Trecho do livro O FIO E OS RASTROS

Introdução 1. Os gregos contam que Teseu recebeu de presente de Ariadne um fio. Com esse fio Teseu se orientou no labirinto, encontrou o Minotauro e o matou. Dos rastros que Teseu deixou ao vagar pelo labirinto, o mito não fala. O que une os capítulos deste livro, dedicados a temas muito heterogêneos, é a relação entre o fio - o fio do relato, que ajuda a nos orientarmos no labirinto da realidade - e os rastros. Há muito tempo trabalho como historiador: procuro contar, servindo-me dos rastros, histórias verdadeiras (que às vezes têm como objeto o falso). Hoje nenhum dos termos dessa definição ("contar", "rastros", "histórias", "verdadeiras", "falso") me parece algo óbvio. Quando comecei a aprender o ofício, pelo final dos anos 50, a atitude que prevalecia na academia era completamente diferente. Escrever, contar a história não era considerado um tema de reflexão sério. Lembro-me de uma só exceção: Arsenio Frugoni, que em seus seminários de Pisa voltava de vez em quando, como entendi mais tarde, ao tema do caráter subjetivo das fontes narrativas com que se deparara poucos anos antes em Arnaldo da Brescia. Frugoni me propôs (eu estava no segundo ano da universidade) preparar um colóquio sobre os Anais; comecei a ler Marc Bloch. Em Métier d'historien [Apologia da história ou o ofício do historiador], topei com uma página que muito mais tarde me ajudou, sem que eu tivesse plena percepção, a refletir sobre os rastros. Mas naqueles anos os historiadores tampouco falavam de rastros. 2. Refiro-me a esse clima para explicar a mim mesmo a euforia irracional que senti quando escrevi as primeiras frases de meu primeiro livro. Parecia-me que os documentos com que estava trabalhando (processos da Inquisição) abriam um leque muito amplo de possibilidades narrativas. A tendência a fazer experiências nessa direção, sem dúvida também solicitada por minhas origens familiares, encontrava nas fontes um estímulo e um limite. Mas eu estava convencido (e ainda estou) de que entre os testemunhos, seja os narrativos, seja os não narrativos, e a realidade testemunhada existe uma relação que deve ser repetidamente analisada. A eventualidade de que alguém pudesse duvidar radicalmente dessa relação nem sequer me passava pela cabeça. Tudo isso faz parte da pré-história deste livro. Na segunda metade dos anos 60 o clima começou a mudar. Algum tempo depois, anunciou-se com grande clamor que os historiadores escreviam. De início, creio que fiquei indiferente às implicações hiperconstrutivistas (na verdade, céticas) dessa revelação. Prova disso é um trecho do ensaio "Sinais" (1979), que se apóia na relação entre decifração dos rastros e narração, sem fazer alusão a eventuais objeções céticas. A guinada, para mim, só ocorreu quando, graças a um ensaio de Arnaldo Momigliano, percebi as implicações morais e políticas, além das cognitivas, da tese que na sua essência suprimia a distinção entre narrações históricas e narrações ficcionais. O posfácio que escrevi (1984) para Il ritorno di Martin Guerre [O retorno de Martin Guerre], de Natalie Davis (cf. Apêndice), registra essa - pensando bem, tardia - consciência. Quem desejar poderá começar esse livro por aquelas páginas. Ali encontrará, esboçado sumariamente, um programa de pesquisa e seu objetivo polêmico. Mais exatamente, o contrário: a pars destruens vinha primeiro, como talvez sempre aconteça. Contra a tendência do ceticismo pós-moderno de eliminar os limites entre narrações de ficcionais e narrações históricas, em nome do elemento construtivo que é comum a ambas, eu propunha considerar a relação entre umas e outras como uma contenda pela representação da realidade. Mas, em vez de uma guerra de trincheira, eu levantava a hipótese de um conflito feito de desafios, empréstimos recíprocos, hibridismos. Com as coisas nesses termos, não era possível combater o neoceticismo repetindo velhas certezas. Era preciso aprender com o inimigo para combatê-lo de modo mais eficaz. São essas as hipóteses que orientaram, ao longo de vinte anos, as pesquisas que confluem neste livro. O significado do desafio lançado pelas "más coisas novas", como dizia Brecht (ver cap. 1), e a escolha do terreno onde enfrentá-lo só ficaram claros para mim paulatinamente. Hoje os pós-modernistas parecem menos rumorosos, menos seguros de si; talvez os ventos da moda já soprem de outro lugar. Pouco importa. As dificuldades surgidas dessa discussão, e as tentativas de resolvê-las, permanecem. 