Trecho do livro SOLDADOS DA PÁTRIA

1. Tumulto republicano Foram mexer com o Exército, que no tempo do Império vivia quieto no seu canto. Corremos agora o perigo duma ditadura militar. E daqui por diante ninguém vai fazer mais nada, Sem primeiro ouvir e cheirar os generais. Erico Verissimo, O tempo e o vento Procurei constituir uma ditadura de paz e harmonia. Deodoro da Fonseca, Deodoro: A espada contra o Império A história não iria até ali. [...] Nada tinha que ver naquele matadouro. Euclides da Cunha, Os sertões A CHEGADA DA REPÚBLICA Na Academia Militar das Agulhas Negras há um grande e dramático retrato do marechal-de-campo Manoel Deodoro da Fonseca montado num baio no pátio do quartel-general do Exército, braço direito erguido, acenando com o casquete em resposta aos vivas dos soldados que acabavam de aderir à rebelião contra o governo imperial na manhã de 15 de novembro de 1889. Esse quadro é reproduzido em muitos livros didáticos brasileiros, em geral com legendas que associam a cena à proclamação da República. A pintura exalta o papel e a posição do marechal em relação aos outros atores do evento, mostrados em segundo plano. No momento retratado no quadro, Deodoro estava afirmando seu controle pessoal sobre os únicos soldados ainda fiéis ao gabinete do visconde de Ouro Preto, que Deodoro, alto oficial do Exército, estava decidido a depor. No dia seguinte a essa cena nasceu uma polêmica acerca do beneficiário de seu primeiro "viva", que diziam ter sido dirigido a Sua Majestade d. Pedro II. Os republicanos ferrenhos garantiam que isso era impossível. Assim como o dúbio viva, outros aspectos da conspiração contra a monarquia permanecem vagos, obscuros. Deodoro estaria totalmente ciente de que o objetivo era derrubar a dinastia imperial e não apenas o gabinete de Sua Majestade Imperial? Quem teve o papel mais importante, Deodoro ou o tenente-coronel Benjamin Constant, propagandista republicano nas escolas do Exército? O comandante do Exército, ajudante-general marechal-de-campo Floriano Peixoto, estava sinceramente tentando defender o regime em seus últimos dias ou era um agente duplo? Essas incertezas geram um espaço histórico que os criadores de mitos tratam alegremente de preencher. A lacuna historiográfica em torno de 1889 é mais do que curiosa; é um dos aspectos bizarros da história brasileira moderna e, ela própria, digna de estudo. O objetivo aqui é a história mais abrangente do Exército na República, mas não se pode desconsiderar o ponto de partida, mesmo que ele suscite ainda mais questões. Não há dúvida, porém, de que o gabinete imperial reunira-se durante toda a noite de 14-15 de novembro no Ministério da Marinha, buscando modos de salvar-se, e ao amanhecer mudara-se para um refúgio supostamente mais seguro no quartel-general do Exército, sendo logo confrontado por unidades da guarnição do Rio de Janeiro. Na década de 1880, o governo imperial mostrara preocupação crescente com a lealdade do Exército. Nos campos filosófico, emocional e material, a distância entre ambos aumentara constantemente. Os oficiais da época eram, em geral, mais instruídos que os das gerações anteriores de militares, e haviam passado boa parte da carreira em áreas urbanas, ainda que algumas destas fossem cidades pequenas com guarnições do Exército. Os escalões superiores incluíam uma profusão de veteranos da Guerra do Paraguai que se sentiam depreciados pelo regime e pela sociedade - até os alunos das escolas militares e os oficiais subalternos ridicularizavam suas medalhas de guerra. A maioria dos oficiais vivia do soldo, e por isso seu bem-estar econômico e seu orgulho profissional ressentiam-se da morosidade do sistema de promoções. Não tinham nada em comum com os grandes proprietários de terras que produziam o açúcar e o café exibidos no brasão do Império. Idealmente, as promoções estavam associadas ao mérito, mas muitas vezes a influência política e o apadrinhamento de oficiais superiores determinavam quem era favorecido. Capitães podiam esperar de dez a quinze anos para chegar a major, o que incentivava a rotina burocrática em detrimento do empenho no treinamento e nos estudos. Os generais de 1895 tinham em média 39 anos de idade na época em que foram promovidos