em descendente de estirpes ilustres para intimidar mamelucos rebeldes, e quase todos ficaram pasmos com a "nobreza" que, inspirada na da Europa e manipulando o costume, ia-se construindo nesta terra ao arrepio de qualquer critério estratificador respeitável para europeus: esse olhar horrorizado só captou a desordem e o absurdo da situação, mas ao registrá-la tornou possível desvendar-lhe a extraordinária dinâmica e criatividade (cap. 4). Estudar administradores é igualmente espinhoso. Esses homens desempenharam a tarefa ingrata de fazer valer a voz do rei, prendendo negro fugido e propondo até que se lhes cortasse o tendão de Aquiles para que sossegassem, matando e enforcando quem - preto, branco, índio ou mestiço - contestava a ordem e propunha outra diversa. Mas alguns deles escreveram textos que ajudam a entender não só a natureza do poder metropolitano como nossa própria tradição política, revelando que o governo na colônia extrapolava os limites do serviço e propiciava reflexões originais (cap. 5). Outros, envolvidos em negócios ilícitos até a raiz dos cabelos, proporcionam com suas trajetórias pessoais exemplos concretos dos limites de tolerância no Império, dos meandros do spoil system, do enraizamento, em nível local, das redes clientelares que se teciam em Lisboa e, de quebra, ilustram com atos de bravura extrema ou de medo pânico o contraditório da condição humana (caps. 6 e 7). Há ainda os que, com suas vicissitudes, mostram como a nobreza e o prêmio se construíam em grande parte na administração das conquistas, mas que este serviço não era, por si, condição soberana. Assim, o sistema da dádiva, da graça ou da mercê, que sem nomear desta forma Maquiavel já reputava, no início do século XVI, como atributo entre os principais do príncipe, essencial à manutenção do poder, e que seu contemporâneo Castiglione insistia dever se pautar antes na magnanimidade do governante que no empenho do súdito, tinha limites e mistérios (caps. 8 e 9). Por fim, a história de um desses homens pode ser vista como síntese de aspirações comuns a um império luso-brasileiro, gestadas na passagem do século XVIII para o XIX: partindo-se da análise de um poema célebre, oferecido à personagem quando de seu nascimento em Vila Rica - e quase sempre tomado como exemplo de protonativismo -, procura-se, com este caso limite, captar as contradições abertas pelas possibilidades da administração portuguesa na América (cap. 10). As trajetórias pessoais não têm interesse em si, mas pelos problemas que colocam. As que aqui se encontram não tratam de vidas ilustres: com exceção da de Dom Pedro Miguel de Almeida Portugal, conde de Assumar, as demais dizem respeito a personagens quase secundárias. A escolha não foi contudo fortuita, pois muitas vezes o acessório tem mais força explicativa que o fundamental, e penso ser o que acontece com o estudo de Sebastião da Veiga Cabral, Rodrigo César de Menezes, Luís Diogo Lobo da Silva, Dom Antonio de Noronha e José Tomás de Meneses. O que em grandes administradores da envergadura de Antonio de Albuquerque Coelho de Carvalho ou Gomes Freire de Andrada talvez ficasse esmaecido ante o brilho das ações notáveis, aparece, nos menores, com todo o relevo. Ao fim das contas, foi com eles, mais que com os outros, que se fez a administração do império português. Por fim, a análise dos indivíduos sempre apresenta perigo, sobretudo quando estes fazem parte das elites. Primeiro, porque há a sombra ameaçadora do culto do herói ou da personalidade, da história velha que se explica pela vida das personagens. A forma que se buscou neste trabalho foi oposta: os problemas nortearam a escolha das personagens, as trajetórias só fazendo sentido pelas questões - quase sempre estruturais - que suscitavam: a reflexão política sobre os limites do mando em conquistas ultramarinas; a teoria e a prática da concessão de dons ou mercês; a promiscuidade entre governo, poder e ganhos ilícitos; a tensão entre o âmbito público e o privado das carreiras imperiais. Assim sendo, não importava que se tratasse de personagens secundárias, e, de certo modo, era até melhor que o fossem. Em segundo lugar, porque a reconstituição dessas vidas parte quase sempre das genealogias, infelizmente eivadas de equívocos, sem falar no caráter muitas vezes exaltatório e encomiástico que as norteia. Ora, genealogias falham menos quando as personagens são ilustres e a variedade de documentos por meio dos quais se pode acompanhar suas vidas e confrontar informações é considerável. Um obstáculo complementar consiste na existência de homônimos: persegui a identidade de Dom Antonio de Noronha ao longo de dezesseis anos, a pesquisa se emaranhando e se perdendo em pistas falsas, induzindo, por mais de uma ocasião, em erros graves, até chegar ao resultado que aqui se apresenta e, espero, esteja próximo de ser o definitivo. Como princípio geral, tentei driblar tais limitações recorrendo ao maior número possível de referências documentais e bibliográficas. Enquadramentos e trajetórias são o modo encontrado para pensar o Brasil na administração do império português setecentista, mas também para acertar contas com um legado intelectual específico, que é nosso e que nos precedeu. Creio haver neste trabalho propostas analíticas sugestivas e talvez originais, entre elas o meu namoro, já longo, com a antropologia: a preocupação com estrutura e evento ajuda a sustentar a carpintaria dos capítulos, mas o que se faz mais presente, sobretudo na segunda parte, é uma etnografia da prática governativa - na esteira da etnografia da prática mágico-religiosa que, vinte anos atrás, busquei no capítulo final de O diabo e a Terra de Santa Cruz (1986). Ao lado de possíveis originalidades, o nervo deste livro é a tentativa de dialogar criticamente com uma tradição brasileira de pensamento, incorporando-a sempre que possível, relativizando-a quando necessário, sobretudo ante o avanço considerável da pesquisa empírica e da reflexão nos últimos vinte anos. Se o mundo globalizado impõe o diálogo constante com a produção internacional, há tradições específicas que conferem identidade e devem ser preservadas, mesmo se sujeitas à revisão de muitas de suas "verdades". Refiro-me a autores que pensaram o Brasil na sua condição subalterna, latino-americana, como - para citar apenas alguns - Caio Prado Jr., Sérgio Buarque de Holanda, Fernando Novais, Raymundo Faoro. Não por acaso, vários dos capítulos deste livro que se debruçam sobre trajetórias comportam, ao lado da etnografia, uma detida crítica historiográfica. A representação iconográfica escolhida para esta capa mostra, em primeiro plano, os homens que exerciam o mando político e gozavam de preeminência social na América portuguesa: vestidos, montados ou conduzidos à moda da Europa, como se estivessem em Lisboa, mas movimentando-se nas imediações de uma praia tropical, emoldurada por vegetação muito diversa da encontrada no Velho Continente. O poder político não prescindia do religioso, mantendo-se distinto mas sendo por ele enquadrado: à direita e à esquerda do cortejo, a igreja, o convento. Mais longe, junto à costa, quase imperceptíveis, figuras de homens nus, possivelmente índios, aqueles que o poder dos brancos metropolitanos, leigos ou religiosos, buscava dominar. Impondo-se ao todo, pontilhado por uma ou outra embarcação de porte variável, o mar a perder de vista, o mar que, no horizonte, acabava se confundindo com o céu. Mar que era oceano, unindo Impérios - conforme as concepções do século XVI -, mas também os separando - como temia Burke, crítico acerbo das revoluções do século XVIII. Distâncias oceânicas distorciam práticas, tradições e ordens: do mar ao oceano, do próximo ao distante, da sombra ao sol, eis-nos de volta à metáfora de Vieira. [...]