Trecho do livro DOMINGOS SODRÉ UM SACERDOTE AFRICANO

Prefácio Às 4h30 da tarde do dia 25 de julho de 1862, uma sexta-feira, foi preso em sua casa em Salvador o africano liberto Domingos Pereira Sodré. Ele tinha sido denunciado pessoalmente ao chefe de polícia por um funcionário da Alfândega, que o acusava de receber por suas adivinhações e "feitiçarias" objetos roubados por escravos a seus senhores. O denunciante, que foi logo atendido, era um dos prejudicados. "Candomblé" foi como o chefe de polícia denominou o que existia na casa do africano, termo já em voga nessa época para definir crenças e práticas religiosas de origem africana, ou tidas como tal, bem como o local em que estas se realizavam. Assim também, com esse sentido largo, utilizarei o termo neste livro. Encontrei há muitos anos os primeiros documentos pertinentes à prisão de Domingos Sodré, que consistem numa série de ofícios trocados entre o chefe de polícia Antônio de Araújo Freitas Henriques e o subdelegado da freguesia de São Pedro, Pompílio Manoel de Castro. Essas fontes me levaram a outras que me permitiram ampliar o foco sobre o incidente de 1862. Em seguida, fui atrás de informações a respeito do liberto africano e descobri muita coisa. Ele tinha nascido em Lagos, na atual Nigéria, foi capturado e vendido a traficantes em circunstâncias desconhecidas, na Bahia tornou-se escravo num engenho de importante proprietário do Recôncavo, que com sua morte o deixaria alforriado, segundo fortes indícios. Não sei quando Domingos se transferiu do meio rural para a Cidade da Bahia, como então Salvador era conhecida, mas ali encontrei-o pela primeira vez em meados da década de 1840, num registro de batismo, no papel de padrinho e já liberto. Na cidade, Domingos prosperou e veio a ser proprietário de escravos, do que tomei conhecimento pelas transações de compra e venda e pelas cartas de alforria registradas em cartório por diversos tabeliães de Salvador, que também registraram a compra e a venda de duas casas que ele possuiu. Domingos casou-se na Igreja, enviuvou e casou-se de novo, segundo consta em documentos paroquiais. Pelo menos em duas ocasiões, encontrei-o a demandar na justiça contra outros africanos libertos, a um dos quais acusou de assassinar um amigo seu. Perto de morrer, ele ditou seu testamento, deixando seus poucos bens para a mulher, Maria Delfina da Conceição. Seu inventário conta a história de sua doença, morte e funeral. O volume de informações até agora encontradas sobre Domingos Sodré - e mais há de haver - o torna um caso excepcional, embora não único, entre os libertos africanos no Brasil. No entanto, ao mesmo tempo em que foi possível desvendar diversos aspectos de sua biografia, muitos outros permanecem obscuros. Por isso, o leitor perceberá que nosso personagem sai freqüentemente de cena para dar lugar ao seu mundo e a outros personagens que o povoam, através dos quais sua história é em grande medida contada. Esse método narrativo cabe em qualquer biografia, pois qualquer um vive em certo contexto, imediato ou mais amplo, do qual fazem parte outros indivíduos mais ou menos próximos. Mas é claro que a documentação disponível para contar a história de barões do Império do Brasil é, em regra, mais copiosa do que aquela relativa a escravos ou libertos do mesmo Império. Estas são biografias mais fragmentadas, cobertas de lacunas. No entanto, além de iluminar muitos aspectos de experiências de vida específicas, elas servem como guia para conhecer uma época, uma sociedade e em particular os homens e mulheres que compunham as redes de relações a que pertenciam os biografados, com suas diferenças étnicas, suas hierarquias sociais e econômicas, suas instituições e práticas culturais. Domingos viveu no Brasil a maior parte do século XIX. Desembarcado na Bahia no final da segunda década do século, aproximadamente, ele encontrou