Trecho do livro O AVESSO DA VIDA

1. BASILÉIA Assim que o médico descobriu no check-up de rotina uma anormalidade no eletro (e depois que a cateterização coronária no hospital revelou as dimensões da doença), Henry começou a ser medicado com bons resultados; podia trabalhar e continuar vivendo uma vida normal, como antes. Nem mesmo se queixava das dores no peito ou da falta de ar que seria de se esperar num paciente com obstrução arterial avançada. Não tinha sintomas antes do exame que revelou a anormalidade, e assim permaneceu durante o ano que antecedeu sua decisão de operar - sem sintomas, à exceção de um único e terrível efeito colateral causado pela mesma medicação que estabilizava seu estado e reduzia substancialmente o risco de um ataque do coração. O problema surgiu duas semanas depois que começou o tratamento. - Já ouvi isso mil vezes - o cardiologista disse quando Henry telefonou para contar o que estava se passando com ele. O cardiologista, assim como Henry um profissional bem-sucedido e ativo, que não tinha ainda entrado na casa dos quarenta, não poderia ter sido mais compreensivo. Ia tentar reduzir a dose até um nível em que o remédio, um bloqueador-beta, continuasse controlando a moléstia coronária e reduzindo a hipertensão, mas não interferisse com as funções sexuais de Henry. Fazendo uma sintonia fina do medicamento, ele disse, às vezes se chegava a um meio-termo. Experimentaram seis meses, primeiro com a dosagem e, quando isso não funcionou, com remédios de outros laboratórios, mas nada: ele não acordava mais com sua ereção matinal, não tinha mais potência suficiente para relações sexuais com a mulher, Carol, nem com a assistente, Wendy, certa de que era ela, e não o remédio, a responsável por esta surpreendente mudança. No final do expediente, com a porta de fora do consultório trancada e as persianas baixadas, trabalhava com toda sua destreza para despertá-lo, e de trabalho se tratava, labuta árdua para os dois; quando ele disse que não adiantava e implorou para que parasse, tendo que abrir ele próprio suas mandíbulas para que parasse, ela se convenceu ainda mais de que a culpa era sua. Uma tarde em que se debulhava em lágrimas, dizendo que sabia que era apenas uma questão de tempo até ele sair para a rua e encontrar alguém novo, Henry bateu nela. Se tivesse sido o ato de um brutamontes, de um selvagem num frenesi orgásmico, Wendy teria, como de praxe, sido complacente; entretanto, a manifestação não era de êxtase mas sim de completa exaustão diante da cegueira dela. Não compreendia, a burra! Claro que ele também não, ainda não tinha apreendido a confusão que uma perda dessas podia provocar em alguém que calhava de adorá-lo. Imediatamente depois foi assaltado por remorsos. Abraçando-a, garantiu a Wendy, que continuava chorando, que agora ela era praticamente tudo em que ele pensava todos os dias - de fato (embora não pudesse dizê-lo) se lhe permitisse achar uma colocação para ela em outro consultório dentário, não teria que ser lembrado a cada cinco minutos daquilo que não podia mais ter. Ainda havia momentos, durante o trabalho, em que a acariciava disfarçadamente, ou observava com o velho desejo enquanto ela mexia as formas delineadas pela túnica e calças brancas, mas então se lembrava das pilulazinhas cor-de-rosa e mergulhava em desespero. Não demorou e, sobre aquela jovem que o adorava e que teria feito qualquer coisa para lhe devolver a potência, Henry começou a ter as fantasias as mais demoníacas, dela sendo possuída na sua frente por três, quatro e cinco outros homens. Não conseguia controlar suas fantasias sobre Wendy e seus cinco homens sem rosto, e no entanto, no cinema com Carol, preferia agora fechar os olhos e descansar a vista até que as cenas de amor terminassem. Não suportava nem ver as revistas masculinas empilhadas no barbeiro. Tivera que fazer tudo para não levantar e sair da mesa quando, durante um jantar, um de seus amigos começou a fazer piadas sobre sexo. Começou a sentir as emoções de uma pessoa completamente sem atrativos, um desdém puritano, impaciente, ressentido pelos homens viris e mulheres apetitosas às voltas com seus jogos eróticos. O cardiologista, depois de lhe receitar o remédio, tinha dito: - Esqueça seu coração e viva. Mas ele não conseguia porque, durante cinco dias por semana, das nove às cinco, não podia esquecer Wendy. Voltou ao médico para conversar seriamente sobre cirurgia. O cardiologista também já tinha ouvido aquilo umas mil vezes. Com toda paciência, explicou que não gostavam de operar gente sem sintomas em quem a doença mostrava todos os sinais de estar se estabilizando com a medicação. Se Henry optasse finalmente pela cirurgia, não seria o primeiro paciente a achar isso preferível a um número indefinido de anos de inatividade sexual; ainda assim, o médico o aconselhou seriamente a esperar e ver como ele se "ajustaria" com o correr do tempo. Embora Henry não fosse o pior dos candidatos para a ponte de safena, a localização dos enxertos de que precisava também não fazia dele o candidato ideal. - O que isso significa? - Henry perguntou. - Significa que esta operação não é sopa, mesmo nas melhores circunstâncias, e as suas não são as melhores. Algumas pessoas até morrem, Henry. Viva com isso. Assustou-se com estas palavras, a ponto de, no carro, indo para casa, censurar-se muito, lembrando-se de todos aqueles que, por necessidade, viviam sem mulher, em condições muito mais dolorosas que a sua - homens na prisão, homens em guerra... mas logo depois estava se lembrando de