Trecho do livro SIR RICHARD FRANCIS BURTON

1. O CIGANINHO O pai de Richard Burton, Joseph Netterville Burton, era um cavalheiro numa época em que o termo tinha um sentido preciso. Ocupava a posição de tenente-coronel no exército inglês, tendo a seu crédito vários anos de serviço na ativa. Embora de linhagem inglesa, tinha nascido na Irlanda, onde seu pai, o reverendo Edward Burton, era pároco da igreja anglicana em Tuam, além de possuir terras. Por isso, Richard foi várias vezes considerado irlandês, mas na verdade não tinha qualquer traço de sangue irlandês. O reverendo Burton se casou com Maria Margaretta Campbell, a qual, se as românticas histórias da família forem verdadeiras, descendia de um filho ilegítimo do rei bourbônico francês Luís XIV com sua amante, a linda condessa "La Belle" Montmorency. A árvore genealógica de Burton incluía um bispo e um almirante. Durante alguns anos, houve também um baronato, mas o título ficou jacente e não pôde ser retomado. Embora Burton fosse um sobrenome comum na Inglaterra, também era cigano ou romani, e todos concordavam que Richard Burton tinha uma aparência geral semelhante à dos ciganos. Os admiradores, que nem por um momento tolerariam a presença de um verdadeiro cigano, tomavam suas intermináveis andanças como sinal de seu sangue zíngaro. A carreira militar de Joseph Burton transcorreu em locais relativamente agradáveis e calmos. Ingressou no exército durante a adolescência, quando da convocação de voluntários para a guerra contra Napoleão; os que fossem se alistar levando junto um certo número de outros voluntários recebiam um posto. "Assim, meu pai se viu como oficial aos dezessete anos de idade, quando devia estar na escola", dizia Burton. O jovem oficial foi enviado à Sicília, onde, malgrado a vontade do povo local, uma guarnição inglesa sustentou de 1806 a 1814 uma dinastia Bourbon vacilante, à força de subsídios e da própria imposição de sua presença militar. Em 1814, os ingleses entraram no continente, invadindo Livorno com o auxílio de tropas sicilianas, e avançaram até Gênova. Nessa cidade, o coronel Burton foi nomeado para o cargo de prefeito. Ele entrou de todo o coração na vida social da cidade. Uma das estrelas em cuja órbita giravam os oficiais era a desventurada princesa Carolina, esposa do príncipe de Gales, futuro Jorge IV, tremendo libertino conhecido como "o patife mais rematado da Europa". O casamento não foi feliz, e Carolina foi enviada à Itália, para se transformar na estrela de um grupo de pessoas da alta sociedade cujo comportamento, dizia-se, era "escandaloso". Corria o boato de que a própria Carolina mantinha uma ligação adúltera com um certo Bartolomeo Bergami. Em Gênova, pelo que escreveu Burton, "sua gentileza para com os oficiais lhe granjeou a grande simpatia deles a seu favor". Quando Jorge subiu ao trono em 1820, ordenou que Carolina não fosse reconhecida como rainha e deu início ao processo de divórcio na Câmara dos Lordes, sob a acusação de adultério. O coronel Burton foi chamado para depor contra a rainha, mas se recusou a testemunhar. Esse ato de coragem lhe custou caro. Joseph Burton foi afastado da ativa pelo primeiro-ministro, o duque de Wellington, e posto a meio-soldo. A recusa do coronel em comprometer a honra de uma mulher chegou a afetar seus próprios filhos: mais tarde, Richard se queixou de que teve de começar a vida como um cadete subalterno da Companhia das Índias Orientais, e seu irmão Edward só conseguiu entrar num regimento de marcha, ao passo que os primos foram aceitos em setores de mais categoria, como a Guarda Real e outros corpos de elite das forças britânicas. Durante o processo contra Carolina, o coronel Burton tinha ido até a Irlanda para verificar as propriedades da família. Encontrou-as num estado pavoroso. Reuniu os arrendatários e, depois de devidamente bajulado por eles - como diz seu filho -, disse-lhes que, a partir daquele momento, o aluguel devia ser pago com mais regularidade. A única regularidade que conseguiu com isso foi sofrer freqüentes disparos. Assim, o coronel decidiu abandonar as suas pretensões e deixou que as coisas seguissem seu curso normal. Mas a volta do coronel à Inglaterra não se resumiu