a região num momento de grande prosperidade, e esta acoplada à sua principal fonte de riqueza, a produção de açúcar. A cana era cultivada e processada nos engenhos do Recôncavo por escravos de origem africana e seus descendentes, cujos números aumentaram dramaticamente com a intensificação do tráfico que acompanharia a boa fortuna da economia baiana na época. Domingos foi uma das numerosas vítimas dessa engrenagem de dimensões atlânticas. Na terra que o escravizou, ele viu acontecerem e serem derrotadas, na primeira metade do Oitocentos, dezenas de revoltas escravas nos engenhos do Recôncavo, em Salvador e suas imediações. Também testemunhou, entre 1820 e 1840, grandes transformações e abalos políticos recorrentes, a começar pelas lutas da independência, seguidas de movimentos antilusos, federalistas e republicanos, motins militares e até uma revolta popular contra a proibição dos enterros nas igrejas. Nas décadas seguintes, acompanhou a Cidade da Bahia refazer seu tecido urbano com a abertura de ruas e a construção de praças, a diversificação de seus meios de transporte, o crescimento de sua população, a par com o declínio da presença africana nela. Viu as elites locais abraçarem projetos civilizatórios moldados na Europa e combaterem costumes africanos e afro-brasileiros que consideravam incivilizados. A escravidão cresceu, se transformou, declinou com o fim do tráfico através do Atlântico e foi extinta ao longo da vida de Domingos na Bahia. Domingos Sodré morreu em Salvador, nas vésperas da abolição. Através da vida de Domingos penetramos no mundo dos libertos africanos, centenas de homens e mulheres que tinham conseguido, por meio de acordos com seus senhores, se alforriar gratuitamente ou, mais amiúde, comprar sua alforria. Esses libertos, que na sua maioria trabalhavam no ganho de rua, tiveram papel fundamental na formação do candomblé, uma religião que se constituiu em suas grandes linhas precisamente na época em que Domingos viveu na Bahia.Muitos personagens do candomblé oitocentista, libertos como Domingos, comparecem neste livro e entrelaçam sua biografia com a dele. Chamados de feiticeiros nos documentos oficiais e na imprensa, os adivinhos, curandeiros e chefes de casas de culto foram alvo de perseguição sistemática pela polícia baiana, mas as autoridades nem sempre concordavam sobre o melhor método de puni-los. Na pauta policial destacava-se o perigo que esses personagens causavam à ordem escravista devido a suas transações com escravos que deles demandavam ajuda para enfrentar seus senhores. Mas a disseminação do candomblé por outros setores da população, inclusive brancos de alguma estatura social, não foi preocupação menor dos que combatiam as crenças e práticas rituais trazidas e reconstituídas no Brasil pelos africanos. A vida de Domingos se desenrola como parte desse embate cultural e serve como guia para narrar a história do candomblé na Bahia de seu tempo. 1. A polícia e os candomblés no tempo de Domingos O CANDOMBLÉ ENTRE A TOLERÂNCIA E A REPRESSÃO Na antevéspera do Natal de 1858, um grupo de africanos libertos se reunia num batuque no bairro da Cruz do Cosme, periferia de Salvador. De repente, a casa foi cercada pela polícia e invadida; pessoas foram presas e objetos cerimoniais de candomblé apreendidos. Essa ação policial criou um mal-estar entre o subdelegado local e o chefe de polícia. Em ofício ao chefe de polícia A. M. de Magalhães e Mello, o subdelegado Manoel Nunes de Faria queixou-se de que não tinha sido informado a respeito daquela diligência policial. O grupo de africanos, soube ele depois, tinha sido preso "por se encontrar batucando". O subdelegado levantou dúvida sobre essa alegação, e protestou: Primeiramente levo ao conhecimento de V. Sa. que tal batuque não se deu, do que estou bastante informado, e que os Africanos estavam em seus trabalhos, e isto não é mais