Trecho do livro ÓRFÃOS DO ELDORADO

A voz da mulher atraiu tanta gente, que fugi da casa do meu professor e fui para a beira do Amazonas. Uma índia, uma das tapuias da cidade, falava e apontava o rio. Não lembro o desenho da pintura no rosto dela; a cor dos traços, sim: vermelha, sumo de urucum. Na tarde úmida, um arco-íris parecia uma serpente abraçando o céu e a água. Florita foi atrás de mim e começou a traduzir o que a mulher falava em língua indígena; traduzia umas frases e ficava em silêncio, desconfiada. Duvidava das palavras que traduzia. Ou da voz. Dizia que tinha se afastado do marido porque ele vivia caçando e andando por aí, deixando-a sozinha na Aldeia. Até o dia em que foi atraída por um ser encantado. Agora ia morar com o amante, lá no fundo das águas. Queria viver num mundo melhor, sem tanto sofrimento, desgraça. Falava sem olhar os carregadores da rampa do Mercado, os pescadores e as meninas do colégio do Carmo. Lembro que elas choraram e saíram correndo, e só muito tempo depois eu entendi por quê. De repente a tapuia parou de falar e entrou na água. Os curiosos ficaram parados, num encantamento. E todos viram como ela nadava com calma, na direção da ilha das Ciganas. O corpo foi sumindo no rio iluminado, aí alguém gritou: A doida vai se afogar. Os barqueiros navegaram até a ilha, mas não encontraram a mulher. Desapareceu. Nunca mais voltou. Florita traduzia as histórias que eu ouvia quando brincava com os indiozinhos da Aldeia, lá no fim da cidade. Lendas estranhas. Olha só: a história do homem da piroca comprida, tão comprida que atravessava o rio Amazonas, varava a ilha do Espírito Santo e fisgava uma moça lá no Espelho da Lua. Depois a piroca se enroscava no pescoço do homem, e, enquanto ele se contorcia, estrangulado, a moça perguntava, rindo: Cadê a piroca esticada? Lembro também da história de uma mulher que foi seduzida por uma anta-macho. O marido dela matou a anta, cortou e pendurou o pênis do animal na porta da maloca. Aí a mulher cobriu o pênis com barro até ficar seco e duro; depois dizia palavras carinhosas para o bichinho e brincava com ele. Então o marido esfregou muita pimenta no pau de barro e se escondeu para ver a mulher lamber o bicho e sentar em cima dele. Diz que ela pulava e gritava de tanta dor, e que a língua e o corpo queimavam que nem fogo. Aí o jeito foi mergulhar no rio e virar um sapo. E o marido foi morar na beira da água, triste e arrependido, pedindo que a mulher voltasse para ele. Lendas que eu e Florita ouvíamos dos avós das crianças da Aldeia. Falavam em língua geral, e depois Florita repetia as histórias em casa, nas noites de solidão da infância. Uma história estranha me assustou: a da cabeça cortada. A mulher dividida. O corpo dela sempre vai atrás de comida em outras aldeias, e a cabeça sai voando e se gruda no ombro do marido. O homem e a cabeça ficam juntos o dia todo. Aí, de noitinha, quando um pássaro canta e surge a primeira estrela no céu, o corpo da mulher volta e se gruda na cabeça. Mas, uma noite, outro homem rouba metade do corpo. O marido não quer viver apenas com a cabeça da mulher, ele a deseja inteira. Passa a vida procurando o corpo, dormindo e acordando com a cabeça da mulher grudada no ombro. Cabeça silenciosa, mas viva: podia sentir o mundo com os olhos, e os olhos não secavam, percebiam tudo. Cabeça com coração. Eu tinha uns nove ou dez anos, nunca mais esqueci. Alguém ainda ouve essas vozes? Fiquei cismado, porque há um momento em que as histórias fazem parte da nossa vida. Uma das cabeças me arruinou. A outra feriu meu coração e minha alma, me deixou sozinho na beira desse rio, sofrendo, à espera de um milagre. Duas mulheres. Mas a história de uma mulher não é a história de um homem? Até a Primeira Guerra, quem não tinha ouvido falar de Arminto Cordovil? Muita gente conhecia meu nome, todo mundo tinha ouvido falar da riqueza e da fama do meu pai, Amando, filho de Edílio. Estás vendo aquele menino pedalando um triciclo? Um picolezeiro. Assobiando, o sonso. Vai se aproximar de mansinho da sombra do jatobá. Antes, eu podia comprar a caixa de picolés e até o triciclo. Agora ele sabe que eu não posso comprar nada. Aí, só de pirraça, vai me encarar com olhos de coruja. Depois dá uns risinhos, sai pedalando, e lá perto da igreja do Carmo ele grita: Arminto Cordovil é doido. Só porque passo a tarde de frente para o rio. Quando olho o Amazonas, a memória dispara, uma voz sai da minha boca, e só paro de falar na hora que a ave graúda canta. Macucauá vai aparecer mais tarde, penas cinzentas, cor do céu quando escurece. Canta, dando adeus à claridade. Aí fico calado, e deixo a noite entrar na vida. Nossa vida não se cansa de dar voltas. Eu não morava nesta tapera feia. O palácio branco dos Cordovil é que era uma casa de verdade. Quando decidi viver com a minha amada no palácio, ela sumiu deste mundo. Diziam que morava numa cidade encantada, mas eu não acreditava. Além disso, eu andava enrascado, liso que nem pau-de-sebo. Sem amor e sem dinheiro, e ainda corria o risco de perder o palácio branco. E não tinha a obstinação do meu pai. Nem a esperteza. Amando Cordovil seria capaz de devorar o mundo. Era um destemido: homem que ria da morte. E olha só: a fortuna cai nas tuas mãos, e uma ventania varre tudo. Joguei fora a fortuna com a voracidade de um prazer cego. Quis apagar o passado, a fama do meu avô Edílio. Não conheci esse Cordovil. Diziam que ele ignorava o cansaço e a preguiça, e trabalhava que nem um cavalo no calor úmido desta terra. Em 1840, no fim da guerra dos Cabanos, plantou cacau na fazenda Boa Vida, a propriedade na margem direita do Uaicurapá, a poucas horas de lancha daqui. Mas morreu antes de realizar um sonho antigo: a construção do palácio branco nesta cidade. Amando inaugurou a casa quando casou com minha mãe. E passou a sonhar com rotas ambiciosas para os seus cargueiros. Um dia vou concorrer com a Booth Line e o Lloyd Brasileiro, dizia meu pai. Vou transportar borracha e castanha para o Havre, Liverpool e Nova York. Foi mais um brasileiro que morreu com a expectativa de grandeza. No fim, eu soube de outras coisas, mas não adianta antecipar. Conto o que a memória alcança, com paciência. [...]