Trecho do livro GLOBALIZAÇÃO, DEMOCRACIA E TERRORISMO

Prefácio O século XX foi a era mais extraordinária da história da humanidade, combinando catástrofes humanas de dimensões inéditas, conquistas materiais substanciais e um aumento sem precedentes da nossa capacidade de transformar e talvez destruir o planeta - e até de penetrar no espaço exterior. Qual é a melhor maneira de refletir sobre essa "era dos extremos" e imaginar as perspectivas da nova era que surge a partir da antiga? Esta coleção de ensaios é a tentativa de um historiador de examinar, analisar e compreender a situação do mundo no início do terceiro milênio e alguns dos principais problemas políticos que nos confrontam hoje. Eles suplementam e atualizam o que escrevi em publicações anteriores, sobretudo a minha história do "breve século XX", Era dos extremos, a entrevista sobre O novo século com o jornalista italiano Antonio Polito e Nações e nacionalismo desde 1780. Essas tentativas são necessárias. Qual é a contribuição dos historiadores para tal tarefa? Sua função principal, além de relembrar o que outros esqueceram ou querem esquecer, é tomar distância, tanto quanto possível, dos registros da época contemporânea e vê-los em um contexto mais amplo e com uma perspectiva mais longa. Nesta coleção de estudos, mais que nada sobre temas políticos, escolhi focalizar cinco conjuntos de questões que hoje requerem um pensamento claro e bem informado: a questão genérica da guerra e da paz no século XXI, o passado e o futuro dos impérios globais, a natureza e o contexto cambiante do nacionalismo, o futuro da democracia liberal e a questão da violência política e do terror. Todas elas têm lugar em um cenário mundial dominado por dois desenvolvimentos correlatos: a aceleração enorme e contínua da capacidade da espécie humana de modificar o planeta por meio da tecnologia e da atividade econômica e a globalização. O primeiro deles, infelizmente, não produziu até aqui um impacto significativo sobre os que tomam as decisões políticas. A maximização do crescimento econômico continua a ser o objetivo dos governos, e não existe ainda uma perspectiva realista para que se dêem passos efetivos que nos permitam enfrentar a crise do aquecimento global. Por outro lado, desde a década de 1960, o avanço acelerado da globalização - ou seja, o mundo visto como um conjunto único de atividades interconectadas que não são estorvadas pelas fronteiras locais - provocou um profundo impacto político e cultural, sobretudo na sua forma atualmente dominante de um mercado global livre e sem controles. Estes ensaios não discutem esse ponto especificamente, sobretudo porque a política é o principal campo da atividade humana que praticamente não foi afetado pela globalização. Tratando de realizar a duvidosa tarefa de quantificá-la, o Índice de Globalização KOF (2007), da Suíça, não teve dificuldades em encontrar indicadores de fluxos econômicos e de informação, contatos pessoais ou difusão cultural (como o número de lanchonetes McDonald's e de lojas da rede de móveis IKEA por habitante), mas não conseguiu nenhuma medida melhor para a "globalização política" do que o número de embaixadas em determinado país e sua participação em organismos internacionais e em missões do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Uma discussão ampla sobre a globalização está fora do escopo deste livro. Contudo, três observações de ordem geral a respeito dela são particularmente pertinentes para os temas aqui cobertos. Primeiro, a globalização acompanhada de mercados livres, atualmente tão em voga, trouxe consigo uma dramática acentuação das desigualdades econômicas e sociais no interior das nações e entre elas. Não há indícios de que essa polarização não esteja prosseguindo dentro dos países, apesar de uma diminuição geral da pobreza extrema. Este surto de desigualdade, especialmente em condições de extrema instabilidade econômica como as que se criaram com os mercados livres globais na década de 1990, está na base das importantes tensões sociais e políticas do novo século. Na medida em que as desigualdades internacionais podem também estar sofrendo pressões decorrentes da ascensão das novas economias asiáticas, tanto a ameaça aos níveis de vida relativamente astronômicos dos povos do velho Norte quanto a impossibilidade prática de alcançar algo parecido para as vastas populações de países como a Índia e a China produzirão suas próprias tensões internas e internacionais. Segundo, o impacto dessa globalização é mais sensível para os que menos se beneficiam dela. Daí provém a crescente polarização de pontos de vista a seu respeito, entre os que estão potencialmente protegidos contra seus efeitos negativos - os empresários, que podem reduzir seus custos utilizando mão-de-obra barata de outros países, os profissionais da alta tecnologia e os formados em cursos de educação superior, que podem conseguir