a major. Quando os oficiais olhavam para o gabinete imperial e os vários ministros, viam cada vez menos altos oficiais em posições elevadas, ocupadas agora por bacharéis das faculdades de direito de São Paulo e do Recife que eles zombeteiramente chamavam de "casacas". A escassez de oficiais na cúpula política gerava o sentimento de distanciamento e desvinculação do governo. O abismo entre as elites civis e militares crescia. A missão do Exército não estava claramente definida, e por isso a educação militar tomava direções contrárias ao desenvolvimento de uma força profissional. Os formandos recentes das escolas militares haviam sido imersos em um currículo mais voltado para as humanidades e a ciência teórica do que para as artes e práticas militares. Quando recebiam o diploma de bacharel em matemática ou ciências naturais e físicas, intitulavam-se doutores e eram tratados por "doutor tenente". Nas fileiras subalternas a pretensão era muito menor; ex-escravos e a escória da sociedade compunham grande parte dos praças, recrutados por esquadrões de alistamento compulsório. Uma lei de 1874 proclamou o alistamento universal para um sorteio militar, mas nunca foi implementada, para grande frustração, veementemente expressa, do corpo de oficiais. Na verdade, o serviço militar era parte do sistema penitenciário do Império, e os oficiais ressentiam-se do impacto negativo que isso tinha sobre seu prestígio social e sobre a imagem de sua instituição. Jovens oficiais, particularmente, sentiram-se atraídos pelo Partido Republicano após sua formação, em 1870, e um deles, o capitão dr. Luís Vieira Ferreira, ajudara a redigir o célebre manifesto republicano daquele ano e participara da publicação do jornal A República. A escola militar tornou-se um fértil campo de debates e conversões para a causa republicana. Em 1880 muitos oficiais solidarizaram-se com os instigadores dos protestos e tumultos apelidados de Revolta do Vintém, ocasionados pela imposição de uma taxa sobre as tarifas de bonde. Essa foi uma atitude interessante, uma vez que a taxa onerava principalmente as classes desfavorecidas. Vários oficiais de baixa patente deram aos republicanos informações sobre um depósito de armas em uma fortificação no Rio de Janeiro e prometeram retardar os reforços até que os conspiradores pudessem apoderar-se das armas. Como não há referências ao resultado do plano, ele parece ter sido abortado ou malogrado, mas também cabe notar que outros oficiais comandaram soldados que ajudaram a polícia a conter os amotinados. As atitudes dos oficiais, e sem dúvida seu comportamento, não foram monolíticos. Em outubro de 1883 um jornal do Rio, O Corsário, criticou o mau uso do recrutamento para fins políticos e menosprezou os oficiais que exigiam liberdade para questionar publicamente a política do governo. Em resposta, um grupo de oficiais e soldados de cavalaria invadiu e destruiu a tipografia do jornal. A polícia não interveio nem os perseguiu. Posteriormente, naquele mês, o editor, Apulcro de Castro, temendo pela vida, foi ao quartel-general da polícia pedir proteção. Enquanto isso, uma multidão de aparência suspeita reuniu-se do lado de fora do prédio. O chefe de polícia reconheceu oficiais do 1o. Regimento de Cavalaria e solicitou ajuda ao ajudante-general, que enviou seu auxiliar, um capitão. Esse oficial falou com os homens na rua e em seguida convenceu Castro de que o escoltaria em segurança. Mal a carruagem em que estavam começara a afastar-se quando homens em trajes civis, usando barbas falsas, atacaram e mataram o pobre editor a facadas e tiros. Ele morreu no vestíbulo do quartel-general da polícia. O capitão tirou licença-saúde por várias semanas, e o chefe de polícia foi demitido. Um inquérito formal nomeou onze oficiais, mas nenhum deles foi preso nem julgado. Entre os atacantes estava o capitão Antônio Moreira César, que tempos depois seria figura de grande relevo na guerra civil e na campanha de Canudos. Os debates sobre o caso no Parlamento levaram à queda do gabinete. Também em 1883 o major Frederico Sólon Sampaio Ribeiro e numerosos oficiais reuniram-se com Quintino Bocaiúva, Saldanha Marinho, Aristides Lobo e outros republicanos a fim de formular um plano para