do que uma perseguição, e se V. Sa. por acaso vier uma tarde ver a lavoura destes Africanos se admiraria, e então quereria até garanti-los nesta freguesia, portanto é justo que à vista desta perseguição V. Sa. os deve mandar soltá-los, e se assim o fizer obra com muita justiça. Disse mais que o tenente-comandante dos policiais urbanos havia agido "como que não houvesse subdelegado na freguesia, o que é muito de admirar"; e definiu aquela como ação típica de "absolutismo", indicativa da falta de confiança na sua autoridade. Se o chefe de polícia não confiava nele, "nada mais justo do que demiti-lo", concluiu magoado. Para melhor entender essa polêmica, e outras que virão, algo deve ser dito sobre a estrutura do aparato policial na Bahia dessa época. O chefe de polícia da província, nomeado diretamente pelo imperador, ficava no topo da cadeia de comando e sob ele estavam delegados, subdelegados e o corpo de policiais armados, que tinha sua própria hierarquia. Os cargos de delegado e subdelegado foram criados em 1841, e seus ocupantes escolhidos pelo presidente da província a partir de uma lista tríplice feita pelo chefe de polícia. Eles substituiriam a maioria das funções policiais dos juízes de paz, cujo cargo era eletivo e fora criado em fins da década de 1820. Salvador contava com dois delegados, um para as freguesias urbanas, outro para as suburbanas e as rurais. Mas o chefe de polícia se relacionava diretamente com os subdelegados, que cuidavam do policiamento cotidiano em cada freguesia - ou em cada distrito de freguesias maiores - assistidos por um amanuense, por inspetores de quarteirão e, quando necessário, por oficiais de justiça e policiais da guarda urbana. Estes últimos, ademais, rondavam a cidade à cata de infratores das leis. O cargo de subdelegado não era remunerado, mas refletia e acrescentava poder, respeitabilidade e prestígio a seus ocupantes. Foi precisamente para defender esses atributos do cargo que o subdelegado da Cruz do Cosme queixou-se ao chefe de polícia a respeito da tomada da casa dos africanos. O bairro da Cruz do Cosme era típico da periferia rural de Salvador. Localizado no segundo distrito da freguesia de Santo Antônio Além do Carmo, ali residia e tinha suas roças um grande número de africanos libertos que viviam da lavoura, no que estava certo o subdelegado Manoel de Faria em sua correspondência ao chefe de polícia. Seguindo a tradição alimentar de suas terras, os libertos, às vezes coadjuvados por escravos, plantavam principalmente inhames, tanto para consumo próprio quanto para abastecer a cidade. O bairro rural constituía o típico "campo negro" - de que fala, ao estudar o Rio de Janeiro, Flávio Gomes -, onde solidariedades, negociações e também competição e conflitos marcavam o dia-a-dia de comunidades formadas em torno da pequena agricultura e do pequeno comércio. A Cruz do Cosme constava com freqüência dos relatórios policiais. Em setembro de 1859, o subdelegado João de Azevedo Piapitinga (gravem este nome) informou que vinha recebendo dos lavradores locais freqüentes queixas "pelos furtos que lhes fazem constantemente". Três africanos foram presos por roubo de inhames. Mas o roubo da lavoura alheia não constituía o único problema. Animado pelo vai-e-vem de moradores da cidade que por lá circulavam, sobretudo nos finais de semana, o lugar era palco de muitas "desordens", segundo o subdelegado. Em 1860, Piapitinga pediria reforço policial para combater em seu distrito "assassinos, desertores, pretos fugidos, os presos que se evadem das prisões, e os jogadores". Muita dessa gente freqüentava os candomblés ali estabelecidos, também considerados por diversas autoridades parte da desordem suburbana. Eis onde entra o ataque à casa dos batuqueiros africanos no Natal de 1858. Ao prestar contas desse episódio ao presidente da província, o chefe de polícia informou que