Trecho do livro COSMOS

1. Vou contar-lhes uma outra aventura ainda mais estranha... Suor. Fuks está caminhando e eu atrás dele. Pernas de calças, saltos de sapatos, areia, nós nos arrastamos e arrastamos. Terreno arenoso, trilhas, torrões, brilho de cascalho reluzente, lampejos, calor agitado e murmurante, um sol que ofusca a visão, casinhas, cercas, campos, florestas, este percurso, esta caminhada, de onde, como. Para dizer a verdade, eu estava farto dos meus pais, aliás de toda a família, além do quê queria deixar para trás pelo menos um exame, bem como respirar novos ares, sair dali e passar um tempo bem longe. Parti para Zakopane. Estou andando por uma de suas ruas principais, pensando em como arrumar uma pensão barata quando encontro Fuks e sua cara proeminente cor de cenoura, seu olhar opaco de apatia, mas ele ficou contente e eu fiquei contente. Como está?, o que faz aqui? Procuro um quarto, eu também, tenho um endereço - disse-me ele - de uma casinha barata, porque fica longe, perto de um vilarejo próximo. Assim, seguimos juntos, as pernas de calças, saltos enfiados na areia, estrada e calor. Olho para baixo: terra e areia, o cascalho brilha, um, dois, um, dois, pernas, saltos, suor, ardência nos olhos maldormidos no trem, nada mais do que aquele caminhar penoso. Ele parou. - Vamos descansar? - Falta muito? - Não, pouco. Olhei em volta e vi aquilo que era para ser visto, bem como aquilo que não tinha mais vontade de ver por tê-lo visto já tantas vezes: pinheiros e cercas, pinhos-de-riga e casinhas, mato e grama, uma vala, trilhas e canteiros, campos e uma chaminé... ar... tudo brilhando ao sol, porém negro, com a negritude das árvores, o tom pardo da terra, o agradável verdor das plantas, tudo bastante escuro. Um cachorro latiu, Fuks entrou no meio dos arbustos. - Aqui está mais fresco. - Vamos em frente. - Daqui a pouco. Não custa descansarmos um pouco. Penetrou ainda mais no meio dos arbustos, onde se abriam entranhas, profundezas obscurecidas por vegetação entrelaçada e galhos de pinheiros. Fixei meu olhar entre as folhas, galhos, manchas de luz, matagais, reentrâncias, pressões, chanfros, aberturas, curvas, só o diabo sabe o que mais... para o espaço malhado, que ora se aproximava ora fugia, silenciava, crescia, sei lá eu, derrubando tudo e se abrindo... Perdido e coberto de suor, sentia sob meus pés a terra desnuda e fria. Lá, no meio dos galhos, havia algo - algo diferente e estranho... algo que também era observado por meu companheiro. - Um pardal. - Ah, bem. Era um pardal. Estava pendurado num arame. Enforcado. Com a cabecinha retorcida e o biquinho aberto. Pendia de um pedaço de arame preso a um galho. Que coisa mais extraordinária. Um passarinho enforcado. Um pardal pendurado num arame. Esta excentricidade gritava a plenos pulmões e indicava o envolvimento da mão de um ser humano que penetrara no matagal. Mas quem? Quem o enforcou e por quê? Qual teria sido o motivo?... Fiquei pensando, em confusão mental, em meio a esta situação com um milhão de combinações, os sacolejos da viagem de trem, a noite entrecortada de silvos da locomotiva e maldormida, o ar, o sol, a caminhada até aqui com este tal Fuks, Jasia e minha mãe, a confusão com a carta, a forma pela qual "dei um gelo" no velho, e Roman, além dos problemas de Fuks com o seu chefe (dos quais ele me falou), trilhos, torrões, saltos de sapatos, pernas de calças, pedrinhas, folhas, tudo, enfim, acabou desabando sobre aquele pardal, como uma multidão ajoelhada. E o pássaro, o excêntrico, assumiu seu papel de rei.... reinando naquele local. - Quem o teria enforcado? - Alguma criança. - Não. Está alto demais. - Vamos! Mas ele não se mexeu. O pardal continuava pendurado. O chão era desnudo, embora, em alguns lugares houvesse tufos de grama rasteira. Derramadas sobre ele, havia várias coisas: um pedaço retorcido de uma chapa de ferro, um pedaço de pau, um outro pedaço de pau, uma cartolina rasgada, mais um pedaço de pau. Havia também um besouro, uma formiga, uma segunda formiga, um inseto desconhecido, uma ripa de madeira etc. etc., até onde começavam as raízes dos arbustos. Ele ficou olhando para aquilo. Assim como eu. - Vamos! Mas ele continuava parado, olhando. O pardal pendia. Eu permanecia parado e olhava. - Vamos! - Vamos! No entanto, não saíamos do lugar, provavelmente por termos ficado ali tempo demais e o momento adequado de partir já tivesse passado... e agora, isso se tornara mais pesado, mais inconveniente... nós, com aquele pardal enforcado no meio dos arbustos... e tive a sensação de algo semelhante a um desequilíbrio de proporções, falta de tato, de uma impropriedade de nossa parte... eu estava com sono. - Muito bem! Em frente! - falei, e fomos... deixando o pardal sozinho, no meio dos arbustos. A continuação da