proclamar a República. À medida que o movimento abolicionista ganhou fôlego, foi-se associando à insatisfação no Exército. Na Câmara dos Deputados, Joaquim Nabuco declarou: "O governo está empregando o nosso Exército em um fim completamente estranho a tudo o que há de mais nobre para o soldado. O governo está empregando os soldados brasileiros como capitães-do-mato na pega de negros fugidos!". A abolição também acabou mesclada a um debate sobre a segurança nacional quando relatórios do Sul alertaram sobre a possibilidade de guerra com a Argentina em razão da disputa de fronteira entre as Missões e Santa Catarina. O gabinete do Partido Conservador então no poder queria aumentar os gastos militares, mas o Exército, apoiado por seus aliados parlamentares, disse que não podia ir à guerra com escravos em suas fileiras, como ocorrera em 1865. Os oficiais almejavam um Exército de cidadãos-soldados defendendo sua pátria. A abolição, a seu ver, era uma medida de defesa nacional. Em 1884, o ajudante-general, marquês da Gávea, dono de grande escravaria em suas terras ao norte de Angra dos Reis, repreendeu o coronel Antônio de Sena Madureira, comandante da escola de artilharia, por receber a visita de um dos jangadeiros que militara na luta para abolir a escravidão no Ceará. O coronel Sena era o especialista brasileiro em assuntos militares europeus, um dos mais respeitados oficiais do Exército, amigo do imperador e de seu genro, o conde d'Eu. Sua recusa em aceitar a reprimenda do idoso Gávea argumentando ter de reportar-se apenas ao chefe da artilharia, conde d'Eu, aumentou consideravelmente as tensões. Gávea recusou os pedidos de oficiais para serem dispensados da tarefa de caçar escravos. Oficiais, e até mesmo unidades inteiras, durante todo o Império se haviam associado ao movimento abolicionista, em alguns casos negando-se a obedecer ordens para perseguir grupos de escravos fugidos. Já em 1881 o 15o. Batalhão fora transferido de Fortaleza para Belém por declarar-se uma sociedade abolicionista. Identificar-se com um movimento reformista como esse e decidir obedecer ou não às ordens com base em padrões extramilitares contribuiu para distanciar os oficiais das normas sociais e políticas vigentes e acostumou-os a estabelecer seus próprios critérios de obediência. Quando a princesa regente aboliu a escravidão, em maio de 1888, os oficiais haviam absorvido tanta propaganda republicana em seus estudos na escola militar e na Escola Superior de Guerra que estavam prontos para substituir os ideais abolicionistas pelos republicanos como o necessário para fazer do Brasil uma pátria livre. Nas sombras, por trás disso tudo, grupos secretos de oficiais e estudantes militares conversavam, discutiam e tramavam. A idéia de um terceiro reinado veio à baila muitas vezes depois que a saúde de d. Pedro se deteriorou devido ao diabetes. Sua herdeira, Isabel, era casada com um nobre francês, o conde d'Eu, que, apesar de ter servido no Paraguai e empenhar-se pelos interesses do Exército, despertava desconfiança entre o corpo de oficiais. A idéia de Isabel renunciar em favor do filho também não agradava. As discussões públicas e privadas entre os oficiais quanto ao futuro finalmente solapariam suas lealdades cada vez menos firmes à dinastia de Bragança. Os oficiais também acreditavam nos rumores de que o governo planejava desbaratar o Exército. Certamente o gabinete procurava enfraquecer a capacidade de pressão do Exército sobre a Corte Imperial afastando unidades do Rio e deliberando sobre o revigoramento da Guarda Nacional, que estava em declínio desde que uma lei de 1873 reduzira o número de seus oficiais e limitara sua convocação a crises nacionais causadas por guerra externa ou rebelião interna. Não demorou para que suas manobras anuais de treinamento consistissem em políticos trajando fardas vistosas e marchando empertigados sem nenhum soldado para comandar. Sérgio Buarque de Holanda criticou a idéia da substituição como a ressurreição de um mito da década de 1830, afirmando que a memória histórica sobre a Guarda Nacional fora distorcida; explicou que naquela época a guarda não fora criada para substituir o Exército Imperial, como muitos asseveravam; seu propósito, na verdade, fora