Trecho do livro O SOL DO BRASIL

CAPÍTULO 1 OUVIR, VER, OUVIR DIZER: RELATOS FRANCESES SOBRE O BRASIL O sol em nenhum outro hemisfério tem os raios tão dourados. Rocha Pitta Uma série de viajantes aportou no Brasil do século XVI aos inícios do XIX, legando relatos variados sobre esse estranho e longínquo país, em especial acerca da natureza e de seus naturais, ora considerados detraídos, ora elevados em sua moral e costumes. É certo que, até a chegada da corte portuguesa ao Rio de Janeiro, em 1808, a entrada de estrangeiros esteve basicamente impedida ou limitada. No entanto, a proibição não evitou a vinda de religiosos, soldados, comandantes, corsários ou meros curiosos, que deixaram relatos passados avidamente de mão em mão. Além do mais, uma certa visão fantasiosa, que "andava muito além do que os olhos podiam ver ou a razão admitir", alimentava as narrativas extravagantes de uma quantidade considerável de viajantes, em tudo imaginárias ou até sobrenaturais, como as encontradas no Navigatio Sancti Brendani Abbatis, na Cosmographia de Ético, na Imago mundi de Pierre d'Aily, ou nas viagens de John Mandeville, entre tantas outras obras divulgadas no começo do século XVI. Em meio a essas regiões maravilhosas, poderia estar o Paraíso Terrestre, com sua primavera eterna, seus campos férteis, fontes da juventude; mas também uma terra inóspita, habitada por monstros disformes. A literatura insistia de tal maneira nesses seres de quatro braços e um olho só na testa, andróginos pigmeus, sereias encantadas e tudo o que a imaginação poderia alcançar, que não é de admirar o fato de Colombo ter admitido, numa de suas primeiras cartas, que não encontrara monstros humanos e que, ao contrário, as pessoas a quem conhecera eram muito bem-feitas de corpo: "Não são negros como na Guiné e seu cabelo é liso". Mas continuaram existindo monstros nos desenhos e nos mapas da época, assim como monstros se viram associados aos relatos sobre as práticas de antropofagia, que acabaram por motivar discussões filosófico religiosas cerca da índole dos gentios: descendentes de Adão e Eva para alguns, bestas-feras para outros. Essa literatura proliferaria nos séculos XVI e XVII com os primeiros viajantes chegando ao Novo Mundo. O encontro com a América seria o feito mais grandioso da história moderna ocidental; numa época em que era bem melhor "ouvir" do que "ver", o pensamento europeu voltava-se - entre assustado e maravilhado - para essa Nova Terra, em tudo distinta. Por isso mesmo, as narrativas de viagem aliavam fantasia com realidade e buscavam na natureza americana aquilo que imaginavam previamente: um deslocamento do mito do Paraíso Terrestre. Já a curiosidade pelas novas gentes gerava um movimento paradoxal: se a curiosidade fora condenada por santo Agostinho como um desejo pecaminoso, acabou estimulada pelos cronistas da época.6 Desse modo, enquanto a natureza brasileira seria elevada, o retrato das "gentes locais" foi um tanto diverso. Por mais que as imagens negativas não tivessem o impacto das visões edênicas, o certo é que fantasias sobre os nativos se aproximaram de um antiparaíso, ou até do inferno. Essa humanidade - que praticava o canibalismo e a feitiçaria, além de agir com lascívia - poderia ser condenada. E foi a essa literatura, sobretudo a francesa ou a traduzida para o francês, que Taunay teve acesso. Por meio de tais relatos é possível entender um certo repertório cultural partilhado na França e do qual nosso pintor estava provavelmente inteirado antes de chegar ao Brasil. Assim como pagou pela viagem, também teve tempo de planejá-la e de se informar sobre a terra que habitaria enquanto durasse sua licença do Instituto. Sabe-se, porém, que os primeiros relatos dialogavam entre si, sendo muito difícil pensar em autoria ou mesmo no seu oposto: na idéia da cópia. Na verdade, um texto reproduzia e aumentava o outro, o que indica não só a existência de um imaginário comum, mas que este crescia como uma espiral. É certo que Nicolas não teria acesso aos relatos dos ibéricos, mas os próprios textos franceses acabariam por se