Trecho do livro COMUNIDADES IMAGINADAS

Introdução Talvez,sem que tenha sido muito notada,esteja ocorrendo uma transformação fundamental na história do marxismo e dos movimentos marxistas. Os sinais mais visíveis são as guerras recentes entre o Vietnã, o Camboja e a China. Essas guerras são de importância histórica mundial por serem as primeiras a acontecer entre regimes com independência e credenciais revolucionárias inquestionáveis, e também porque nenhum dos beligerantes fez qualquer tentativa que não fosse extremamente superficial para justificar a carnificina nos termos de uma perspectiva teórica que se pudesse reconhecer como marxista. Se ainda era possível interpretar os conflitos de fronteira sino-soviéticos de 1969 e as intervenções militares soviéticas na Alemanha (1953), Hungria (1956), Checoslováquia (1968) e Afeganistão (1980) como - dependendo do gosto - "imperialismo socialista", "defesa do socialismo" etc., ninguém, imagino eu, acredita seriamente que esses termos possam ter muito cabimento diante do que ocorreu na Indochina. Se a invasão e a ocupação vietnamita do Camboja, em dezembro de 1978 e janeiro de 1979, representaram a primeira guerra convencional em grande escala de um regime marxista revolucionário contra outro, a investida da China no Vietnã, em fevereiro, logo confirmou o precedente. Apenas alguém muito crédulo se atreveria a apostar que, nesses últimos anos do século XX, alguma eclosão significativa de hostilidade entre Estados haverá de encontrar a União Soviética e a República Popular da China - sem falar dos estados socialistas menores - se apoiando ou lutando do mesmo lado. Quem pode ter certeza de que a Iugoslávia e a Albânia não irão se digladiar algum dia? Esses grupos heterogêneos que pedem a retirada dos acampamentos do Exército Vermelho da Europa Oriental deveriam lembrar o quanto a presença esmagadora dessas forças vem, desde 1945, impedindo o conflito armado entre os regimes marxistas da região. Essas observações servem para ressaltar o fato de que, desde a Segunda Guerra Mundial, todas as revoluções vitoriosas se definiram em termos nacionais - a República Popular da China, a República Socialista do Vietnã e assim por diante - e, com isso, se firmaram solidamente num espaço territorial e social herdado do passado pré-revolucionário. Inversamente, se a União Soviética divide com o Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte a rara distinção de não mencionar nacionalidades em seu nome, isso sugere que ela é não só a herdeira dos estados dinásticos pré-nacionais, mas também a precursora de uma ordem internacionalista no século XXI. Eric Hobsbawm tem plena razão ao afirmar que "os movimentos e estados marxistas têm mostrado a tendência de se tornarem nacionais não só na forma,mas também no conteúdo, ou seja, nacionalistas. Nada sugere que essa corrente não haverá de continuar". E essa tendência não se restringe ao mundo socialista. As Nações Unidas admitem novos membros praticamente todos os anos. E muitas "nações antigas", tidas como plenamente consolidadas, vêem-se desafiadas por "sub"-nacionalismos em seu próprio território - nacionalismos estes, claro, que sonham com algum futuro feliz, livres dessa condição de "sub". A realidade é muito simples: não se enxerga,nem remotamente, o "fim da era do nacionalismo", que por tanto tempo foi profetizado. Na verdade, a condição nacional [nation-ness] é o valor de maior legitimidade universal na vida política dos nossos tempos. Mas, se os fatos são claros, a explicação deles continua sendo objeto de uma longa discussão.Nação, nacionalidade, nacionalismo - todos provaram ser de dificílima definição,que dirá de análise. Em contraste com a enorme influência do nacionalismo sobre o mundo moderno, é notável a escassez de teorias plausíveis sobre ele. Hugh Seton-Watson, autor do que é longe o melhor e o mais abrangente texto em língua inglesa sobre nacionalismo, e herdeiro de uma vasta tradição liberal de historiografia e ciências sociais, observa com pesar:" Assim eu sou levado a concluir que não é possível elaborar nenhuma 'definição científica'de nação; mas o fenômeno existiu e continua a existir". Tom Nairn, autor do inovador The Break-up of Britain,e herdeiro de uma tradição quase tão vasta de historiografia e ciências sociais marxistas, declara com a maior sinceridade: "A teoria do nacionalismo representa a grande falha histórica do marxismo". Mas mesmo esse reconhecimento é um tanto enganador, pois pode-se entendê-lo como se estivesse referindo-se ao deplorável resultado de uma longa e deliberada busca de clareza teórica. Seria mais correto dizer que o nacionalismo demonstrou ser uma anomalia incômoda para a teoria marxista e, justamente por isso, preferiu-se evitá-lo, em vez de enfrentá-lo. De que outra maneira se explicaria por que Marx não esclareceu o pronome possessivo crucial na sua memorável formulação de 1848: "O proletariado de cada país deve, naturalmente, ajustar contas antes de mais nada com a sua própria burguesia?". De que outra maneira, também, se explicaria por que o conceito de "burguesia nacional" foi utilizado por mais de um século sem nenhuma tentativa séria de justificar teoricamente a pertinência do adjetivo? Por que essa segmentação da burguesia - uma classe mundial, na medida em que é definida pelas relações de produção - tem importância teórica? Este livro pretende oferecer, a título de ensaio, algumas idéias para uma interpretação mais satisfatória da "anomalia"do nacionalismo. A minha impressão é que tanto a teoria marxista quanto a liberal se estiolaram num derradeiro esforço ptolemaico de "salvar os fenômenos". Creio haver uma necessidade urgente de se reorientar a perspectiva dentro de um espírito, por assim dizer, copernicano. O meu ponto de partida é que tanto a nacionalidade - ou, como talvez se prefira dizer, devido aos múltiplos significados desse termo, a condição nacional [nation-ness] - quanto o nacionalismo são produtos culturais específicos. Para bem entendê-los, temos de considerar, com cuidado, suas origens históricas, de que maneiras seus significados se transformaram ao longo do tempo, e por que dispõem, nos dias de hoje, de uma legitimidade emocional tão profunda. Tentarei mostrar que a criação desses produtos, no final do século XVIII, foi uma destilação espontânea do "cruzamento" complexo de diferentes forças históricas. No entanto, depois de criados, esses produtos se tornaram "modulares", capazes de serem transplantados com diversos graus de autoconsciência para uma grande variedade de terrenos sociais, para se incorporarem e serem incorporados a uma variedade igualmente grande de constelações políticas e ideológicas. Tentarei mostrar também por que esses produtos culturais específicos despertaram apego tão profundo. CONCEITOS E DEFINIÇÕES Antes de encaminhar as questões levantadas anteriormente, seria aconselhável avaliar rapidamente o conceito de "nação" e oferecer uma definição operacional. É freqüente a perplexidade, para não dizer irritação, dos teóricos do nacionalismo diante destes três paradoxos: (1) A modernidade objetiva das nações aos olhos do historiador versus sua antigüidade subjetiva aos olhos dos nacionalistas. (2) A universalidade formal da nacionalidade como conceito sociocultural - no mundo moderno, todos podem, devem e hão de "ter" uma nacionalidade, assim como "têm" este ou aquele sexo - versus a particularidade irremediável das suas manifestações concretas,de modo que a nacionalidade "grega" é, por definição, sui generis. (3) O poder "político" dos nacionalismos versus a sua pobreza e até sua incoerência filosófica. Em outras palavras, o nacionalismo, ao contrário da maioria dos outros "ismos", nunca gerou grandes pensadores próprios: nenhum Hobbes, Tocqueville, Marx ou Weber.Esse "vazio" cria certa condescendência entre os intelectuais cosmopolitas e poliglotas. Alguém pode logo concluir, como Gertrude Stein diante de Oakland, que não há "nenhum ali ali" [no there there]. É exemplar que até um estudioso tão simpático ao nacionalismo quanto Tom Nairn possa, mesmo assim, escrever que: "O 'nacionalismo' é a patologia da história do desenvolvimento moderno, tão inevitável quanto a 'neurose'no indivíduo,e que guarda muito da mesma ambigüidade de essência,da tendência interna de cair na loucura, enraizada nos dilemas do desamparo imposto à maior parte do mundo (o equivalente do infantilismo para as sociedades), sendo em larga medida incurável". A dificuldade, em parte, consiste na tendência inconsciente que as pessoas têm de hipostasiar a existência do nacionalismo-com-N-maiúsculo (como se alguém pudesse ter uma Idade-com-I-maiúsculo) e, então, de classificá-"lo" como