ajudar o Exército a manter a ordem. Para corroborar seu argumento, ele ressaltou que um dos principais organizadores da Guarda Nacional fora nada menos que Luís Alves de Lima e Silva, futuro duque de Caxias e "patrono" moderno do Exército. Em meio à crise de 1889, o gabinete realmente cogitou em deslocar algumas unidades para longe da capital e possivelmente reestruturar a guarda, mas as conversas não se converteram em ação. De fato, em 1889, em vez de diminuir o tamanho do Exército, o governo aumentou o efetivo autorizado em mais de 3 mil homens. A realidade não tinha o vulto imaginado pelos oficiais. Ao analisar a crise militar da década de 1880, talvez os historiadores não tenham dado atenção suficiente aos quadros de organização e cadeias de comando. Sabe-se muito bem que após a Guerra do Paraguai (1865-70) o Exército sofreu uma série de ajustes, um dos quais para restaurar a cadeia de comando dos tempos de paz. O Exército foi dividido em guarnições provinciais, cada qual chefiada por um comandante das armas subordinado ao presidente da província, que supervisionava as tropas em sua província. Esses presidentes em geral eram civis com patentes militares honorárias, na tradição dos governadores-gerais portugueses no período colonial. As decisões dos comandantes estavam sujeitas à aprovação do presidente civil da província. É verdade que às vezes um comandante podia ter ambas as atribuições, ou que o presidente podia ser um oficial, mas normalmente a estrutura de comando deixava o controle em mãos de civis. No topo da cadeia de comando estava o imperador, que era o "generalíssimo" das Forças Armadas; como monarca, ele era ipso facto um soldado, e um de seus títulos era o de "perpétuo defensor do Brasil". Durante a guerra a intromissão dos civis na estrutura militar dos tempos de paz foi removida, pois as forças em campanha organizaram-se em um exército combatente longe dos políticos civis de seus locais de origem. D. Pedro II manteve sua imagem usando o uniforme simples de um Voluntário da Pátria e obstinadamente exigindo a vitória total. Terminada a guerra, tornar a submeter-se ao velho sistema de guarnições provinciais foi oneroso para os veteranos combatentes. Na esfera nacional, o imperador generalíssimo estava cada vez mais enfermo e mais distante dos assuntos de Estado, o que significava que os altos oficiais não mais tratavam com seu líder "natural", um soldado como eles, e sim com políticos eleitos, maculados por alianças partidárias. A alienação entre o Exército e o sistema político vigente acirrou-se com a Questão Militar da década de 1880, quando oficiais foram punidos por fazer críticas ao governo em público. Em 1886 e 1887 oficiais de diferentes afiliações políticas haviam-se unido em defesa de interesses do Exército, os quais, a seu ver, estavam sendo ameaçados pelas penalidades impostas a seus colegas que haviam ousado manifestar-se. A união e a oposição pública desses oficiais forçaram o governo a cancelar as punições censuráveis. Em junho de 1887, no calor da vitória, eles fundaram o Clube Militar, uma organização para debates totalmente fora da estrutura do Exército, e em outubro daquele ano dissociaram-se das oligarquias agrárias, solicitando à princesa regente que, "em nome da humanidade e da honra da própria bandeira que defende", eximisse o Exército da abominável missão de caçar escravos fugidos. O corpo de oficiais, assim, mostrou uma opinião mais afim à dos setores médios urbanos, de onde provinham muitos de seus membros. Mas note-se que agora eles estavam saindo da cadeia normal de comando para expressar seu descontentamento diretamente ao trono. Nesse processo, o corpo de oficiais tornou-se um ator ainda mais poderoso no palco nacional. O Clube Militar patrocinou a infrutífera campanha de Deodoro para o senado imperial, e seus membros participaram das constantes discussões políticas nos restaurantes, alfaiatarias e bordéis, também situados na então badalada rua do Ouvidor, Rio de Janeiro. De fato, mas não segundo um plano definido, gradualmente a oficialidade distanciou-se emocional e politicamente das instituições básicas do Império. A postura com respeito à escravidão separou os oficiais dos mais obstinados membros da oligarquia