referir aos autores portugueses, e deles extrairiam descrições e imagens. Como se verá, a literatura portuguesa apresentou uma natureza em tudo edenizada; contudo, de determinada maneira, condenou os "naturais da terra", por suas "excentricidades". Essas tópicas escorreriam para os relatos dos franceses, que, maravilhados com a terra, tenderam a poupar os selvagens. Taunay, sem dúvida, "fartou se" com a quantidade e a qualidade de obras que encontrou, e "seu" Brasil seria povoado por esse tipo de universo cultural. RELATOS PORTUGUESES: HOMENS SEM F, SEM L, SEM R Os portugueses foram por tanto tempo fascinados pelo Oriente, que quase não especularam sobre o Novo Mundo. A princípio, o Brasil passou despercebido; isso durante pelo menos os primeiros cinqüenta anos de contato. Camões dedicou ao novo domínio quatro breves versos no penúltimo canto dos Lusíadas, publicados em 1572, mas, além dessa referência, pouco se comentou sobre a América. Ao que parece, foi o medo de ver a terra roubada pelos inimigos que despertou a atenção dos portugueses ou incentivou a idéia de que era preciso colonizar para, assim, proteger. A primeira carta sobre o país, a missiva de 1500 escrita por Pero Vaz de Caminha ao rei d.Manuel, ficaria inédita até 1773. No entanto, já nas cartas de Américo Vespúcio endereçadas a Lourenço de Médici apareciam menções não só à Terra de Santa Cruz mas também a seus habitantes. Como mostra Manuela Carneiro da Cunha, tais documentos se assentam nas idéias propagadas pelo primeiro diário de Colombo, que se enraizou nos relatos de viagem de Marco Pólo e de Mandeville; estes introduziam a noção de que o Paraíso Terrestre e a Fonte da Juventude estariam próximos desse local, bem como exploravam a representação das bravias amazonas. Segundo a antropóloga, "os viajantes vêem por indícios e ouvem dos índios, sabese lá em que língua [...] a Europa procura e antecipa". O fato é que, nas cartas e nos poucos registros deixados, conformava-se uma concepção inicial acerca do que seriam os "brasileiros", a qual vigorará durante largo tempo, sempre com breves retoques. Os sucessivos navios de várias nacionalidades que por aqui passaram devem ter consolidado uma certa fórmula que o italiano Pigafetta, em 1519, e de passagem na expedição de Fernão Magalhães, acabou por condensar: "Brasileiros e brasileiras vão nus, vivem até 140 anos". Só a partir da década de 1550 é que o conhecimento sobre o Brasil ganhará uma literatura mais específica: de um lado, os autores ibéricos com seus interesses voltados para a colonização; de outro, os "não ibéricos", sobretudo franceses, para quem os índios se tornaram matéria de reflexão e também de gestão. Do lado dos portugueses, o mais conhecido dos relatos é o de Magalhães Gandavo, o qual deu uma forma quase canônica ao debate que desde Caminha e Vespucci mencionava a ambivalência entre o éden e a barbárie. O Brasil seria o paraíso ou o inferno? Seus habitantes, ingênuos ou viciados? Se a existência do motivo edênico e da imagem da terra paradisíaca pode ser observada já nas primeiras descrições dos europeus, também na obra de Gandavo, História da Província de Santa Cruz, de 1576, tal ambigüidade estaria presente. Lá estão os dois lados: a descrição da fertilidade da terra e do clima ameno e receptivo, mas, igualmente, a visão pessimista sobre as gentes do Brasil. Pero de Magalhães Gandavo, provavelmente um copista da Torre do Tombo, criado e moço da Câmara de d. Sebastião e provedor da Fazenda em 1576, foi um dos primeiros autores a discorrer sobre essa "multidão de bárbaros gentios".Na década de 1570, escreve Tratado da terra e história do Brasil e, em 1576, História da Província de Santa Cruz, obras que visavam, entre outras coisas, animar a imigração e o investimento de portugueses, à semelhança do que os ingleses haviam feito na Virgínia. Se o imaginário português se concentrava nas Índias, já os espanhóis, franceses e ingleses estavam interessados no Novo Mundo, cada qual numa região em particular: a América dos espanhóis seria o Peru e o México; a dos ingleses, a Flórida, e a