Trecho do livro KING KONG E CERVEJAS

O começo do mundo Era o começo do mundo e havia um mundo anterior ao nosso, um mundo desconhecido e que nos desconhecia, que não nos interessava ou que nos causava medo, mas nunca falamos sobre ele e portanto éramos livres. Tínhamos sete anos, e os dias eram luminosos no verão e azulados no inverno, e nos recreios sentávamos os quatro nos bancos colocados estrategicamente um de frente pro outro pelo meu amigo, que gostava da minha prima Patrícia e de quem a Patrícia gostava. Chegávamos antes delas e às vezes trocávamos socos, até que elas apareciam com lacinhos amarelos nos cabelos e sentavam. A Patrícia ficava na ponta dos pés pra apoiar a lancheira nas coxas e abri-la, depois jogava a cabeça pra trás, amarrava o cabelo, e só então pegava o sanduíche de presunto e queijo embrulhado em papel-alumínio, desembrulhava e examinava o recheio levantando uma das fatias do pão: - Vocês querem? - Mas eu e o Gustavo já tínhamos combinado que da Patrícia (ela era "a dele") só ele aceitava, caso contrário ela não gostaria de perder metade do sanduíche pra dois relaxados que sempre deixavam as lancheiras em casa. Mas não aceitávamos sempre, só duas, três vezes por semana, nos outros dias comprávamos esfirras na cantina ou comíamos o macarrão da merenda, e em outros disputávamos bolas de gude com os garotos das outras classes. Não éramos ruins no jogo, e voltávamos até o banco onde as meninas estavam, mostrávamos as bolinhas adquiridas e dizíamos "viu?", e elas riam e olhavam a gente nos olhos, e ficava evidente que eles já eram namorados. Mas nós não éramos, que a Ivana eu nunca soube se gostava de mim. Ela tinha chegado de São Paulo aquele ano, com o pai e a irmã, a mãe continuava lá, os pais tinham se separado, o pai tinha parentes na cidade e resolveu se mudar pra cá. Ela e a irmã vieram meio à força, porque tinham uma turma grande em São Paulo, conheciam muitas coisas e lugares, a nossa cidade era pouco pra elas, e a irmã dela era uma chata por pensar assim. Então por que não volta pra São Paulo?, eu tinha vontade de perguntar. E um dia elas voltaram mesmo, e não aparecem mais nem pra ver os primos. Os primos eram nossos amigos, e a gente se reunia perto da casa deles, numa casa grande e abandonada e verde, com uma varanda de lajota lisa onde a gente escorregava quando chovia, e então era melhor que jogar bola. Mas a Ivana não escorregava, e a gente sempre foi mais próximo na escola, porque a minha prima era muito amiga dela e era muito minha amiga. Eu morava na casa da nossa vó em comum, ela morava numa casa que dava fundos com a casa da vó, e o meu tio, que nunca pensou duas vezes nas coisas que ele achava certo, abriu uma porta no muro e as casas ficaram unidas. Eu atravessava o quintal às três da tarde e tomava leite e comia pão com geléia com a Patrícia e a Carol, a irmãzinha dela, e depois fazíamos a lição. Eu nunca perguntava da Ivana, e a Ivana às vezes perguntava coisas pra mim: - Você vai na minha festa sábado? - É claro, pra que perguntar? - Mas ela não respondia. Mordia o sanduíche de queijo, o queijo mole porque estava calor embora ventasse, e esticava os bracinhos brancos, as mãozinhas de unhas roídas e me oferecia uma mordida. Eu queria segurar nas mãos dela pra dar mais firmeza ao sanduíche, mas não tinha coragem, punha as mãos no joelho, inclinava a cabeça pra frente e mordia pouco, que eu era um menino educado. Ela virava de lado pra falar com a Patrícia, e eu respirava fundo enquanto mordia, porque ela tinha um cheiro que eu adorava e que demorei pra descobrir e assumir que era cheiro de meleca de nariz. Mas seus dedos viviam limpos, as unhas sempre roídas, eu nunca vi meleca nenhuma da Ivana, nem no próprio nariz, que era encorpado mas delicado e perfeito pro seu rosto redondo e claro, de olhos muito verdes e lábios grossos e vermelhos. Não podia ser, eu pensava, não podia ser cheiro de meleca, mas nunca perguntei a nenhum amigo se eles já tinham sentido, e quando eles falavam sobre carros e cavalos ou sobre a bunda de não sei qual menina da quarta série, eu pensava na Ivana com cheiro de meleca de nariz e a desprezava. Quando a encontrava no dia seguinte na escola, e ela me oferecia o sanduíche mas eu tinha comprado um pastel, sentia culpa e ia jogar bola de gude e uma vez entrei numa briga à toa e fiquei com vontade de matar um garoto porque ele era burro e não entendia as regras do jogo. A Ivana nunca reclamou de nada, nunca brigou com ninguém, nunca ficou amiga de muita gente e tratava todo mundo como se fosse o melhor amigo dela. O Rogério, por exemplo, que nunca comeu com ela no recreio e vivia sujo correndo pelo pátio. Ela perguntava da mãe dele, do irmão e do skate que ele tinha comprado, como se fosse entendida em skates, como se já tivesse montado no cavalo do irmão dele, como se soubesse que a dona Gláucia era uma grande bordadeira. Eu conhecia a mãe do Rogério e nunca perguntei nada sobre ela, nem sobre o irmão. A gente andava de skate na mesma praça da igreja e ele não andava tão bem assim, mas sabia falar com as meninas sobre as manobras x e y, e eu nunca