agrária e escravocrata. Houve também um afastamento em direção a uma postura mais secular. De 1881 até a formação do Clube Militar, o principal meio de reunião e organização dos oficiais fora a Irmandade de Santa Cruz dos Militares, que se congregava na igreja de mesmo nome, na rua Primeiro de Março. Mas o passo mais decisivo seria cortar os laços da lealdade do Exército ao imperador, o que, por requerer a violação de juramentos, era assunto grave para uma organização militar na qual vidas dependiam do cumprimento da palavra. O estado de espírito de Deodoro, como o de muitos oficiais, parece ter sido afetado pelo fato de o ministério descumprir as determinações do imperador, em novembro de 1888, para que se implementasse a decisão do Conselho Superior de Justiça Militar de limpar a ficha dos oficiais que haviam sido punidos por manifestar com franqueza suas opiniões. Deodoro escreveu duas vezes ao imperador pedindo-lhe que forçasse o ministério a agir; caso contrário, disse ele, os oficiais veriam o contínuo descumprimento como aprovação aos "insultos" ao orgulho, honra e dignidade do Exército. "A obediência do soldado não vai até o próprio aviltamento", escreveu Deodoro; "o soldado é obediente, mas não servil; e àquele a quem não repugnaram atos de baixeza e servilismo não é digno da farda que veste, farda que é a mesma que V. M. Imperial honra trazendo-a." Em vez de receber uma resposta do imperador, Deodoro foi demitido do posto de quartel-mestre-general, o segundo na hierarquia do Exército. Tornou a escrever, agora em tom mais contundente, a Sua Majestade Imperial: "Atendei, senhor! O que os militares pedem é tão justo e é tão pouco [...] a coisa [é] [...] grave. [...] A coisa é muito séria, Senhor! [...] Vosso ministério vos atraiçoa - pelo menos nesta causa!". Ele ameaçou renunciar à farda caso sua petição fosse negada. O ministro da Guerra queria reformá-lo, mas o imperador recusou, e por isso quem renunciou foi o ministro, cujo substituto ordenou que as fichas fossem limpas, mediante petição dos oficiais envolvidos. Mas, em vez de a crise arrefecer, os oficiais recusaram-se a fazer a petição. Isso não seria admitir que haviam errado? Os ânimos tornaram a inflamar-se. O governo proibiu os oficiais de usar as linhas telegráficas, para impedir que os oficiais nas províncias expressassem solidariedade com seus colegas ultrajados no Rio. José Antônio Corrêa da Câmara, marechal honorário do Exército e visconde de Pelotas, escreveu a Deodoro: "não podemos mais parar sem que seja resolvida honrosamente a questão; porque isso importaria em recuar, trazendo como conseqüência o nosso aniquilamento moral". Como essa atitude era generalizada no corpo de oficiais, evidencia-se que ali estava um grupo de homens que se sentiam perseguidos, ameaçados e acuados. Muitos oficiais queixavam-se de que os civis, especialmente os "casacas", nome pejorativo com que designavam os políticos, muitos dos quais eram bacharéis em direito, não entendiam de assuntos militares e eram dados a vender a pátria. Essa ignorância dos civis deve ter sido frustrante, mas justificava derrubar o governo? Heitor Lyra, em seu magistral estudo da queda do Império, observou que os oficiais normalmente eram tão ignorantes dos assuntos civis quanto os civis dos assuntos militares, e que as disputas entre os dois grupos nunca giravam em torno de questões estritamente militares. "Esses desentendidos só apareciam quando era o contrário que se dava, isto é, quando o oficial saía dos limites de sua profissão e se introduzia na vida civil do País", afirmou Lyra. Era como se os oficiais acreditassem que a força lhes dava o direito, que sua vontade devia prevalecer sobre a autoridade civil, e não o inverso. Lyra ressaltou que, usando as armas que a nação lhes confiara, eles se justificavam alegando estar defendendo a honra de sua classe, a qual identificavam com a honra da pátria. Para Lyra, a definição de honra dos oficiais era vaga e demasiado elástica. Teoricamente, e pensando em bases internacionais, pode-se dizer que a identidade individual e os sentimentos de auto-estima e satisfação de um soldado estão vinculados a seu senso de participação e integração em uma identidade coletiva maior. Um