dos franceses, nomeadamente, o Brasil. Não se tem certeza absoluta de quem teria sido Gandavo nem mesmo de que ele esteve efetivamente no Brasil. Mas o fato é que o próprio Pero de Magalhães, em sua dedicatória, afirma ter escrito sua história como "testemunha vista". Além do mais, na dedicatória do Tratado da terra e história do Brasil à d. Catarina, regente de Portugal, declara o autor tê-lo feito para dar "novas particulares destas partes a V. A. onde alguns anos me achei e coligi esta breve informação na maior parte das coisas que aqui escrevi e experimentei". Assim, muita fábula cerca esse relato, cuja veracidade parece estar em questão. Existem duas versões do livro que veio a ter como título definitivo História da Província de Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil, possivelmente publicado entre 1570 e 1572. O Tratado deve ter sido escrito antes da História, mas de toda maneira a versão mais acabada aparece em 1576, em Lisboa. Muitos dizem que a História de Gandavo é antes um panfleto, por conta de seu tamanho acanhado: 48 folhas. No entanto, nesse caso o velho provérbio "Tamanho não é documento" deve ter imperado, uma vez que o texto é entendido como um dos documentos inaugurais acerca da vida econômica e social dos primeiros anos da colonização. No Tratado, Gandavo lista os nomes de diferentes donatários, relaciona plantas, frutos, animais, bichos venenosos, aves e peixes, e termina seu relato elevando as grandezas do local. O livro logo se tornou, porém, uma raridade, quem sabe por conta do receio dos portugueses de que as riquezas da terra fossem descobertas e difundidas. Afinal, Gandavo começava o Tratado com um "prólogo ao leitor", mostrando que sua intenção era "denunciar em breves palavras a fertilidade e abundância da terra do Brasil, para que essa fama venha à notícia de muitas pessoas que nestes reinos vivem com pobreza [...]: porque a mesma terra é tão natural e favorável aos estranhos que a todos agasalha e convida como remédio". Nessa obra, Pero de Magalhães não se cansa de elogiar as "qualidades do local"; menciona o clima ameno, o solo fértil e viçoso, a claridade do sol, as águas que são sadias para beber, e, finalmente, sintetiza: "Esta terra é tão deleitosa e temperada que nunca nela se sente frio nem quentura sobeja". As frutas seriam saborosas e variadas, e a caça, farta. Como se vê, o tom do livro é de clara propaganda. Essa seria mesmo a região da abundância e da eterna primavera. No entanto, no que se refere aos "índios da terra", Gandavo parece mais comedido em seus elogios: "A língua deste gentio toda pela costa é uma: carece de três letras - scilicet, não se acha nela F, nem L, nem R, coisa digna de espanto, porque assim não tem Fé, nem Lei, nem Rei; e desta maneira vivem sem Justiça e desordenadamente". Assim, o Brasil de Gandavo é a terra dos "naturais" caracterizados com base na noção de falta. "Andam nus, sem cobertura alguma, assim machos e fêmeas; e trazem o corpo descoberto quanto à natureza lhes deu." Desse modo, se a natureza era paradisíaca, já os selvagens surgiam estranhos em seus costumes: moravam em aldeias "repletas de gente"; armavam redes, e "assim dormem todos juntos sem que existam regras". O autor também lamentaria o fato de serem sempre "muito belicosos". Explica como tratam os prisioneiros, detalha a maneira como lhes amarram cordas e como os matam e comem,"isto mais por vingança e por ódio que por se fartarem". Gandavo não mostrava maior identificação com os "selvagens", afirmando: "São estes índios muito desumanos e cruéis, não se movem a nenhuma piedade: vivem como brutos animais sem ordem nem concerto de homens, soa muito desonestos e dados a sensualidade e entregam-se aos vícios como se neles não houvera razão de humanos". Também com relação a certos animais Gandavo revela especial mau humor. Descreve bichos "ferozes e peçonhentos", detendo-se nas cobras e, sobretudo, nas serpentes voadoras e nos lagartos, "cujos testículos cheiram melhor que almíscar". Critica ainda o fato de que toda a terra esteja coberta de formigas, pequenas e