novo de Wendy, imaginando todas as posições possíveis em que poderia ser penetrada pela ereção que não tinha mais, concebendo-a com a mesma fome de um presidiário que sonha acordado, mas sem poder apelar para o escape ligeiro, grosseiro, que mantém um homem solitário semi-são em sua cela. Veio-lhe à mente como tinha vivido feliz sem mulheres quando era um menino na pré-adolescência - será que tinha havido um período de vida melhor que aquela década de 40, aqueles verões na praia? Imagine-se com onze anos de novo... mas aquilo adiantou tanto quanto fingir que estava cumprindo pena em Sing Sing. Veio-lhe à mente o terrível desregramento gerado pelo desejo incontrolado - a maquinação, a expectativa, o ato loucamente impetuoso, o sonhar constante com o outro e, quando um destes outros fascinantes se transforma por fim em amante clandestina, a intriga, a ansiedade e o engano. Agora poderia ser um marido fiel para Carol. Nunca mais teria que mentir para Carol - não teria mais sobre o que mentir. Poderiam uma vez mais gozar daquele casamento simples, honesto, leal, que tiveram até que Maria aparecesse no consultório, dez anos atrás, para arrumar uma coroa. De início tinha ficado tão atarantado com o vestido de jérsei verde, os olhos turquesa e a sofisticação européia que mal conseguiu manter o papo social em que, normalmente, era tão bom, que dirá passar uma cantada enquanto Maria sentava-se na cadeira, abrindo obedientemente a boca. Pela formalidade com que se trataram durante as suas quatro consultas, Henry nunca havia de imaginar que, às vésperas de seu regresso à Basiléia, dez meses depois, ela lhe diria: - Jamais pensei que pudesse amar dois homens. E que a separação seria tão horrenda - tinha sido tão novo para ambos que conseguiram transformar em virginal seu adultério.Em nenhum momento ocorrera a Henry, até que Maria apareceu para lhe dizer, que um homem com sua aparência podia, provavelmente, dormir com todas as mulheres atraentes da cidade. Não tinha vaidade sexual, era profundamente tímido, um homem jovem impulsionado ainda, em grande parte, pelos sentimentos de decoro que absorvera e internalizara sem nunca questioná-los a sério. Geralmente, quanto mais atraente era a mulher, mais retraído Henry ficava; ao ver surgir uma mulher desconhecida a quem julgasse especialmente apetitosa, ele se tornava irremediável, rigidamente formal, perdia toda a espontaneidade e muitas vezes nem conseguia se apresentar sem corar. Aquele era o homem que tinha sido enquanto marido fiel - por isso tinha sido um marido fiel. E agora estava condenado a ser fiel outra vez. O pior de se ajustar à medicação tinha sido ajustar-se à medicação. Chocava-o que pudesse viver sem sexo. Havia um jeito, ele estava dando um jeito, e isso estava matando-o - e foi isso, a incapacidade de viver sem ele, o que o matou. Ajustar-se significava resignar-se a ser desse jeito, e ele se recusava a ser desse jeito, sentia-se ainda mais desmoralizado por ter que se curvar ao eufemismo "desse jeito". No entanto, o ajustamento tinha transcorrido tão bem que, uns oito ou nove meses depois que o cardiologista o aconselhara a não se precipitar numa operação antes de testar o efeito do tempo, Henry não conseguia mais se lembrar do que era uma ereção. Ao tentar, viu-se diante de imagens dos velhos gibis pornográficos, saídas dos "livrecos quentes" que haviam revelado aos garotos de sua geração o outro lado da carreira de Dixie Dugan. Estava contaminado por imagens mentais de pintos grotescos e por fantasias de Wendy com todos aqueles outros homens. Imaginava-a chupando todos. Imaginava-se a si próprio chupando todos. Em segredo, começou a idolatrar todos os homens potentes, como se ele mesmo não importasse mais como homem. Apesar de moreno, alto, bem-apanhado, físico atlético, parecia ter saltado, da noite para o dia, dos trinta para os oitenta. Um sábado de manhã, depois de dizer a Carol que ia dar um passeio pelos morros da Reserva - "para ficar só", explicara soturnamente -, foi de carro até Nova York, para ver Nathan. Não telefonou antes porque queria estar livre para dar meia-volta e ir para casa se decidisse, no último minuto, que a idéia não era boa. Não se podia dizer que fossem mais dois adolescentes, lá no quarto trocando segredos hilariantes - desde a morte dos pais não eram nem mesmo como dois irmãos. Entretanto precisava desesperadamente de alguém que o ouvisse. Tudo que Carol conseguia dizer é que ele não devia nem começar a pensar em cirurgia se isso significava correr o mais leve risco de deixar órfãos seus três filhos. A doença estava sob controle e, aos trinta e nove anos, ele continuava sendo um tremendo sucesso de todas as maneiras imagináveis. Como é que tudo isso podia importar tanto, de repente, se havia anos já que eles raramente faziam amor com paixão de verdade? Não estava se queixando, acontecia para todo mundo, não conhecia um casamento que fosse diferente. - Mas eu só tenho trinta e nove anos - Henry respondera. - Eu também - ela dissera, tentando ajudar sendo sensata e firme -, mas depois de dezoito anos, eu não espero que o casamento seja um tórrido caso de amor. Era a coisa mais cruel que podia imaginar uma mulher dizendo ao marido: - Afinal, para que é que precisamos de sexo? Desprezou-a por ter dito isso, odiou-a tanto que, naquela mesma hora, tomou a decisão de falar com Nathan. Odiava Carol, odiava Wendy e, se Maria estivesse por lá, a teria odiado também. E odiava os homens, homens com seus enormes pintos duros só de olhar para a revista Playboy. [...]