Trecho do livro A DANÇA DOS DEUSES

Parte 1 FUTEBOL, MICRO-HISTÓRIA DO MUNDO CONTEMPORÂNEO Surgido paralelamente ao Império britânico, por décadas o futebol teve seu destino ligado ao dele. De 1848, data da primeira uniformização das regras, até 1912, fecho de várias e importantes adaptações, o futebol foi típico representante daquela cultura. Naquela fase, o novo esporte ecoou muito de perto as vicissitudes internas da Grã-Bretanha. Na fase posterior, também as vicissitudes externas do Império, que em 1909 dominava 20% dos territórios e 23% da população mundiais. A propagação do futebol seguiu a lógica da influência cultural inglesa: de início nas próprias ilhas britânicas, a seguir na Europa germânica, depois na Europa latina, pouco mais tarde na América Latina. Não foi casual que nesta região vários clubes tenham adotado nomes ingleses, na Argentina (Banfield, Boca Juniors, Newell's Old Boys, River Plate, Vélez Sársfield), no Brasil (Arsenal do Mato Grosso, Corinthians de São Paulo, River do Piauí, Tranways de Pernambuco), no Chile (Everton, Green Cross, Wanderers), na Bolívia (The Strongest) ou no Peru (Sporting Cristal). Assim como o Império britânico cem anos antes, em meados do século XX a Fédération Internationale de Football Association (FIFA) era, no dizer de seu presidente Jules Rimet, "império onde o Sol nunca se põe". Mas houve o reverso da medalha: os territórios que formalmente tinham feito parte do Império britânico resistiram à adoção do futebol e continuam ainda hoje secundários no universo futebolístico (África do Sul, Austrália, Canadá, Estados Unidos, Nova Zelândia). Também não foi casual que o futebol tenha se mantido associado à cultura ocidental cristã. A primeira Copa do Mundo em outro território aconteceu apenas recentemente, em 2002, na Coréia e no Japão. Em terras muçulmanas a introdução do futebol foi precoce, ocorrida em 1918 no Egito (protetorado inglês), país que participou já da segunda Copa do Mundo, de 1934, na qual, aliás, terminou na frente do Brasil. Sua popularidade no mundo islâmico dar-se-ia contudo tardiamente, a partir da década de 1970, depois de o símbolo do imperialismo ter deixado de ser a Inglaterra, berço do futebol, e passado a ser os Estados Unidos, país sem tradição nesse esporte. Em suma, como veremos nos capítulos desta parte, a história do futebol não pode ser dissociada da história geral das civilizações. 1. Síntese da Europa industrial e colonialista A quem examina o surgimento do futebol moderno impõe-se desde o início a constatação de seu quadro geográfico (Inglaterra), mas nem sempre de seu quadro histórico (Revolução Industrial). Ora, ambos não podem ser dissociados. Não é casual que a Inglaterra tenha sido o berço da Revolução Industrial e do futebol. Os dois fenômenos baseiam-se em competição, produtividade, secularização, igualdade de chances, supremacia do mais hábil, especialização de funções, quantificação de resultados, fixação de regras. Este último ponto é essencial, correspondendo àquilo que Sigmund Freud em fins do século XIX e Norbert Elias em meados do século seguinte chamaram de processo civilizador. Também podemos pensar no estabelecimento das regras futebolísticas como manifestação particular na Inglaterra do então intenso desenvolvimento das instituições, que nada mais são do que regras do jogo social. Ou seja, restrições de comportamento que permitem a vida em sociedade, controlam interesses individuais em nome do bem comum. Por isso instituições formais são criadas pela sociedade inteira, por meio do Estado, para reger a própria sociedade: constituição, leis, decretos, códigos. Instituições informais são criadas por certos segmentos sociais para reger sua atuação específica: regras, convenções, normas, costumes. Se de um lado, é claro, todos esses procedimentos existiam havia muitos séculos, de outro é inegável que o progresso do capitalismo pediu um correspondente progresso nas instituições de todos os tipos. A época era de padronização, codificação e fixação em vários planos da vida inglesa. Em 1852, os mandatos de convocação diante da Justiça foram uniformizados. Ao longo do século XIX surgiram diversos códigos do direito criminal. Em 1858 elaborou-se o projeto do imponente Oxford English Dictionary, que recolhe, identifica, registra, legitima todos os vocábulos da língua. Não é de estranhar, portanto, a multiplicação de regras esportivas: para corridas de cavalo por volta de 1750, golfe em 1751, críquete em 1788, rúgbi em 1846, ciclismo em 1868. E futebol em 1863. 