Trecho do livro O LIVRO DOS NOMES

Antônio ou Os dons do erro Antônio é um nome sem origem explícita. Está marcado pela fatalidade dos que erram e vêem no erro sua salvação ou sua graça, por acharem que é no desvio que as coisas acontecem. Segundo os dicionários, Antônio vem do grego Ánton e significa "o que se opõe, faz frente a alguma coisa". Há também quem o vincule ao latim Antius: "o que está na vanguarda, vanguardeiro". Dizem que as pessoas com esse nome não suportam as certezas de um dia sem nuvem ou de uma estrada sem poeira. 1. Daqui a três anos Antônio vai morrer. Por enquanto, ele não sabe que já nasceu velho e que em pouco tempo esgotará o que de humano ainda carrega. Alimenta a ilusão de que sempre há algo para ver e acha que viver é especializar-se no erro. Reconhece que se casou com a mulher errada, perdeu quase tudo em acasos infelizes e deu mais aos outros do que estes mereciam. Mas insiste em ser bom, já que nada lhe é mais temível do que o suposto inferno do depois. Antônio tem três filhos: duas moças e um menino. Prevê que um dia uma das filhas escreverá sua história, mesmo sabendo que ela não será capaz de dizer exatamente tudo o que o define. O filho chorará sua ausência, sem pudor, e adotará a tristeza como uma espécie de virtude. A outra filha nunca o perdoará pelo amor que deu à primeira. E sua mulher o alimentará com maçãs ligeiramente ácidas minutos antes de ele partir e o sol se pôr. 2. Antônio nasceu do terceiro casamento de sua mãe. Por isso os olhos dele não têm aquele azul difuso dos olhos de seus irmãos mais velhos, mas um verde sujo, deixado pelo pai, que ele só conheceu de fotografia. Do pai também herdou o nome, a vida breve e uma elegância humilde, quase sem tom. Da mãe, uma mulher de fibra, recebeu a cor. Nunca buscou riquezas por achar que é mais suportável não possuir do que perder. Mas sempre perdeu. Algo em sua figura ainda atrai as mulheres, sem que se saiba exatamente o quê. Talvez o ritmo incontido, o jeito de estar - como diria um poeta - entre o céu e o chão. Ou seria a tendência à ternura, à compaixão? Não há como prever o que ele pensará na hora de morrer. Talvez se lembre daquele dia em que uma de suas filhas, na esquina da rua Galactita, lhe disse, sem pesar: quando você partir, todos os meus medos estarão aqui. 3. A filha mais velha de Antônio inventou tanta coisa sobre si mesma, que talvez ela não seja mais que uma ficção. Criou para a própria existência o fardo da impostura, sem saber muito bem como usar de outra forma sua fértil fantasia. Percebe-se que ela ama o pai com um amor exclusivo e nem imagina que o tempo dele já está por um triz. Pesam-me os ombros- costuma dizer em dias frívolos, quando fica exausta de existir. Antônio já se deu conta de que tudo nela é desperdício, mas não lhe põe limites, por crer que nada é demais quando o coração esplende, incisivo. A moça tem a literatura como horizonte de vida e, provavelmente, tentará converter pela escrita os erros do pai em grandes prodígios. Tudo nela faz frente à verdade em nome do risco. E talvez, um dia, escreva um livro de cento e trinta páginas e seis capítulos intitulado A lira da noite tríplice. 4. Antônio nunca leu um livro inteiro na vida, e isso não lhe causou nenhum dano, comentam os amigos. Sua sabedoria é intrínseca, prescinde de artifícios. Mas sua mulher, Sílvia, em cujos olhos se vê um quê de sinistro, muitas vezes o humilha, chamando-o de "um ignorante que não sabe distinguir dois ss de um cê-cedilha". Aliás, de ofensas como essa Antônio anda exaurido há muitos anos, embora não leve tão a sério as infâmias de uma pessoa assim, como Sílvia, que insiste em afirmar que alguém só se torna livre quando vive como se não tivesse nascido. Ele tem pena dela, por isso. Mas sabe que ainda a ama como não mais deveria. É demasiado tarde para acertar - costuma dizer para si em horas de desonra. E pergunta-se de vez em quando se não seria um certo dom da loucura o que leva as mulheres a ser mais desmedidas que os homens.