trabalho em qualquer economia de mercado de alta renda - e os que não estão. É por isso que, para a maior parte daqueles que vivem dos salários provenientes dos seus empregos nos velhos "países desenvolvidos", o começo do século XXI oferece um quadro sombrio, para não dizer sinistro. O mercado livre global afetou a capacidade de seus países e sistemas de bem-estar social para proteger seu estilo de vida. Em uma economia global, eles competem com homens e mulheres de outros países que têm as mesmas qualificações, mas recebem apenas uma fração dos salários vigentes no Ocidente e sofrem nos seus próprios países as pressões trazidas pela globalização do que Marx chamava "o exército de reserva dos trabalhadores", representado pelos imigrantes que chegam das aldeias das grandes zonas globais de pobreza. Situações desse tipo não antecipam uma era de estabilidade política e social. Terceiro, embora a escala real da globalização permaneça modesta, talvez com a exceção de alguns países em geral pequenos e sobretudo na Europa, seu impacto político e cultural é desproporcionalmente grande. Assim, a imigração é um problema político substancial na maior parte das economias desenvolvidas do Ocidente, ainda que a proporção dos seres humanos que vivem em países diferentes daqueles em que nasceram seja de apenas 3%. No KOF de globalização econômica de 2007, os Estados Unidos estão em 39o. lugar, a Alemanha em 40o., a China em 55o., o Brasil em 60o., a Coréia do Sul em 62o., o Japão em 67o. e a Índia em 105o. lugar, embora todos, menos o Brasil, ocupem lugares algo mais altos na escala de "globalização social" (o Reino Unido é a única grande economia que está entre as dez primeiras tanto na globalização econômica quanto na social). Conquanto, do ponto de vista histórico, esse fenômeno possa ser temporário ou não, a curto prazo esse impacto desproporcionalmente grande pode bem ter sérias conseqüências políticas nacionais e internacionais. Minha opinião é a de que, de um modo ou de outro, a resistência política, embora provavelmente não logre fazer reviver práticas protecionistas formais, tenderá a desacelerar o progresso da globalização dos mercados livres nos próximos dez ou vinte anos. Espero que os capítulos sobre guerra e hegemonia, impérios e imperialismo, o estado atual do nacionalismo e as transformações da violência pública e do terrorismo façam sentido para o leitor sem a necessidade de comentários adicionais do autor. O mesmo espero dos dois capítulos sobre democracia, embora o autor tenha consciência de que tentar demonstrar que uma das maiores vacas sagradas do discurso político vulgar do Ocidente produz menos leite do que em geral se presume é algo altamente controverso. No discurso público ocidental de hoje falam-se mais bobagens e absurdos sobre a democracia, e especificamente sobre as qualidades milagrosas atribuídas aos governos eleitos por maiorias aritméticas de votantes que escolhem entre diferentes partidos, do que, praticamente, sobre qualquer outra palavra ou conceito político. Na retórica recente dos Estados Unidos, a palavra perdeu todo contato com a realidade. Meus capítulos são uma pequena contribuição à necessária tarefa de esfriar os ânimos por meio do uso da razão e do bom senso, conservando, ao mesmo tempo, o compromisso firme de um governo para o povo - todo o povo, ricos e pobres, estúpidos e inteligentes, informados e ignorantes -, mediante consulta a ele e com seu consentimento. Os artigos aqui reunidos, sobretudo a partir de conferências diante de platéias variadas, tentam enquadrar e explicar a situação em que o mundo, ou grande parte dele, se encontra hoje. Pode ser que eles ajudem a definir os problemas que nos confrontam no começo do novo século, mas não propõem programas ou soluções práticas. Eles foram escritos entre 2000 e 2006 e refletem, portanto, as preocupações internacionais específicas desse período, que foi dominado pela decisão tomada pelo governo dos Estados Unidos em 2001 de afirmar uma hegemonia unilateral sobre o mundo, condenando convenções internacionais até então aceitas, reservando-se o direito de fazer guerras de agressão ou outras operações militares sempre que o desejasse e levando-as à prática. Dada a derrocada da Guerra do Iraque, já não é necessário demonstrar que esse projeto era irrealista e a questão de saber se teríamos desejado seu êxito não é, portanto, totalmente acadêmica. Não obstante, deve estar claro, e os leitores precisam ter atenção para isso, que meus ensaios foram escritos por um autor que tem críticas profundas a esse projeto. Isso se deve em parte à força e à indestrutibilidade das minhas convicções políticas, que incluem a hostilidade ao imperialismo, seja o das grandes potências que afirmam estar fazendo um favor às suas vítimas ao conquistá-las, seja o do homem branco que pressupõe, para si próprio e para os arranjos que faz, uma superioridade