grandes, e que uma infinidade de mosquitos "perseguem toda gente". Não obstante, ele termina seu Tratado fazendo "louvores" ao Brasil: "As excelências e diversidades das coisas que há nela para remédio e proveito dos homens". Pero de Magalhães voltaria a seus argumentos na História da Província de Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil. Já no "prólogo ao leitor", ficam ainda mais evidentes os objetivos do autor: "A causa principal que me obrigou a lançar mão da presente história e sair com ela à luz foi por não haver até agora pessoa que a empreendesse havendo já setenta e tantos anos que esta Província é descoberta. A qual história creio que mais esteve sepultada em tanto silêncio, pelo pouco caso que os portugueses fizeram sempre da mesma província". A organização das duas obras é de algum modo semelhante, mas Gandavo descreve dessa vez com mais detalhes os peixes e as baleias, assim como menciona um monstro marinho que fora morto na Capitania de São Vicente em 1564 ("um demônio d'água"; "um medonho animal"). Também se detém nos "naturais da terra", de cor baça e cabelo corredio, com o rosto amassado e feições de "Chins". Repete boa parte das antigas observações sobre os costumes da população e seus excessos com relação à comida. Reitera que "vivem todos muito descansados e que são inconstantes e mutáveis", e lembra que não adoram coisa nenhuma, não têm rei nem outro gênero de justiça. O argumento geral é semelhante até porque, ao que tudo indica, um livro seria o esboço do outro. Gandavo insiste na preguiça e na lascívia simbolizadas pela rede, e se escandaliza novamente com o fato de os nativos andarem nus e descalços, concluindo: "Desta maneira vivem todos esses Índios [...] porque todos como digo são iguais e em tudo tão conformes a lei da natureza". Sem fé alguma, os nativos conformariam uma anti-humanidade, coberta de pecados. Os comentários de Gandavo ressoariam noutros livros da época, como o de Gabriel Soares de Sousa, Tratado descritivo do Brasil. Datado de 1587 e fruto da intenção de seu autor de por aqui encontrar ouro, o texto só seria descoberto e publicado no século XIX, e, portanto, nosso Taunay não teria acesso a ele.Vale a pena, porém, guardar a variante de Gandavo utilizada pelo viajante: "Faltam-lhes três letras das do ABC, que são F ou dobrado, coisa muito para se notar porque, se não têm F, é porque não têm fé e nenhuma coisa adorem; nem nascidos entre os cristãos e doutrinados pelos padres da Companhia têm fé em Deus Senhor, nem têm verdade, nem lealdade e nenhuma pessoa que lhes faça bem. E se não têm L na sua pronunciação é porque não têm lei alguma que guardar nem preceitos para se governarem nem têm lei os outros. E se não têm R na sua pronunciação é porque não têm rei que os reja, e a quem obedeçam, nem obedecem a ninguém, nem ao pai o filho, nem o filho ao pai e cada um vive a sua vontade [...]". Como se vê, os textos ganhavam releituras e assim se transformavam em realidade. Também o tratado do padre Fernão Cardim, escrito entre 1583 e 1601, só seria traduzido para o inglês em 1625 (mas como um relato anônimo) e integralmente publicado em português no século XIX, por Capistrano de Abreu. Contudo, ainda que os franceses não fossem ter acesso ao relato, destaca-se a maneira como os documentos se remetiam uns aos outros. "Este Brasil é outro Portugal", dizia o religioso, que, além de enumerar riquezas locais, daria lugar às lendas dos tritões, sereias e outros seres imaginários presentes nos textos dos autores portugueses quinhentistas. Esse tipo de antropofagia fantástica já tinha uma tradição na península Ibérica, e acabaria retomado e ampliado pelo padre, que dava voz a um largo imaginário da época. Seria só em 1730 que Rocha Pitta editaria sua História da América portuguesa, sendo que já no "prólogo" ficariam evidentes as posições desse advogado e senhor de engenho na Bahia: "As grandezas e excelências [...] da região do Brasil, tão célebre depois de descoberta como aniquilada enquanto oculta, exponho a atenção do mundo, onde suas riquezas têm chegado mais que