Trecho do livro A CRIAÇÃO

1. Carta a um pastor evangélico: saudação Prezado Pastor: Nunca nos encontramos pessoalmente, contudo sinto que o conheço bem o suficiente para chamá-lo de amigo. Em primeiro lugar, nós dois fomos criados na mesma fé. Na infância, eu também respondi ao chamado do altar; também recebi o batismo. Embora não pertença mais a essa religião, estou certo de que, se nós nos encontrássemos, e conversássemos em particular acerca das nossas crenças mais profundas, isso se daria num clima de mútuo respeito e boa vontade. Sei que ambos compartilhamos muitos preceitos de conduta moral. Talvez também tenha importância o fato de sermos americanos. E, se é algo que ainda pode afetar a civilidade e as boas maneiras, vale lembrar que somos eu e você do sul do país. Escrevo-lhe agora para consultá-lo e pedir-lhe ajuda. É claro que, ao fazer isso, não vejo como evitar as diferenças fundamentais entre nossas visões de mundo. O senhor interpreta literalmente a Sagrada Escritura cristã. O senhor rejeita a conclusão da ciência de que a humanidade evoluiu a partir de formas inferiores. O senhor acredita que a alma de cada pessoa é imortal, fazendo deste planeta uma estação intermediária para uma segunda vida, uma vida eterna. A Salvação é garantida para aqueles que encontram a redenção em Cristo. Sou um humanista secular. Creio que a existência é aquilo que nós fazemos dela, como indivíduos. Não há garantia de vida após a morte, e céu e inferno são o que criamos para nós mesmos, aqui neste planeta. Não há nenhum outro lar para nós. A humanidade aqui se originou por meio da evolução, a partir de formas inferiores, ao longo de milhões de anos. E falarei claramente: sim, nossos ancestrais eram animais semelhantes a símios. A espécie humana adaptou-se física e mentalmente à vida na Terra, e a nenhum outro lugar. Nossa ética é o código de conduta que temos em comum, com base na razão, na lei, na honra e em um senso inato de decência, ainda que alguns o atribuam à vontade de Deus. Para o senhor, a glória de uma divindade invisível; para mim, a glória do universo por fim revelado. Para o senhor, a crença em um Deus que se fez carne para salvar a humanidade; para mim, a crença no fogo que Prometeu arrebatou para libertar os homens. O senhor encontrou sua verdade final; eu ainda estou buscando a minha. Eu posso estar errado, ou o senhor pode estar errado. Talvez nós dois estejamos parcialmente certos. Será que essa diferença em nossa visão de mundo nos separa em todas as coisas? Não creio. Tanto o senhor como eu, e cada ser humano, lutamos pelos mesmos imperativos: segurança, liberdade de escolha, dignidade pessoal e uma causa em que acreditar, uma causa maior do que nós mesmos. Vejamos, então, se podemos nos encontrar do lado de cá da metafísica, para lidar com o mundo real que é tanto meu como seu. Exponho a questão dessa maneira porque o senhor tem o poder de ajudar a resolver um grande problema que me preocupa profundamente. Espero, aliás, que o senhor também tenha essa mesma preocupação. Minha sugestão é que deixemos de lado as nossas diferenças, a fim de salvar a Criação. A defesa da Natureza viva é um valor universal. Ela não provém de nenhum dogma religioso ou ideológico, tampouco promove tais dogmas. Não; ela serve, sem discriminação, aos interesses de toda a humanidade. Pastor, precisamos da sua ajuda. A Criação - a Natureza viva - está enfrentando uma grave crise. Os cientistas estimam que, se a conversão dos habitats naturais e outras atividades humanas destrutivas prosseguirem no ritmo atual, metade das espécies de plantas e animais na Terra pode desaparecer, ou, pelo menos, estará fadada à extinção precoce até o final deste século. Nada menos do que um quarto das espécies chegará a esse nível durante o próximo meio século, só como resultado das mudanças climáticas. A taxa atual de extinção, calculada pelas estimativas mais conservadoras, é cerca de cem vezes maior do que a que predominava antes de o ser humano aparecer na Terra, e deverá ser pelo menos mil vezes maior nas próximas décadas. Se a extinção continuar nesse compasso, o custo para a humanidade, em termos de riqueza, segurança ambiental e qualidade de vida, será catastrófico. Com certeza estamos de acordo no que diz respeito ao fato de que cada espécie, por mais humilde e quase invisível que nos pareça, é uma obra-prima da biologia, que bem vale a pena salvar. Cada espécie possui uma combinação única de traços genéticos que a encaixa, com maior ou menor precisão, em uma parte específica do meio ambiente. A simples prudência ordena que ajamos depressa para evitar a extinção das espécies, e com ela a pauperização dos ecossistemas da Terra - e, portanto, da Criação. O senhor pode estar se perguntando: "Por que eu?". É porque hoje a religião e a ciência são as duas forças mais poderosas do mundo, inclusive e especialmente nos Estados Unidos. E, se pudessem se unir no terreno comum da conservação biológica, o problema logo seria resolvido. Se existe algum preceito moral compartilhado pelos crentes de todas as religiões, é que devemos, a nós mesmos e às futuras gerações, um ambiente belo, rico e