senso de honra compartilhado serve de ligação entre o soldado individual e a identidade coletiva ou corporativa. A formação da identidade pessoal ocorre por meio da socialização, que envolve uma contínua revisão da auto-imagem do indivíduo. O treinamento do Exército visa a transformar um civil de mentalidade independente em um soldado disciplinado cuja auto-estima provém da fusão de sua individualidade com os objetivos coletivos e as exigências de sua unidade. Honra, dever, país e disciplina são lemas do vocabulário militar no mundo todo. O Exército czarista russo nas décadas de 1880 e 1890 mantinha tribunais de honra regimentares que determinavam como os oficiais ofendidos deveriam responder a insultos. Na Rússia "a defesa da honra era característica fundamental da identidade coletiva do corpo de oficiais. Um insulto à pessoa do oficial, a seu regimento, ao Exército como um todo ou ao czar requeria resposta instantânea". Duelos de honra eram comuns em muitas sociedades do século XIX. Nos Estados Unidos o mais famoso desses duelos foi entre Aaron Burr e Alexander Hamilton, dois ex-oficiais. Os oficiais do Exército americano duelavam apesar de existir regulamento proibindo o ato desde o início daquele século; até mesmo o general Winfield Scott, que redigiu o regulamento, desafiava para duelos. No Exército americano, a honra estava ligada ao cumprimento adequado do dever, que consistia em executar ordens lícitas. Evidentemente, o Exército americano possuía seus problemas específicos de honra e obediência, como demonstrado pela divisão em forças opostas na Guerra de Secessão; mas, de modo geral, a obediência era considerada honrosa, e as transgressões eram punidas. No Brasil, a obediência era complicada pela longa e disseminada existência da escravidão. Um homem não podia ser totalmente submisso a outro sem sofrer perda de status ou dano a seu ego, a menos que o outro inquestionavelmente gozasse de status superior. A obediência nessa sociedade e nas Forças Armadas era mais complexa do que a idéia de simplesmente cumprir a obrigação auto-assumida de executar ou acatar uma decisão consensual. No Brasil, obediência significava submeter-se à vontade de outro, aceitar um status inferior, o que era indesejável. É preciso compreender também as noções díspares de igualdade. Nas Forças Armadas norte-americanas, a igualdade só era possível entre oficiais de patente e tempo de serviço iguais; entre seus pares é que eles podiam ser comparados e diferir, não se parecer com ninguém mais dentre os de sua categoria. Evidentemente, os limites externos de diferença e conformidade eram sabidos de todos e estabelecidos pela experiência dos oficiais na academia. Na sociedade brasileira, a igualdade, segundo Roberto Kant de Lima, implicava uma "similaridade de status, [...] [e] uma assumida semelhança de perspectiva acerca da ordem estabelecida, estipulada não pela opinião individual, mas pela perspectiva obrigatória resultante da mesma posição social na hierarquia". Essas definições divergentes afetaram o modo como o comando foi exercido nos dois exércitos; o consenso era mais importante no sistema brasileiro, onde um oficial não podia dar-se ao luxo de ser demasiado independente ou diferente da norma. A vida militar relativamente fechada e os efetivos pouco numerosos favoreciam a endogamia social da oficialidade e ajudavam a preservar e intensificar essas atitudes e comportamentos. A República nasceu de uma contradição. Como um ato ilegal, de traição, pôde criar uma ordem política legal e segura? O artigo 15 dos artigos de guerra do Exército determinava o enforcamento como punição por motim ou traição e inclusive por ter conhecimento de tais atos e não os impedir. Portanto, os oficiais e praças que participaram dos acontecimentos de 15 de novembro de 1889 haviam decidido transgredir a lei que governava suas vidas. Muitos testemunhos indicam que a intenção inicial, sem dúvida a de Deodoro da Fonseca, era substituir o gabinete imperial em exercício, mas, antes de encerrar-se o dia, Deodoro foi manipulado para que proclamasse a República. O relato usual afirma que ele vacilou até o último instante. E os historiadores gostam de citar declarações como a de uma carta de setembro de 