3. O ataque cético à cientificidade das narrações históricas insistiu em seu caráter subjetivo, que as assimilaria às narrações ficcionais. As narrações históricas não falariam da realidade, mas sim de quem as construiu. Inútil objetar que um elemento construtivo está presente em certa medida até nas chamadas ciências "duras": mesmo estas foram objeto de uma crítica análoga àquela já lembrada. Falemos, então, de historiografia. Que ela tenha um componente subjetivo, é sabido; mas as conclusões radicais que os céticos tiraram desse dado concreto não levaram em conta uma mudança fundamental mencionada por Bloch nas suas reflexões metodológicas póstumas. "Hoje [1942-3]..., até mesmo nos testemunhos mais resolutamente voluntários", escrevia Bloch, "aquilo que o texto nos diz já não constitui o objeto preferido de nossa atenção." As Mémoires de Saint-Simon ou as vidas dos santos da alta Idade Média nos interessam (continuava Bloch) não tanto por suas referências aos dados concretos, volta e meia inventados, mas pela luz que lançam sobre a mentalidade de quem escreveu esses textos. "Na nossa inevitável subordinação ao passado, nós nos emancipamos, ao menos no sentido de que, embora permanecendo condenados a conhecê-lo exclusivamente com base em seus rastros, conseguimos, todavia, saber bem mais a seu respeito do que ele resolvera nos dar a conhecer." E concluía: "Olhando bem, trata-se de uma grande revanche da inteligência sobre o mero dado concreto". Em outro trecho de Ofício de historiador Bloch respondia às dúvidas dos que lamentavam a impossibilidade de controlar fatos históricos separadamente: por exemplo, as circunstâncias em que se deram os fuzilamentos que teriam desencadeado a revolução de 1848, em Paris. Trata-se, observava Bloch, de um ceticismo que não toca naquilo que existe por baixo do acontecimento, ou seja, as mentalidades, as técnicas, a sociedade, a economia: "Aquilo que há de mais profundo na história poderia ser também aquilo que há de mais seguro". Contra o ceticismo positivista que punha em dúvida o caráter fidedigno deste ou daquele documento, Bloch fazia valer, de um lado, os testemunhos involuntários; de outro, a possibilidade de isolar nos testemunhos voluntários um núcleo involuntário, portanto mais profundo. Contra o ceticismo radicalmente antipositivista que ataca o caráter referencial dos textos como tais, pode-se usar uma argumentação em certos aspectos semelhante àquela lembrada por Bloch. Escavando os meandros dos textos, contra as intenções de quem os produziu, podemos fazer emergir vozes incontroladas: por exemplo, as das mulheres ou dos homens que, nos processos de bruxaria, de fato escapavam aos estereótipos sugeridos pelos juízes (cap. 14). Nos romances medievais podemos detectar testemunhos históricos involuntários sobre usos e costumes, isolando na ficção fragmentos de verdade: uma descoberta que hoje nos parece quase banal, mas que tinha um aspecto paradoxal quando, em meados do século xvii, em Paris, foi formulada explicitamente pela primeira vez (cap. 4). Era uma estratégia de leitura não muito diferente daquela esboçada por Bloch a respeito da vida dos santos da alta Idade Média. A pista aberta por essa posição, ao mesmo tempo distanciada e participativa, com relação à literatura do passado teve, a longo prazo, êxitos imprevisíveis. Nesse caminho encontramos, três séculos depois, um grande estudioso (Erich Auerbach) que analisa trechos de Voltaire e Stendhal, lendo respectivamente as Cartas filosóficas e O vermelho e o negro, não como documentos históricos mas como textos entranhados de história. A interpretação é infinita, embora seus conteúdos não sejam ilimitados: as interpretações de Auerbach podem ser lidas numa perspectiva diferente das intenções e da perspectiva de seu autor, utilizando-se os rastros por ele deixados mais ou menos involuntariamente (cap. 6 e 9). A ficção, alimentada pela história, torna-se matéria de reflexão histórica, ou ficcional, e assim por diante. Essa trama imprevisível pode comprimir-se num nó ou num nome (cap. 8). Ler os testemunhos históricos a contrapelo, como Walter Benjamin sugeria, contra as intenções de quem os produziu - embora, naturalmente, deva-se levar em conta essas intenções - significa supor que todo texto inclui elementos incontrolados. Isso também vale para os textos literários que pretendem se constituir numa realidade autônoma. Até neles se insinua algo de opaco, comparável às percepções que o olhar registra sem entender, como o olho impassível da máquina fotográfica: um tema que Kracauer retomou de Proust, que por sua vez reelaborava uma passagem de Saint-Simon (cap. 12). Essas zonas opacas são alguns dos rastros que um texto (qualquer texto) deixa atrás de si. Encontrei-os quando tentei refletir sobre minha própria pesquisa, em duas experiências sugeridas pela distância temporal (e, num caso, também espacial) (cap. 13 e 15). 