saudável. Fico perplexo ao ver tantos líderes religiosos, que representam espiritualmente a grande maioria da população mundial, hesitar em tornar a proteção da Criação uma parte importante da sua doutrina. Será que eles acreditam que a ética centrada no ser humano e a preparação para a vida após a morte são as únicas coisas que importam? Fico ainda mais perplexo com a convicção generalizada entre os cristãos de que o Segundo Advento de Cristo é iminente e que, portanto, a situação do planeta não merece atenção. De acordo com uma pesquisa de opinião realizada em 2004, 60% dos americanos acreditam nas profecias bíblicas relatadas no Apocalipse de são João. Muitos deles, totalizando milhões de indivíduos, crêem que o Fim dos Tempos ocorrerá durante o período de vida dos que hoje habitam a Terra. Jesus voltará à Terra, e aqueles redimidos pela fé cristã serão transportados, fisicamente, para os céus, enquanto aqueles que ficarem para trás terão que passar por graves dificuldades e, ao morrer, sofrerão a danação eterna. Os condenados ficarão no inferno, tal como os já enviados para lá nas gerações anteriores, ao longo de 1 trilhão de trilhões de anos - tempo suficiente para o Universo se expandir até a sua própria morte por entropia, para incontáveis universos semelhantes a este nascerem, se expandirem e também morrerem. E isso é apenas o início do perene sofrimento das almas condenadas no inferno - e tudo devido a um erro que cometeram ao escolher sua religião, durante o período infinitamente minúsculo em que habitaram a Terra. Para aqueles que acreditam nessa forma de cristianismo, o destino de 10 milhões de outras formas de vida realmente não importa. Essa doutrina, e outras semelhantes, não se constitui de evangelhos de esperança e compaixão. São evangelhos de crueldade e desespero. Não nasceram do coração do cristianismo. Pastor, diga-me que estou errado! Seja qual for a sua resposta, permita que eu apresente uma ética alternativa. O grande desafio do século XXI é elevar a população de todo o planeta a um padrão de vida decente, e ao mesmo tempo preservar ao máximo as demais formas de vida. A ciência oferece à ética esta parte do argumento: quanto mais estudamos a biosfera, mais percebemos como é complexa, e como é bela. Conhecê-la é como beber de um poço mágico: quanto mais tiramos, mais ele nos oferece. A Terra, e em especial a camada de vida que a envolve, fina como uma navalha, é o nosso lar, nossa fonte de vida, que nos dá o sustento físico e também boa parte do sustento espiritual. Sei que a ciência e o ambientalismo estão ligados, na mente de muitos, com a evolução, com Darwin e com o secularismo. Permita-me adiar o momento de desembaraçar tudo isso (voltarei ao assunto mais tarde) para ressaltar novamente: proteger a beleza da Terra e sua prodigiosa variedade de formas de vida deveria ser um objetivo comum a nós dois, apesar das diferenças entre nossas convicções metafísicas. Para argumentar à boa maneira dos evangelhos, peço licença para contar a história de um jovem recém-treinado para o ministério religioso, e tão apegado a sua fé cristã que submetia todas as questões morais às suas leituras bíblicas. Quando visitou a floresta tropical do Brasil, semelhante a uma catedral à beira do Atlântico, viu ali a mão manifesta de Deus e anotou em seu caderno: "Não é possível dar uma idéia adequada dos sentimentos superiores de deslumbramento, admiração e devoção que inundam e elevam a mente". Esse era Charles Darwin em 1832, no início de sua viagem no HMS Beagle, antes de ter dedicado qualquer pensamento à evolução. E eis aqui Darwin, concluindo Sobre a origem das espécies, em 1859, depois de abandonar o dogma cristão e, com sua recém-adquirida liberdade intelectual, formular a teoria da evolução por seleção natural: Há grandeza nesse modo de ver a vida, com seus diversos poderes, tendo sido originalmente instilada de um sopro em algumas poucas formas ou em uma só; e que, enquanto este planeta ia girando segundo a lei fixa da gravidade, a partir de um início tão simples, infinitas formas, tão belas e maravilhosas, evoluíram e continuam a evoluir. A reverência de Darwin pela vida não se alterou ao atravessar essa falha sísmica que cindiu ao meio sua vida espiritual. E o mesmo pode acontecer com a divisão que hoje separa o humanismo científico das principais religiões. E que separa o senhor de mim. O senhor está bem preparado para apresentar os argumentos teológicos e morais para salvar a Criação. É animador ver o movimento crescente no interior das denominações cristãs em apoio à conservação global. Essa linha de pensamento tem surgido de muitas fontes, da evangélica à unitarista. Hoje é apenas um pequeno riacho. Amanhã, será uma torrente. Já conheço grande parte dos argumentos religiosos em favor da Criação e gostaria de aprender mais. Agora apresentarei ao senhor, e a outros que queiram ouvir, o argumento científico. O senhor não irá concordar com tudo o que afirmo sobre as origens da vida - a ciência e a religião não se mesclam facilmente nesses assuntos -, mas eu gostaria de pensar que nessa questão, que é crucial, nós dois temos um propósito em comum.