falaria sobre a minha mãe com a Ivana. Mas ela também perguntava sobre a minha mãe, ela perguntava tudo com naturalidade e ria. Você vai na minha festa sábado? Fui com o Gustavo, era perto da casa dele, e estava lotada. O Guilherme, irmão do Gustavo, e o Lelê, que era meu primo, estavam na frente da casa. Entramos juntos e cada um sentou numa cadeira dobrável de metal e ficou esperando o guaraná que a empregada ia servir. Minha mãe tinha penteado meu cabelo de lado e tinha comprado um presente pra Ivana - uma meia, um lacinho, uma boneca, uma coisa qualquer que eu não sabia se ela gostava. Mas ela olhou pra meia como se não tivesse nenhuma e disse que linda, e disse obrigada, e foi tirar uma foto com um tio que tinha vindo de São Paulo. Voltei pra cadeira de metal gelado, mas a empregada já tinha passado por ali. - Idiota! - o Guilherme ou um amigo dele disse, e todos riram. Mas tiveram que parar de jogar amendoim em mim porque a tia da Ivana chegou e disse que nós tínhamos crescido muito, já éramos homens e estávamos lindos. Cada um encheu o peito de ar e fomos jogar bola pras meninas verem quem era o melhor. Eu não era, nem o Gustavo, mas a gente não era dos piores, e a Ivana e a Patrícia e as outras não sabiam nada de futebol, era só não tomar no meio das pernas. Mas o idiota do Fernando tomou, a gente riu dele, eu fiquei feliz e quase fiz um gol. No parabéns, o suor escorrendo pela costeleta e no pescoço, a camisa colada na barriga, bati palmas fortes e cantei alto, a Ivana ria e eu nunca tinha visto alguém tão feliz no dia do aniversário. Meu pai a cada ano perguntava: você não está contente? você não está contente? Claro que estava, eu respondia, e ia brincar de faroeste com os moleques na casa da esquina que estava em reforma. Do parabéns eu não gostava, mas gostei muito do da Ivana, tinha uma tia dela de braços cruzados que sorria, não cantava, sorria e saiu no meio da música pra atender o telefone - e aquilo foi a coisa mais sincera que eu já tinha visto. Escureceu pouco depois, todos os tios foram embora, e as meninas que a Ivana só tinha chamado porque eram da nossa classe mas não eram amigas, as mães foram buscar no intervalo da novela das sete. Ficamos nós, os quatro amigos do recreio, o Guilherme, o Lelê e os amigos deles, sentados na calçada, inventando o que fazer, falando palavrão. A Patrícia sentou perto do Gustavo, eles ficavam bobos às vezes. Minha prima ficava só dele quando ficava boba, e eu não sabia como seria no dia seguinte, se ela seria a mesma pessoa, se ia tomar leite comigo. Mas aí escureceu de verdade, e a gente estava debaixo de um chapéu-de-sol, as folhas grossas barravam a luz do poste, não dava pra ver muita coisa, só os olhos e as silhuetas. Eu via os olhos da Ivana e não falava com ela; e no teatro de sombras o Guilherme ria, falando coisas no seu ouvido, a mão podre e quente na mãozinha branca - apagando o cheiro que só eu conhecia. O Lelê gritou: eu vi, e todo mundo, o Gustavo e a Patrícia, começou a gritar "namorados, namorados". Eu fingia que gritava, ria pro Gustavo, mas ele não ria, gritava apenas. Meus pais buzinaram e me levaram embora. A Ivana disse tchau, mas não tinha mais o sorriso que era pra todos. No recreio ela e a Patrícia continuaram sentando no mesmo banco, mas eu e o Gustavo não queríamos mais ficar perto delas. Um dia o Gustavo ficou coçando o pau no meio da aula e teve que ir pra diretoria. Voltou com uma história de que fulana da segunda série deixava enfiar o dedo. Era só sair logo que batesse o sinal, encostar na parede do corredor e esperar fulana passar no sentido do pátio. E depois descobrimos muitas meninas que deixavam passar a mão, e descobri que só no corredor cheio de gente elas deixavam. Fosse tentar na aula, fora da escola, na fila da cantina: elas te olhavam sérias e você não entendia mais nada, e ficava esperando o sinal do recreio bater de novo pra tentar e saber se estava ou não ficando louco. Mas eu não estava não, e meu pai e um tio ficaram muito alegres quando contei que tinha passado a mão numa menina enquanto dançava com ela. Eles contaram histórias da época deles, e fui descobrindo um mundo que não era o meu mas tinha semelhanças, e percebi que eu tinha agora que ficar atento a tanta coisa, tudo tinha ficado estranho e as pessoas sabiam mais do que eu. Os pais dos meus amigos também contavam histórias de meninas, os moleques mais velhos contavam, até o Guilherme - que a gente começou a chamar de Frango porque o pai dele dançava bêbado e parecia um frango - contou da Ivana. Pra mim já não importava, embora os moleques tenham me olhado na hora e isso me deixou vermelho. E eu também comecei a contar umas coisas que eles não acreditavam e eram verdade. Só nunca ninguém me contou, e eu não contei a ninguém, que a mãozinha de alguma menina tinha cheiro de meleca de nariz. A Ivana andou com a nossa turma até sair da cidade, aos treze anos. Uma vez dei um esporro nela por uma bobagem qualquer. Ela não revidou. Me olhou nos olhos assustada e perguntou com uma sinceridade insuportável: - O que é que eu fiz de errado? Ela era uma menina muito educada.