as suas notícias [...] O costume sempre notado nos Portugueses é de conquistarem impérios e não os encarecerem". Segundo Rocha Pitta, os portugueses não conheciam o que possuíam, e é imbuído desse sentimento que ele canta louvores à terra: "Do novo mundo, tantos séculos escondido e de tantos sábios caluniados [...] é a melhor porção o Brasil, vastíssima região, felicíssimo terreno em cuja superfície tudo são frutos, em cujo centro tudo são tesouros, em cujas montanhas e costas tudo são aromas; tributando os seus campos o mais útil alimento, as suas minas o mais fino ouro, os seus troncos o mais suave bálsamo, e os seus mares o âmbar mais seleto; admirável país, a todas as luzes, onde prodigamente profusa a natureza se desentranha nas férteis produções que em opulência da monarquia e benefício do mundo apura a arte, brotando as suas canas espremidas néctar, e dando as suas frutas sazonada ambrosia, de que foram mentida sombra o licor e vianda que aos seus falsos deuses atribuiu a culta gentilidade". E continua: "Em nenhuma outra região se mostra o céu mais sereno, nem madruga mais bela a aurora; o sol em nenhum outro hemisfério tem os raios tão dourados, nem os reflexos noturnos tão brilhantes; as estrelas são mais benignas, e se mostram sempre alegres; os horizontes, ou nasça o sol ou se sepulte, estão sempre claros; as águas ou se tomem nas fontes pelos campos, ou dentro das povoações são as mais puras; é enfim o Brasil terreal paraíso descoberto, onde têm nascimento e curso os maiores rios; domina salutífero clima; influem benignos astros e respiram auras suavíssimas, que o fazem fértil e povoado de inumeráveis habitadores [...]". O livro de Pitta é basicamente uma obra de história política, fruto do contexto da Academia de História criada no reinado de d. João V. No entanto, seria difícil encontrar narrativa mais decisiva na caracterização desse "terreal paraíso descoberto" e à disposição no Novo Mundo dos portugueses. BRASIL: UMA VOGA FRANCESA Mas, se os relatos portugueses foram muitas vezes pessimistas com relação aos homens e otimistas quando se tratava de "propagandear" a natureza do Brasil (incitando à imigração), a literatura de viagem deixada pelos franceses, mais particularmente sobre as experiências na França Antártica e na França Equinocial, geraria novas celeumas, e a colônia passava a se inscrever dentro de uma história propriamente francesa. A idéia da "ausência de fé" reapareceria nos textos de mercadores normandos que continuavam a prosperar, realizando o comércio do pau-brasil e o escambo com os tupinambás. Entre eles, porém, parece que a falta de letras e de regras não preocupava tanto; ao contrário, permitia imaginar. Ronsar, por exemplo, em sua Complainte contre fortune, de 1559, descreve uma América da Idade do Ouro, em que desejava estar: "Onde o povo inculto erra inocentemente sempre nus; sem malícia; sem virtudes, mas sem vícios...". "Sem" nesse caso não é falta, mas quase excesso. O fato é que a representação dos brasileiros parecia estar em alta no imaginário francês e despertava curiosidade. Um exemplo de tal afirmação é um evento narrado por Ferdinand Denis muitos séculos depois, que teria ocorrido em 1551: uma festa brasileira realizada diante do monarca francês Henrique II e da regente Catarina de Médici. Para receber o casal reinante, a cidade de Rouen resolveu fazer uma grande cerimônia. Não só recorreram a repertórios da Antiguidade - construindo obeliscos, templos e arcos do triunfo - como incluíram na cerimônia uma festa do Novo Mundo. Meio século após a chegada dos portugueses ao continente, a voga parecia ser apresentar os "homens do Brasil": os "bravos tupinambás". E assim foi feito: cinqüenta tupinambás simularam um combate perto do rio Sena e em frente à nobreza local. Para dar maior amplitude à festa, os indígenas foram misturados com mais de 250 figurantes vestidos à moda, e representaram cenas de caça, de guerra e de amor, além de aparecerem pintados, carregados de bananas e cercados de papagaios. No entanto, ao lado desse tipo de representação edênica, outra imagem