Trecho do livro O ANO DE 1993

1 As pessoas estão sentadas numa paisagem de Dalí com as sombras muito recortadas por causa de um sol que diremos parado Quando o sol se move como acontece fora das pinturas a nitidez é menor e a luz sabe muito menos o seu lugar Não importa que Dalí tivesse sido tão mau pintor se pintou a imagem necessária para os dias de 1993 Este dia em que as pessoas estão sentadas na paisagem entre dois prumos de madeira que foram uma porta sem paredes para cima e para os lados Não há portanto casa nem sequer a porta que poderia não abrir precisamente por não haver para onde abrir Apenas o vazio da porta e não a porta E as pessoas não se sabe quantas não foram contadas devem ser ao menos duas porque conversam levantam as golas dos casacos para se defenderem do frio E dizem que o inverno do ano passado foi muito mais doce ou suave ou benigno embora a palavra seja antiga em 1993 Enquanto falam e dizem coisas importantes como esta Uma das pessoas vai riscando no chão uns traços enigmáticos que tanto podem ser um retrato como uma declaração de amor ou a palavra que faltasse inventar Vê-se agora que o sol afinal não estava parado e portanto a paisagem é muito menos daliniana do que ficou dito na primeira linha E uma sombra estreita e comprida que é talvez de uma pedra aguda espetada no chão ou de um prumo distante de porta que já perdeu companhia e por isso não atrai as pessoas Uma sombra estreita e comprida toca no dedo que risca a poeira do chão e começa a devorá-lo Devagar passando aos ossos do metacarpo e depois subindo pelo braço devorando Enquanto algumas pessoas continuam a conversar E esta se cala porque tudo isto acontece sem dor e enquanto a noite desce