no dia 23 de dezembro, entre outras atividades policiais, tinham sido presos um homem e doze mulheres, todos africanos libertos, encontrados "em danças e batuques, sendo apreendidos diversos objetos e vestimentas de que usam em tais danças". Não deu detalhes sobre os objetos e vestimentas, mas listou nominalmente os presos: João Francisco da Costa, Balbina Maria d'Assumpção, Francisca Perpetua, Aniceta Rita Junqueira, Ermelinda Bulcão, Caetana dos Santos, Juliana de Carvalho, Lourença Maria da Piedade, Maria Vitória, Maria Joana, Maria Luiza, Felicia e Luiza. Ainda segundo o chefe de polícia, dessa vez em resposta ao protesto do subdelegado Faria, a diligência sucedera "reiteradas representações de pessoas vizinhas contra a algazarra que freqüente[mente] fazem muitos pretos em candomblé na casa varejada". E passou a acusar o subdelegado de negligência policial, pois aquela ação teria sido desnecessária se, naquele distrito, "a polícia fosse tão vigilante e ativa" que prescindisse de ele próprio, o chefe de polícia, ser obrigado a tomar providência contra aqueles africanos. Finalmente, estranhou "o modo descomedido" usado por seu subordinado no ofício que escrevera e terminou com a ameaça de demiti-lo por falta daquela "calma indispensável a quem exerce qualquer porção de autoridade". A tréplica do subdelegado, no dia 27 de dezembro, foi em tom humilde de conciliação. Alegou que considerasse aquele seu ofício um desabafo diante de uma diligência que desmoralizava sua autoridade, feita à sua revelia em seu próprio distrito. Agora, sabedor de que a ordem partira diretamente do chefe, entendia e se conformava. Encerrou prometendo estar "sempre pronto para o serviço público", e esqueceu dos africanos que ele antes considerara injustiçados. Mas os próprios africanos, ou melhor, as mulheres do grupo, defenderam-se muito bem, encabeçadas por Aniceta Rita Junqueira. No dia seguinte à prisão, escreveram petição ao senhor chefe de polícia, que explicava não passarem elas de honestas lavadeiras, as quais, após o serviço na fonte, costumavam se dirigir à casa invadida pela polícia apenas para descansar e se alimentar, antes de seguirem para a cidade, onde alegaram morar. Porém, "fora a casa em que costumam estar cercada por uma força policial, e então presas e recolhidas ao Aljube", que era uma cadeia eclesiástica dos tempos coloniais agora usada para pequenos infratores, principalmente escravos. As libertas africanas alegaram que "não se achavam nessa casa para fins ilícitos", e pedira para serem soltas. No mesmo dia, o chefe de polícia as despachou livres, por sorte antes que a polêmica com o subdelegado tivesse início, e ele quisesse manter as africanas na cadeia para não dar a impressão de que agira sob pressão de um subordinado impertinente. Esse episódio é representativo do que acontecia nos bastidores da repressão policial aos candomblés oitocentistas na Bahia. As autoridades policiais com freqüência se desentendiam. Nina Rodrigues, a respeito do período colonial, observou que "a supressão ou a manutenção dos batuques se constituiu em pomo de acesa discórdia". Em linhas gerais, o mesmo pode ser dito sobre a política de repressão ao candomblé no tempo de Domingos Sodré. Nesse período, os chefes de polícia geralmente investiram num controle mais rígido das manifestações culturais africanas, ao passo que muitos subdelegados - que tinham de tratar com o problema no corpo-a-corpo do dia-a-dia - optavam por uma política de negociação, segundo sugerem as numerosas denúncias de candomblés e de outros batuques que ressoavam em diversos pontos da cidade. Como sugeriu Dale Graden, algumas autoridades policiais "reconheciam os benefícios a serem ganhos de uma diplomacia silenciosa". A polícia e outras autoridades foram repetidas vezes acusadas pela imprensa de conivência com os candomblés e batuques africanos. [...]