Trecho do livro VÍCIOS PRIVADOS, BENEFÍCIOS PÚBLICOS?

Introdução A PERSPECTIVA ÉTICA A ética lida com aquilo que pode ser diferente do que é. O terremoto que aniquila uma comunidade ou a leucemia que destrói a vida de um jovem provocam em nós um sentimento íntimo de revolta, mas não se prestam à condenação moral. São eventos naturais, determinados por mecanismos causais inerentes ao mundo físico e que independem por completo da vontade e escolha humanas. Podemos, é claro, evitar a construção de cidades em áreas de risco e buscar a cura da leucemia; ou aceitar estoicamente os fatos; ou rezar. Mas seria absurdo supor que eventos como estes possam ser diferentes do que são. Completamente distinta é a nossa reação diante do bombardeio aéreo de civis ou de um atropelamento na porta de uma escola. Ao sentimento de revolta junta-se aqui a desaprovação moral - o juízo ético e a atribuição de responsabilidade (dolosa ou culposa) aos causadores do mal. Fazemos isso porque acreditamos estar diante de eventos que, de alguma forma, poderiam perfeitamente não ter ocorrido. Em contraste com a ótica estritamente científica dos fenômenos, dentro da qual "apenas o que acontece é possível", o ponto de vista moral abre uma brecha para a possibilidade de que o mundo como ele é esteja aquém do mundo como ele pode e deve ser. A abordagem ética parte da crença na existência de uma fissura - alguns diriam abismo - separando a realidade humana do potencial humano. Dentro dessa perspectiva, a importância do conhecimento científico dos fatos e de suas inter-relações causais não deve ser subestimada. Parafraseando a fórmula kantiana, pode-se afirmar que "a ética desligada da ciência é vazia; a ciência desligada da ética é cega". A abordagem ética conseqüente requer, antes de mais nada, uma apreciação objetiva da realidade como ela é, por mais que isso fira nossas preferências subjetivas ou opiniões políticas. Além disso, há o problema da exeqüibilidade. Muitas vezes sabemos onde estamos (a) e também para onde desejamos ir (c). Mas mesmo supondo que (a) e (c) sejam isoladamente factíveis, nada garante de antemão que exista uma trajetória (b) exeqüível ligando (a) e (c). A utopia pode estar não na crença em (c), mas na suposição de que (b) existe. A arte da travessia requer uma delimitação realista do domínio do exeqüível. A ciência positiva é, portanto, um insumo valioso para a reflexão ética. Mas seria um grave erro acreditar que ela pode responder sozinha pelo produto final. Uma das conquistas mais importantes da filosofia moderna é a tese de que nenhuma quantidade de conhecimento sobre o mundo como ele é pode nos permitir, por si só, dar o passo seguinte e fazer afirmações sobre o mundo como ele deve ser. Ao passarmos do que é dado para o que está errado, ou do que existe para o que é desejável, estamos também introduzindo um juízo de valor - uma consideração de natureza ética - em nosso raciocínio. E por mais que avance o conhecimento objetivo - por mais que se aprenda sobre os fenômenos, leis e regularidades do universo - a ciência positiva nunca poderá dar esse passo por nós. Qualquer ato de escolha, por mais simples que seja, ultrapassa a esfera de competência do pensamento científico. Acreditar que os problemas sociais básicos do homem sejam passíveis de solução através dos métodos usados pela ciência e tecnologia modernas para manipular objetos naturais é incorrer na falácia do cientificismo. Como observou com propriedade o economista norte-americano Frank Knight, um dos pais da escola de Chicago, os problemas básicos [da sociedade moderna] são problemas de valor, em relação aos quais as ciências naturais têm pouca relevância; para começar, o conhecimento científico confere poder, mas tem pouco a dizer sobre os fins para os quais esse poder poderá ser utilizado. Na mesma direção já apontava a conclusão do filósofo austríaco Wittgenstein: "mesmo que todas as questões científicas possíveis sejam respondidas, os problemas da vida ainda não terão sido sequer tocados". Falar em ética é falar em escolha individual. E falar em escolha humana é falar na nossa inescapável falibilidade no pensar e agir. Ética, liberdade de escolha e falibilidade são conceitos ligados entre si de modo inextrincável. Negar qualquer um deles é privar os dois outros de chão. Um breve experimento mental ajuda a entender por quê. O biólogo inglês Thomas Huxley propõe uma barganha faustiana visando à conquista da infalibilidade cognitiva e moral. Com perceptível convicção, ele fecha um negócio no mínimo duvidoso: Eu declaro que se algum grande Poder concordasse em me fazer sempre pensar o que é verdadeiro e fazer o que é moralmente certo, sob a condição de ser reduzido a alguma espécie de relógio que recebe corda todas as manhãs ao sair da cama, eu aceitaria a proposta sem pestanejar. A única liberdade que me importa é a