1.1 A pedagogia elitista inglesa (1848-75) Quando no histórico 18 de junho de 1815 os ingleses definitivamente derrotaram o imperialismo napoleônico na batalha de Waterloo, começou para eles um século de predomínio político, econômico e cultural. Dentre as condições imprescindíveis para que seu pequeno país (cerca de 10 milhões de habitantes num total mundial de 750 milhões, 130 mil quilômetros quadrados num total de quase 149 milhões) pudesse ser a maior potência mundial, estava a construção do caráter de suas elites. O caminho para tanto foi, entre 1820 e 1900, o chamado "cristianismo atlético". Ou seja, a concepção pedagógica que pretendia desenvolver a fibra moral da elite britânica destinada a governar regiões longínquas e inóspitas, plenas de súditos hostis e pouco civilizados. É significativo o perfil dos principais representantes dessa corrente: Thomas Arnold, diretor da Rugby School, introdutor em 1830 dos esportes no sistema educacional inglês; David Livingstone, explorador e missionário na África; Charles Gordon, combatente na Criméia e na China, depois governador do Sudão; William Gladstone, primeiro-ministro quatro vezes entre 1868 e 1894. Para todos eles, os esportes eram fundamentais para dar vigor ao corpo, fibra ao espírito, rapidez ao raciocínio. Tal projeto incorporou o recém-lançado Origem das espécies (1859), de Charles Darwin, adaptando à vida social a idéia biológica da sobrevivência dos mais fortes. Com essa intenção foi sendo crescentemente difundido, nas public schools (escolas privadas) e também nas universidades de Oxford e Cambridge, um jogo com bola aparentado àquele cultivado na Inglaterra havia séculos. Jogo que, chamado de football desde o século XIV, apesar de interdições oficiais nunca desapareceu das cidades inglesas, como nos mostra uma gravura de meados do século XVIII (figura 1). Estudos recentes sugerem que ele não deixou de ser praticado por segmentos sociais modestos nas primeiras décadas do século XIX, paralelamente ao que se fazia nas escolas das classes dominantes. De toda forma, é inegável que o futebol moderno visava forjar elites aptas a governar. Em 1864, o jornal londrino The Field definia-o como preparação para futuros governantes do país. O futebol moderno nasceu como instrumento do darwinismo social. Essa nova concepção alimentava a ideologia mais antiga do liberalismo, visto como essencial para que não surgissem novos Bonapartes, para que os mercados de todo o mundo estivessem abertos aos produtos da Inglaterra, para que sua monarquia parlamentarista pudesse funcionar com o mínimo de tensões sociais. Mas para que tal liberdade interna e externa não levasse a excessos desorganizadores, era preciso regras claras tanto na vida político-social quanto nos esportes nascentes. Foi com esse espírito que representantes de diversas escolas reuniram-se em 1848, em Cambridge, para tentar uniformizar as regras daquele esporte. Embora já bastante praticado - entre 1830 e 1860 havia mais de setenta equipes inglesas de futebol -, ele possuía regras específicas a cada local. Essa primeira normatização não foi definitiva, não teve aceitação por parte de muitos esportistas e continuou a ser revisada e discutida. Finalmente, a 26 de outubro de 1863 representantes de várias escolas e clubes encontraram-se na Freemason's Tavern, no centro de Londres, para criar a Football Association e um comitê que uniformizasse as regras. A codificação foi aprovada em assembléia no dia 24 de novembro e publicada no jornal esportivo Bell's Life de 8 de dezembro. Eram catorze regras simples, que davam identidade própria ao football. [...]