automática sobre as pessoas cuja pele tem outra cor. Deve-se também a uma suspeita racionalmente justificável contra a megalomania, que é a doença ocupacional dos países e dos governantes que crêem que seu poder e seu êxito não têm limites. A maior parte dos argumentos e mentiras que justificaram as ações tomadas pelos Estados Unidos desde 2001, usados por políticos, advogados remunerados ou não, articulistas, propagandistas, lobistas e ideólogos amadores, americanos e britânicos, já não precisa tomar nosso tempo. Contudo, fez-se também uma defesa, menos desabonadora, não tanto da Guerra do Iraque, e sim da proposição genérica da legitimidade e da eventual necessidade de intervenções armadas internacionais para preservar ou impor os direitos humanos em uma era de crescente barbárie, violência e desordem. Para alguns, isso implica a desejabilidade de uma hegemonia imperial mundial especificamente exercida pela única potência capaz de estabelecê-la, os Estados Unidos. Essa proposição, que pode ser chamada de imperialismo dos direitos humanos, passou a fazer parte do debate público no transcurso dos conflitos balcânicos que derivaram da desintegração da Iugoslávia comunista, especialmente na Bósnia, os quais pareciam indicar que apenas o uso externo da força armada poderia pôr fim a um massacre mútuo e infindável e que somente os Estados Unidos tinham a capacidade e a vontade de usar tal força. O fato de que os americanos não tinham interesses particulares - históricos, políticos ou econômicos - na região tornou a intervenção mais vistosa e aparentemente desinteressada. Tomei a devida nota disso nos meus ensaios. Embora eles, especialmente o que se intitula "A disseminação da democracia", contenham razões para rejeitá-la, algumas observações adicionais a respeito dessa posição podem ser cabíveis. Ela é fundamentalmente errada porque as grandes potências que buscam implementar seus pontos de vista na política internacional podem fazer coisas que convêm aos defensores dos direitos humanos e têm consciência do valor publicitário de fazê-lo, mas isso não faz propriamente parte dos seus propósitos, os quais, quando elas julgam necessário, são perseguidos com a crueza e a barbárie que constituem a herança do século XX. A relação entre aqueles para quem uma grande causa da humanidade é essencial e as ações de qualquer Estado pode ser de aliança ou de oposição, mas nunca de identificação permanente. Mesmo os raros casos de jovens Estados revolucionários que buscam genuinamente difundir sua mensagem universal - a França depois de 1792, a Rússia depois de 1917, mas não os Estados Unidos isolacionistas de George Washington - têm duração curta. A posição típica de qualquer Estado é defender seus interesses. Ademais, a defesa da intervenção armada de caráter humanitário nos assuntos dos Estados baseia-se em três premissas: o surgimento de situações intoleráveis no mundo contemporâneo - normalmente o massacre ou o genocídio - que clamam por ela; a ausência de modos alternativos para tratá-las; e a presunção de que os ganhos a serem obtidos com a intervenção são claramente superiores aos seus custos. Todas essas premissas são por vezes justificáveis, embora, como o debate sobre o Iraque e o Irã comprova, seja rara a existência de acordo universal a respeito do que constitui precisamente uma "situação intolerável". Provavelmente houve consenso nos dois casos mais óbvios de intervenção justificada: a invasão do Kampuchea pelo Vietnã, que deu fim ao regime estarrecedor dos "campos da morte" de Pol Pot (1978), e a destruição do regime de terror de Idi Amin na Uganda, pela Tanzânia (1979). (Evidentemente, nem todas as intervenções armadas estrangeiras rápidas e bem-sucedidas em situação de crise local produziram resultados assim satisfatórios - para outros exemplos duvidosos, considere-se a Libéria e o Timor Leste.) Em ambos os casos, o êxito foi obtido por meio de incursões breves, que produziram efeitos positivos imediatos e provavelmente alguns melhoramentos duradouros, sem implicar o abandono sistemático do princípio consagrado da não-intervenção nos assuntos internos dos Estados soberanos. Na verdade, elas não tiveram implicações imperiais nem envolveram os níveis mais amplos da política internacional. Com efeito, tanto os Estados Unidos quanto a China continuaram a apoiar o deposto Pol Pot. Essas intervenções ad hoc não são relevantes para quem queira defender a desejabilidade de uma hegemonia mundial dos Estados Unidos. Não é esse o caso das intervenções armadas dos anos recentes, que foram, aliás, seletivas e não tocaram alguns dos casos de atrocidades mais cruéis, em termos humanitários, notadamente o genocídio na África central. Nos Bálcãs da década de 1990, as preocupações humanitárias foram decerto um fator significativo, mas não o único. Provavelmente, embora se tenha afirmado o oposto, a intervenção externa na