liberdade de fazer o que é certo; a liberdade de fazer o que é errado eu estou pronto a dispensar, nos termos mais baratos, para qualquer um que a levasse de mim. Entre a liberdade falível e o automatismo infalível, Huxley opta pelo segundo. Mas tanto a escolha em si quanto o argumento que a justifica são altamente questionáveis. A justificação oferecida incorre em peculiar contradição semântica. O conceito de liberdade pressupõe a existência de alternativas. Se as alternativas são a princípio duas, acertar ou errar, e eu descarto de antemão a possibilidade de ocorrência da segunda, então não há mais alternativa e logo não há mais por que falar em escolha livre. A questão é que não é possível afirmar a liberdade de apenas e tão-somente acertar. A liberdade monopolizada pelo acerto perdeu o seu atributo definidor, que é a possibilidade genuína de errar. A opção de Huxley, por sua vez, choca-se frontalmente com qualquer perspectiva ética dos assuntos humanos. Sacrificar, como ele faz, a escolha individual no altar da perfeição infalível é escolher um mundo onde a experiência moral perdeu o sentido. Significa entregar-se - e com estranha tranqüilidade e confiança - ao niilismo de um mundo habitado por máquinas sujeitas a um "grande Poder". Errar e descobrir errando são privilégios que a maioria dos homens prefere preservar. E se Huxley (o falível) errou na opção que fez? Haverá volta atrás da condição de autômato do bem? Considere-se, por exemplo, como contraponto da posição de Huxley, a opção adotada pelo filósofo iluminista e dramaturgo alemão, Gotthold Lessing, diante de uma proposta análoga: Se Deus segurasse em Sua mão direita toda verdade, e em Sua mão esquerda a perene busca pela verdade, embora com a condição de que eu deva para sempre errar, e me dissesse "Escolha", humildemente eu escolheria a mão esquerda e diria: "Dai-me, Senhor! A verdade pura é para Vós somente!". Entre a verdade final e a busca da verdade, Lessing opta pela segunda. E justifica a escolha sugerindo que o saber perfeito e acabado - a posse da "verdade pura", seja lá o que possa ser isso - não é compatível com a condição humana. O homem é um ser falível, condenado ao erro. Mas é também um ser que busca e que não abre mão de buscar. Um ser que transforma sua imperfeição e fraqueza em algo valioso. Nessa perspectiva, o valor supremo é a autonomia. Autonomia que se expressa em atividades de busca perene como a ciência, a arte e a reflexão moral. A mão direita representa o término da jornada: o fim do erro, é certo, mas também da busca e da liberdade de escolha. Ao optar pela mão esquerda, Lessing diz sim à condição humana e prenuncia a fórmula nietzschiana: "Nós não nos deixaríamos queimar por nossas opiniões: não estamos tão seguros delas. Mas, talvez, por podermos ter nossas opiniões e podermos mudá-las". No campo da economia normativa e da filosofia política, existem diversas estratégias alternativas de argumentação visando justificar racionalmente as noções de que uma dada sociedade: 1) não vive à altura de sua plena ou melhor capacidade ("hiato"); e 2) é capaz de atingir por si mesma, mediante procedimentos logicamente consistentes e exeqüíveis, uma situação mais próxima do desejável ("receita"). Alguns autores, como por exemplo os fisiocratas franceses e os neoliberais austríacos, atribuem basicamente a existência do hiato à disseminação e persistência de "erros intelectuais" que podem ser corrigidos mediante o debate e a persuasão. Outra vertente, diferente da primeira, acentua as "falhas sistêmicas" na base da organização econômica da sociedade e identifica receitas mais ou menos radicais para eliminá-las. Os marxistas, por exemplo, acreditavam que somente a abolição da propriedade privada dos meios de produção permitiria criar uma sociedade sem exploração. Os keynesianos, por sua vez, apontam para outro tipo de "falha sistêmica" na base da economia capitalista e propõem o uso da política fiscal e monetária para sustentar a demanda agregada e garantir o pleno emprego. Uma terceira estratégia, desenvolvida pelos adeptos da teoria da "escolha pública", busca explicar o hiato como resultado do "conflito de interesses" no processo decisório democrático ou, mais especificamente, do predomínio de interesses particulares na definição de políticas públicas. Mas embora todas essas estratégias adotem implicitamente a perspectiva ética, ou seja, a suposição de um intervalo perfeitamente remediável entre o que é e o que deve ser, nenhuma delas atribui a fatores de ordem moral uma relevância maior no diagnóstico do hiato ou na receita adequada para sua redução. No caso dos "erros intelectuais", é certo, encontramos processos mentais em cena, mas são claramente desvios de ordem cognitiva - em vez de fatores éticos - que funcionam como variável explicativa do hiato. Os descaminhos da sociedade moderna