uma ideologia. (Nota-se que se todos têm uma certa idade, a Idade é apenas uma expressão analítica.) Penso que valeria a pena tratar tal conceito do mesmo modo que se trata o "parentesco" e a "religião", em vez de colocá-lo ao lado do "liberalismo" ou do "fascismo". Assim, dentro de um espírito antropológico, proponho a seguinte definição de nação: uma comunidade política imaginada - e imaginada como sendo intrinsecamente limitada e, ao mesmo tempo, soberana. Ela é imaginada porque mesmo os membros da mais minúscula das nações jamais conhecerão, encontrarão, ou sequer ouvirão falar da maioria de seus companheiros, embora todos tenham em mente a imagem viva da comunhão entre eles. Era a essa imagem que Renan se referia quando escreveu, com seu jeito levemente irônico: "Or l'essence d'une nation est que tous les individus aient beaucoup de choses en commun, et aussi que tous aient oublié bien des choses" [Ora, a essência de uma nação consiste em que todos os indivíduos tenham muitas coisas em comum, e também que todos tenham esquecido muitas coisas]. Gellner diz algo parecido quando decreta, com certa ferocidade, que "O nacionalismo não é o despertar das nações para a autoconsciência: ele inventa nações onde elas não existem". Mas o inconveniente dessa formulação é que Gellner está tão aflito para mostrar que o nacionalismo se mascara sob falsas aparências, que ele identifica "invenção" com "contrafação" e "falsidade", e não com "imaginação" e "criação". Assim, ele sugere, implicitamente, que existem comunidades "verdadeiras" que, num cotejo com as nações, se mostrariam melhores. Na verdade, qualquer comunidade maior que a aldeia primordial do contato face a face (e talvez mesmo ela) é imaginada. As comunidades se distinguem não por sua falsidade/autenticidade, mas pelo estilo em que são imaginadas. Os aldeões javaneses sempre souberam que estão ligados a pessoas que nunca viram, mas esses laços eram, antigamente, imaginados de maneira particularista - como redes de parentesco e clientela com passíveis de extensão indeterminada.Até tempos bem recentes, o idioma javanês não tinha nenhuma palavra que designasse a abstração "sociedade". Hoje em dia, podemos pensar na aristocracia francesa do ancien régime como uma classe, mas certamente ela só foi imaginada desta maneira em época bastante adiantada. Diante da pergunta: "Quem é o conde de X?", a resposta normal não seria "um membro da aristocracia", e sim "o senhor de X", "o tio da baronesa de Y"ou "um cliente do duque de Z". Imagina-se a nação limitada porque mesmo a maior delas, que agregue, digamos, um bilhão de habitantes, possui fronteiras finitas, ainda que elásticas, para além das quais existem outras nações.Nenhuma delas imagina ter a mesma extensão da humanidade. Nem os nacionalistas mais messiânicos sonham com o dia em que todos os membros da espécie humana se unirão à sua nação, como por exemplo na época em que os cristãos podiam sonhar com um planeta totalmente cristão. Imagina-se a nação soberana porque o conceito nasceu na época em que o Iluminismo e a Revolução estavam destruindo a legitimidade do reino dinástico hierárquico de ordem divina. Amadurecendo numa fase da história humana em que mesmo os adeptos mais fervorosos de qualquer religião universal se defrontavam inevitavelmente com o pluralismo vivo dessas religiões e com o alomorfismo entre as pretensões ontológicas e a extensão territorial de cada credo, as nações sonham em ser livres - e, quando sob dominação divina, então diretamente sob Sua égide. A garantia e o emblema dessa liberdade é o Estado Soberano. E, por último, ela é imaginada como uma comunidade porque, independentemente da desigualdade e da exploração efetivas que possam existir dentro dela, a nação sempre é concebida como uma profunda camaradagem horizontal. No fundo, foi essa fraternidade que tornou possível, nestes dois últimos séculos, tantos milhões de pessoas tenham-se não tanto a matar, mas sobretudo a morrer por essas criações imaginárias limitadas. Essas mortes nos colocam bruscamente diante do problema central posto pelo nacionalismo:o que faz com que as parcas criações imaginativas da história recente (pouco mais de dois séculos) gerem sacrifícios tão descomunais? Creio que encontraremos os primeiros contornos de uma resposta nas raízes culturais do nacionalismo.