Bósnia ajudou a terminar a carnificina antes do que teria ocorrido se se houvesse permitido o prosseguimento da guerra entre sérvios, croatas e bósnios muçulmanos até sua conclusão natural, mas a região permanece instável. Não está claro, de modo algum, se em 1999 a intervenção armada era o único caminho para resolver os problemas causados por uma rebelião contra a Sérvia por parte de um grupo minoritário extremista de nacionalistas albaneses no Kosovo nem, na verdade, se a verdadeira razão para o fim da intransigência sérvia foi a ameaça de invasão ou a ação da diplomacia russa. A base humanitária da intervenção era bem mais duvidosa do que na Bósnia, e a própria situação humanitária pode ter piorado, uma vez que a Sérvia se viu provocada a promover uma expulsão em massa de albaneses do Kosovo e em decorrência das baixas civis causadas pela própria guerra e dos meses de bombardeios destrutivos sofridos pelo país. As relações entre sérvios e albaneses tampouco se estabilizaram. Mas as intervenções nos Bálcãs pelo menos foram rápidas e decisivas a curto prazo, embora até aqui ninguém, além, talvez, da Croácia, tenha razões para sentir-se satisfeito com os resultados. Por outro lado, as guerras do Afeganistão e do Iraque, a partir de 2001, foram operações militares dos Estados Unidos que não se realizaram por razões humanitárias, embora tenham sido justificadas perante a opinião pública humanitária com base na destituição de regimes detestáveis. Mas, não fosse pelo Onze de Setembro, nem mesmo os Estados Unidos teriam considerado a situação em qualquer dos dois países como merecedora de uma invasão imediata. O Afeganistão era aceito por outros Estados com base em um "realismo" já um pouco antiquado; o Iraque, por sua vez, era condenado quase universalmente. Ainda que os regimes do Talibã e de Saddam Hussein tenham sido rapidamente derrubados, nenhuma das duas guerras levou à vitória, nem mesmo ao alcance dos objetivos anunciados inicialmente - o estabelecimento de regimes democráticos consentâneos com os valores ocidentais e um forte sinal para outras sociedades ainda não democratizadas da região. Ambas, mas sobretudo a catastrófica Guerra do Iraque, acabaram sendo longas, sangrentas, profundamente destrutivas e ainda prosseguem, ao tempo em que este texto está sendo escrito, sem perspectivas de conclusão. Em todos esses casos, a intervenção armada foi executada por países estrangeiros com poder militar e recursos francamente superiores. Em nenhum deles a intervenção gerou, até aqui, soluções estáveis. Em todos os países assinalados, a ocupação militar e a supervisão estrangeira prosseguem. No melhor dos casos - mas claramente não no Afeganistão e no Iraque -, a intervenção pôs fim a guerras sangrentas e produziu algum tipo de paz, porém os resultados positivos, como nos Bálcãs, foram desanimadores. No pior dos casos - o Iraque -, nenhuma pessoa séria pode negar que a situação do povo, cuja libertação foi a desculpa oficial para a guerra, está pior do que antes. A história recente das intervenções armadas nos assuntos de outros países, mesmo as das superpotências, não é uma história de êxito. Isso se deve, em parte, a uma premissa, que também está subjacente ao imperialismo dos direitos humanos, de que os regimes bárbaros e tiranos são imunes à mudança interna, de modo que apenas a força externa pode extingui-los e produzir a conseqüente difusão dos nossos valores e instituições políticas e legais. Essas premissas foram herdadas dos dias em que os combatentes da Guerra Fria denunciavam o "totalitarismo". Elas não deveriam ter sobrevivido ao fim da União Soviética, ainda mais com o evidente processo de democratização interna de alguns regimes não-comunistas detestáveis, autoritários, militaristas e ditatoriais da Ásia e da América do Sul, depois da década de 1980. Elas também se fundamentam na crença de que os atos de força podem produzir instantaneamente grandes transformações culturais. Mas isso não é verdade. A difusão de valores e de instituições através de sua súbita imposição por uma força estranha é tarefa quase impossível, a menos que já estejam presentes no local condições que os tornem adaptáveis e sua introdução, aceitável. A democracia, os valores ocidentais e os direitos humanos não são como produtos tecnológicos de importação, cujos benefícios são óbvios desde o início e que são adotados de uma mesma maneira por todos os que têm condições de usá-los, como uma pacífica bicicleta ou um mortífero AK 47, ou serviços técnicos, como os aeroportos. Se fossem, haveria maior similaridade política entre os numerosos Estados da Europa, da Ásia e da África, todos vivendo (teoricamente) sob a égide de constituições democráticas similares. Em uma palavra, a história tem muito poucos atalhos: lição que o autor aprendeu, em boa medida, por ter vivido durante grande parte do último século e pensado a respeito. [...]