são atribuídos ao predomínio de "superstições", "idéias falsas", "preconceitos", em suma, um punhado de crenças errôneas que foram promulgadas por intelectuais equivocados e que teriam passado a exercer uma tirania secreta sobre o pensamento dos líderes de opinião e homens práticos. Da mesma forma, na tese das "falhas sistêmicas" e do "conflito de interesses" o objeto da crítica jamais tem a ver com a ética e a conduta individual. O alvo é o sistema como um todo ou certas instituições impessoais. Em ambos os casos, o pressuposto comportamental adotado é o de que os indivíduos sempre reagem às restrições e oportunidades com que se deparam de modo racional, auto-interessado, previsível e imutável. A primeira questão que surge aqui é: até que ponto justifica-se (ou não) tal exclusão da ética na análise do hiato e na prescrição da receita adequada? Claramente, trata-se de uma pergunta vasta e que está longe de admitir uma resposta unívoca e definitiva, cabendo apenas, no caso, pesar os prós e contras de cada opção. Sem a pretensão de abordar exaustivamente o tema, vale observar que permanece grande a incerteza entre os pesquisadores sobre como exatamente se poderia incorporar, de forma rigorosa, variáveis éticas na análise e modelagem econômica. Por outro lado, contudo, a julgar pela literatura mais recente sobre o assunto, verifica-se que existe hoje um questionamento crescente da separação que se instaurou, principalmente nas últimas décadas, entre ética e teoria econômica. O foco da crítica é a tendência a se abstrair e ignorar por completo as variações comportamentais do homem, graças à confortável e simplificadora hipótese segundo a qual "cada indivíduo é eternamente um maximizador de utilidade, no seu lar, no seu escritório (público ou privado), na sua igreja, no seu trabalho científico, em suma, seja lá onde for". Obviamente, é bem mais fácil criticar e demolir aquilo que nos parece inadequado do que desenvolver abordagens alternativas e construtivas. Afinal, se é verdade que a variabilidade do comportamento humano na vida prática em diferentes sociedades (ou numa sociedade ao longo do tempo) é um fato prima facie inelutável, como introduzir a ética na análise econômica? Resgatar e examinar criticamente as tentativas de responder a essa questão estão entre os principais objetivos deste livro. Conforme veremos a seguir, a história das idéias revela a existência de pelo menos três importantes correntes de pensamento filosófico e econômico nas quais a explicação do hiato - da distância entre o que somos e o que aspiramos a ser - é atribuída a fatores predominantemente morais e ligados à conduta individual. A primeira delas, examinada (e rejeitada) no capítulo 1, é a tese do "neolítico moral" - a noção de que os problemas da humanidade têm origem na existência de uma grande disparidade entre, de um lado, o progresso científico, tecnológico e econômico, e, de outro, a nossa falta de desenvolvimento ético. A segunda, discutida no capítulo 2, enfatiza a importância da moralidade cívica como fator de sobrevivência comunitária e do grau de coesão social. O capítulo 3 dá seqüência a esse argumento, mas abordando agora os limites da autoridade política e da moralidade cívica enquanto princípios de organização da vida comunitária e econômica em sociedades complexas. Finalmente, nos capítulos 4 e 5 discute-se a terceira corrente de explicação ética do hiato - a que busca mostrar o papel da moral no funcionamento normal do sistema econômico e como variável explicativa do desempenho das economias nacionais. Enquanto a tese do neolítico moral, apresentada e questionada no capítulo 1, é essencialmente negativa e enfatiza a ética que falta, o argumento dos capítulos 2 a 5 - a ética como fator de coesão social e como fator de produção - busca trazer à luz e analisar a ética que conta e faz diferença. O argumento central do trabalho, desenvolvido principalmente nos dois últimos capítulos do livro, pode ser resumido em duas proposições básicas: 1) as regras do jogo e a qualidade dos jogadores são os dois elementos essenciais de qualquer sistema econômico; e 2) a qualidade dos jogadores - as variações de motivação e conduta na ação individual - afeta a natureza das regras do jogo e exerce, juntamente com elas, um papel decisivo no desempenho da economia. Se 1) e 2) podem ser aceitas, então a tese que se tornou dominante na teoria econômica do pós-guerra - a noção de que o auto-interesse dentro da lei basta, e as regras do jogo do mercado significam "férias morais" para os jogadores - deve ser rejeitada. A "mão invisível" smithiana continua de pé. Mas a base comportamental adequada para que ela possa funcionar a contento precisa ser mais bem compreendida. Sai o paradoxo do egoísmo ético - "vícios privados, benefícios públicos" - e volta o senso comum: virtudes privadas, benefícios públicos.