caminhada, debaixo de um sol implacável, nos escaldou e entediou. Depois de darmos algumas dezenas de passos paramos descontentes, e voltei a perguntar "falta muito?". Fuks respondeu, apontando para uma pequena placa pendurada na cerca: - Aqui também eles alugam quartos. Olhei. Um pequeno jardim. No jardim, atrás de uma cerca viva havia uma casa sem nenhuma decoração, sem balcões, tediosa e surrada, construída com parcimônia, com uma mísera varanda de madeira, típica das casas de Zakopane, com duas fileiras de janelas - cinco na parte térrea e cinco no andar de cima. Quanto ao jardim, algumas arvorezinhas minguadas, uns amores-perfeitos meio murchos e duas trilhas de cascalho. Mas ele achava que valia a pena ver, não custava dar uma espiada, às vezes num lugar modesto assim a comida pode ser de lamber os beiços, além de barata. Eu também estava disposto a entrar e ver, muito embora já tivéssemos passado por várias tabuletas semelhantes, sem que lhes tivéssemos dado a mínima atenção. Eu estava encharcado de suor. O calor era insuportável. Ele abriu o portão e fomos pelo caminho de cascalho na direção das reluzentes vidraças das janelas. Ele tocou a campainha. Esperamos um pouco na varanda. A porta se abriu, e surgiu uma mulher já não tão moça, de cerca de quarenta anos, uma espécie de empregada de peitos grandes e corpo avantajado. - Gostaríamos de ver os quartos. - Um momento, vou chamar a dona da casa. Ficamos esperando na varanda. Minha cabeça ainda guardava o barulho do trem, o cansaço da viagem, os acontecimentos do dia anterior, da agitação, do atordoamento e dos zumbidos - uma cascata de zumbidos. O que me intrigou naquela mulher foi uma estranha deformação em sua boca, naquele rosto de olhos claros de uma bondosa mulher do povo. Sua boca tinha, num dos cantos, uma espécie de corte, e esse minúsculo prolongamento de apenas um milímetro repuxava seu lábio superior, com o que ele se levantava - na verdade, deslizava como um réptil -, e essa escorrência fugidia, apesar de me repugnar com seu frio aspecto reptiliano, como de um sapo, não deixava de me excitar, já que era, também, uma escura passagem que conduzia ao pecado sexual - úmido e escorregadio. Fiquei espantado com sua voz, pois não sabia que tipo de voz poderia emanar daquela boca, e eis que ela falou como qualquer mulher amatronada de meia-idade. E agora pude ouvir a voz vindo de dentro da casa: - Titia! Estão aqui dois senhores que vieram ver o quarto! A tia em questão, que momentos depois entrou deslizando sobre perninhas curtas, era redonda. Trocamos algumas palavras: sim, de fato, tenho um quarto para duas pessoas, com pensão completa, sigam-me, por favor. Fomos envolvidos pelo aroma de café moído, um pequeno corredor, uma pequena alcova, escadas de madeira, os senhores pretendem ficar muito tempo? ah, sim, vão estudar, aqui temos muita paz, silêncio... Na parte superior, novamente um corredor e algumas portas, a casa era apertada. Ela abriu o último quarto do corredor, que consegui ver apenas de relance, já que, como qualquer quarto de aluguel, era escuro, com as cortinas cerradas, duas camas e um armário com um cabide, uma garrafa d'água sobre um pires, dois abajures perto das camas, sem as respectivas lâmpadas e um espelho numa moldura suja e feia. Um raio de sol escapava por entre as cortinas, formando uma mancha de luz no chão, e pudemos sentir o cheiro de hera e ouvir o zumbido de um moscardo. Só que... surpresa!... uma das camas estava ocupada, com alguém deitado nela - uma mulher -, sendo que se tinha a impressão de que ela não estava deitada como deveria, muito embora eu não soubesse em que consistia essa, digamos,impropriedade - se o fato de a cama estar sem lençóis, apenas com um colchão, ou de sua perna parcialmente estendida no estrado de arame (o colchão se deslocara um pouco) ter feito com que aquela ligação de perna e metal tivesse me surpreendido naquele dia quente, sonoro, cansativo. Ao nos ver, sentou-se na cama e arrumou os cabelos. - Lena, o que você está fazendo, meu anjo? Que coisa! Permitam-me, senhores, que a apresente: minha filha. Ela respondeu com um aceno de cabeça às nossas mesuras. Levantou-se e saiu em silêncio - um silêncio que apagou em mim qualquer pensamento sobre algo extraordinário. Foi-nos mostrado, ainda, o quarto vizinho, igual, porém mais barato, já que não tinha banheiro. Fuks sentou-se na cama, a senhora diretora Wojtys na cadeira e, como resultado, alugamos o quarto mais barato, com refeições incluídas, sobre as quais a senhora diretora disse "os senhores poderão constatar por si mesmos". Ficou decidido que tomaríamos o café-da-manhã e almoçaríamos no quarto, e que jantaríamos no andar de baixo, junto com a família. - Voltem, senhores, vão pegar suas coisas enquanto Katasia e eu preparamos tudo. [...]