1888 a um sobrinho que então cursava a escola militar no Rio Grande do Sul, advertindo-o de que devia manter-se longe das questões republicanas porque "República no Brasil é desgraça completa - é a mesma coisa": os brasileiros careciam da educação e do respeito para fazê-la funcionar. Essa interpretação retrata Deodoro derrubando uma monarquia à qual devotara sua vida, para dar ao Brasil uma forma de governo na qual ele não punha fé. Essa linha de raciocínio situa uma questão de importância fundamental na esfera de um capricho. Algo profundo deve ter motivado Deodoro e os oficiais conspiradores a pôr de lado seus juramentos solenes de defender o imperador e o Império. Todo oficial jurara, sobre o Novo Testamento: "Como bom e leal súdito a Sua Majestade Imperial, obedecerei, com a mais exata prontidão e respeito, aos Artigos de Guerra, Regulamento e Ordenanças Militares, e a todas as ordens dos meus superiores concernentes ao Imperial serviço [...] até derramar todo o meu sangue em sua defesa, [e em defesa] da Independência do Império, do sistema Constitucional nele adotado e da Dinastia Imperial". Obviamente, uma frase parecia fornecer uma ressalva conveniente: o juramento aplicava-se a "quanto me for possível". Faltando com sua palavra de honra, os oficiais estavam pondo a si mesmos acima da lei, reivindicando um status especial que lhes conferia uma ligação supragovernamental com a pátria. Para estabelecer uma nova ordem, a ordem antiga teve de ser traída, mas nesse processo a nova nasceu com a mancha da traição. Por outro lado, analisando a situação com mais sensibilidade para o aspecto cultural, talvez os oficiais houvessem adquirido uma nova perspectiva comum sobre o modo como a pátria devia ser ordenada. Segundo essa nova perspectiva, as velhas regras haviam deixado de funcionar. A lei e a necessidade de obediência não tinham mais validade; não obrigavam mais à obediência. Naquela manhã de novembro, quando a tropa marchou pelo Rio de Janeiro até o quartel-general defronte ao Campo de Santana, Deodoro pode ter considerado intacto seu juramento, pois seu objetivo era substituir o gabinete, o que, embora constituísse violação dos artigos de guerra, era, de certa forma, um crime menos grave que transgredir as partes do juramento relacionadas ao imperador e à dinastia. Mas, independentemente de sua intenção envolver violações menores ou maiores, todas implicavam a pena de morte. Na prática, o Exército estava subordinado ao gabinete civil, e não ao imperador, que mantinha certo distanciamento da gestão cotidiana do governo. Confrontando o gabinete no quartel-general do Exército, Deodoro anunciara que seus membros estavam depostos e que os nomes para o novo gabinete seriam submetidos ao imperador. Naquele momento, suas intenções pareciam ser limitadas, mesmo que tecnicamente constituíssem insubordinação. Embora grandes forças estruturais estivessem atuando nessa mudança de sistema, os participantes eram pessoas reais movidas por emoções e sentimentos que moldaram suas ações e, assim, os destinos do país. Nas primeiras horas de 15 de novembro, Deodoro recusara-se a ir ao palácio de verão em Petrópolis para falar com o imperador receando perder o autodomínio e a determinação. À tarde, no Rio, em meio a apressadas discussões entre, de um lado, os conspiradores, e, de outro, o imperador e os monarquistas, d. Pedro II deu a entender que convidaria o senador Gaspar da Silveira Martins, arquiinimigo de Deodoro, para formar um novo gabinete. Os republicanos, que vinham pressionando o enfermo, exausto e agora ofendido general durante horas, disseram a Deodoro que derrubar o Império era o único modo de impedir que seu inimigo assumisse o poder. Assim, num assomo de irritação, Deodoro, um monarquista, destinou o Império ao esquecimento e fez do Brasil uma República. Neste primeiro capítulo examino o Exército de 1889, a comoção da década de 1890 e o desastre de Canudos. Mostro que, em vez de passar por uma transição pacífica de monarquia a república, o Brasil atravessou uma década de sofrimento e carnificina que contribuiu para a formação da conservadora República Velha, restringiu as reformas políticas e sociais subseqüentes e manteve o papel repressivo do Exército.