4. Fazer um inventário das formas assumidas pela ficção a serviço da verdade seria obviamente impossível. A generosidade humana e intelectual que inspirou a Montaigne o ensaio sobre os canibais brasileiros fora alimentada pelo gosto maneirista do grotesco e do bizarro (cap. 3). O tênue fio narrativo de Voyage du jeune Anarcharsis en Grèce [Viagem do jovem Anacarse à Grécia] permitiu a Barthélémy organizar uma enorme massa de dados sobre a Antigüidade, tornando-os acessíveis, durante um século, a um público vastíssimo, espalhado por toda a Europa (cap. 7). Montaigne foi considerado uma exceção, Barthélémy, no máximo, uma anomalia. Mas ambos remetem a uma escolha que modelou, sem que eu percebesse, grande parte da estrutura deste livro. Tratando-se de um campo repleto de lugares-comuns e generalidades, a relação entre narrações históricas e narrações ficcionais devia ser enfrentada da maneira mais concreta possível, por meio de uma série de exemplos. Encaixa-se nessa ótica o cap. 5, que pretende reconstituir "não a exceção, mas a regra". Trata-se, porém, justamente de uma exceção. Retrospectivamente percebi que a maioria dos temas que eu enfrentara não eram ilustrações ou exemplos referidos a uma norma preexistente, mas quase: histórias em miniatura, que, segundo a definição de André Jolles, formulam uma pergunta sem fornecer a resposta, assinalando uma dificuldade não resolvida. Quando comecei a estudar os testemunhos que falam de um judeu sobrevivente, única testemunha do extermínio da própria comunidade, pensava que eles mostrariam a insustentabilidade da posição dos céticos, que na verdade assimilam narrações de ficção e narrações históricas. Se uma narração se apóia em um único documento, como é possível deixar de fazer perguntas sobre sua autenticidade (cap. 11)? Quase no mesmo momento me vi formulando idêntica pergunta a respeito de um documento do século v que conta um caso precoce de hostilidade entre cristãos e judeus: a carta do bispo Severo de Minorca (cap. 2). Aqui, o unus testis, a única testemunha sobrevivente, é um documento, não um indivíduo, como acontece, inversamente, nos escritos jurídicos medievais, que refletiam sobre as características de uma comunidade (universitas) graças ao caso fictício do único sobrevivente. Aquilo que era apresentado implicitamente como uma experiência mental, um exemplum fictum cogitado pela casuística, tinha um dramático equivalente na realidade. 5. Da profusão de relações entre ficção e realidade, vimos surgir um terceiro termo: o falso, o não autêntico - o fictício que se faz passar por verdadeiro. É um tema que deixa os céticos em situação incômoda, pois implica a realidade: essa realidade externa que nem sequer as aspas conseguem exorcizar (cap. 11). Naturalmente, depois de Marc Bloch (Os reis taumaturgos) e Georges Lefèbvre (O grande medo de 1789), ninguém pensará que é inútil estudar falsas lendas, falsos acontecimentos, falsos documentos: mas uma tomada de posição preliminar sobre sua falsidade ou autenticidade é sempre indispensável. Sobre esse ponto, e em relação aos famigerados Protocolos anti-semitas (cap. 10), não tenho nada a acrescentar. Limitei-me a ler, um após o outro, os falsos Protocolos e sua fonte principal, o diálogo imaginário de Maurice Joly. Desse cotejo também afloraram, além de muitas péssimas coisas velhas, certas "más coisas novas"; verdades desagradáveis sobre as quais vale a pena refletir. Os historiadores, escreveu Aristóteles (Poética, 51b), falam do que foi (do verdadeiro), os poetas, daquilo que poderia ter sido (do possível). Mas, naturalmente, o verdadeiro é um ponto de chegada, não um ponto de partida. Os historiadores (e, de outra maneira, também os poetas) têm como ofício alguma coisa que é parte da vida de todos: destrinchar o entrelaçamento de verdadeiro, falso e fictício que é a trama do nosso estar no mundo. Bolonha, dezembro de 2005