se tornaria emblemática: a dos índios canibais.Na verdade, a idéia do canibalismo flutuaria desde o imaginário medieval, sem encontrar um endereço preciso. Com Colombo - na oposição entre caribes insulares e antilhanos - uma primeira localização seria estabelecida, e perduraria até a Enciclopédia. No ano de 1540, por exemplo, o mapa de Sebastian Münster, na Geografia de Ptolomeu, dispunha no espaço, bastante amorfo, situado entre o Amazonas e o Prata, a palavra Caniballi. Dizia-se, ainda: "São cães em se comerem e matarem", numa evocação das imagens do Renascimento e mais especialmente de Rabelais: "Canibais, povos monstruosos da África, tendo rostos como cachorros e latindo em vez de rir". Mas seriam os franceses que distinguiriam noções como canibalismo e antropofagia. A distinção semântica é crucial, e é da discussão do século XVI que surgirá a exaltação do índio brasileiro. A diferença é que canibais seriam aqueles que se alimentariam de carne humana, enquanto antropófagos, sobretudo representados pelos tupis, seriam os que comeriam por vingança, e seria essa a grande novidade desse tipo de literatura francesa.Na França humanista, e com menor eco na Inglaterra, vingaria a discussão a respeito das semelhanças entre os seres humanos. Desde a bula de Paulo III, de 1534, os índios seriam considerados humanos. Porém, a medida servia menos para dissipar dúvidas e muito mais para garantir a jurisdição da Igreja sobre vasta parcela do globo. Descobria-se, assim, uma nova humanidade; restava inseri-la na genealogia dos povos. Data dessa época, por exemplo, o texto de Montaigne, Os canibais (1580), em que o filósofo, realizando um verdadeiro exercício de relatividade, encontrava mais lógica na maneira como os tupinambás realizavam a guerra do que nos hábitos ocidentais: "Mas, voltando ao assunto, não vejo nada de bárbaro ou selvagem no que dizem daqueles povos; e, na verdade, cada qual considera bárbaro o que não pratica em sua terra [...]". Muitas são as interpretações possíveis do famoso ensaio. No nosso caso, importa sublinhar a construção de uma representação mais laudatória dessas gentes, tendo por base (e por sombra) as guerras de religião que assolavam a Europa no século XVI: "Por certo em relação a nós são realmente selvagens, pois entre suas maneiras e as nossas há tão grande diferença que ou o são ou o somos nós". Segundo Denis,Montaigne teria concebido seu texto apoiado nos diálogos por ele estabelecidos com alguns índios que haviam se radicado no continente europeu após a festa em Rouen. O fato é que a noção de diferença movimentava a imaginação de lado a lado, e, enquanto os europeus indagavam pela alma dos indígenas e os levavam à Europa para deleite da "civilização", os indígenas afundavam os brancos em lagos a fim de entender se possuíam corpo ou não. Na Relação de Gonneville, de 1505, pode ser encontrada uma das primeiras descrições da terra, do ponto de vista dos franceses. O navio L'Espoir, comandado pelo comerciante Binot Paulmier de Gonneville, aportou no dia 5 de janeiro de 1504 numa terra identificada como Índias Meridionais. Hoje se sabe que se tratava da costa de Santa Catarina e que eles permaneceriam ali durante seis meses, carregando a nau com pau-brasil, plumas e animais. De lá partiram pela costa brasileira e, na altura da Bahia, depararam-se com "selvagens ferozes": os tupinambás. Quando estava prestes a chegar à costa normanda, o navio naufragou. Sobreviveram poucos homens, entre eles Essomericq, um jovem filho do cacique carijó, e o livro Relation authentique du voyage du capitaine de Gonneville es Nouvelles Terres des Indes representa um testemunho dessa aventura. Exemplos não faltam, contudo o mais importante é perceber que franceses e indígenas trocavam não só objetos de uso (utensílios e ferramentas por alimentos) mas também artefatos de valor simbólico (como espelhos e miçangas para os índios; peles, plumas e tinturas para os europeus). Os indígenas, nessa nova literatura, antes de constituir uma anti-humanidade, eram vistos como humanos, com suas regras e costumes curiosos.