a puras perdas. Encontrou uma noiva. Chamava-se Martha Baker, e celebraram-se as devidas cerimônias. "Como costumam fazer os bonitões", disse Richard Burton sobre o casamento do pai, "ele se casou com uma feiosa", e "os filhos, como dizem, puxaram à mãe." Essa modéstia em relação à mãe não era apenas discrição filial. Uma outra pessoa disse que ela era "uma mulher completa, mas feinha". Segundo outra opinião, era "uma mulher magra e delicada, de boa família". Fossem quais fossem os antepassados e as aparências de Martha Baker, sua família tinha dinheiro. Trouxe como dote 30 mil libras, quantia enorme para a época, mas o pai dela vinculou o dinheiro, de tal modo que era pago em parcelas. Foi uma medida que acabou se revelando feliz, pois o coronel fez grandes especulações um tanto descuidadas em várias iniciativas de risco. O casamento gerou um filho no prazo que seria de esperar. A criança foi batizada como Richard Francis Burton, nomes do pai de Martha e do irmão do coronel Burton. A data de nascimento foi 19 de março de 1821 - "dia de são José", observou Richard Burton. A criança tinha cabelo ruivo, olhos azuis e tez clara, mas, ao crescer, esses traços anglo-saxões desapareceram para dar lugar ao famoso "ar cigano, olhar cigano". Depois dos problemas com os rendeiros irlandeses e da redução do soldo, a vida na Inglaterra não atraía muito o coronel. Como sua esposa tinha rendimentos regulares e, afora um interesse diletante pela química, não havia muito o que fazer para passar o tempo, o coronel, que era asmático, resolveu sair do país logo depois do nascimento de seu primogênito. O ar puro e seco da França era tremendamente sedutor. Embalando as coisas da casa, o coronel Burton se mudou com mulher e filho para o vale do Loire, para um velho castelo em Tours, onde existia uma pequena colônia e escola inglesa. Nas lembranças de Richard Burton, a cidade era pitoresca e atraente, o clima saudável, a caça abundante, a vida barata, e o povo local, apesar da derrota de Napoleão em Waterloo, amistoso. Em Tours, os pulmões de Joseph Burton logo melhoraram. Os Burton ganharam outros dois filhos, Maria Catherine Eliza em agosto de 1823 e Edward Joseph Netterville em agosto de 1824. A família voltou à Inglaterra para o nascimento de Edward, sendo que ele e Maria foram batizados na igreja paroquial de Elstree. De início, a vida para as crianças na França era pura brincadeira, cheia de prazeres infantis: comer folheados de maçã ("admiráveis", lembra Burton) na confeitaria de madame Fisterre e uvas do jardim; no tempo de calor, brincar de arca de Noé embaixo das sebes de buxo, subir pela cauda dos cavalos, colher cascas de caracol e prímulas nas veredas, brincar com três pointers pretos, Juno, Júpiter e Ponto. As crianças ficavam mais ou menos a cargo dos empregados, enquanto os pais desfrutavam da vida social da colônia inglesa. Lembra Burton que na época não existiam esnobes, mas a comunidade de Tours era profunda e patrioticamente inglesa. Além de serem intensamente protestantes num país católico, os ingleses eram muito nacionalistas. "Qualquer inglês que, naqueles tempos, se recusasse a duelar com um francês era posto no ostracismo", conta Burton. "As moças inglesas que flertassem com estrangeiros eram desprezadas por aqueles ingleses que viveram em países negros. Mulheres brancas que fazem essas coisas baixam de nível." A educação foi fortuita. O coronel Burton tinha apenas algumas tintas disso e daquilo e, mesmo que quisesse mais para os filhos, a instrução nunca foi tão sistemática como exigiriam pais de gerações futuras. No entanto, o pequeno Richard foi iniciado nos rudimentos de latim aos três anos de idade. Aos quatro, ganhou uma gramática de grego. (Burton achava que os pais pretendiam que ele fosse "aquela triste criatura, a criança-prodígio".) Então, de repente, os felizes anos de brincadeiras terminaram. Numa certa manhã, as crianças viram as cartilhas amarradas com fitinhas. Richard e Edward foram postos às pressas numa carruagem, e de lá seguiram para uma escola na cidade, dirigida por um irlandês expatriado de nome Clough. Pelo visto, devia ser uma escola bem pequena, com inglesinhos e francesinhos em carteiras riscadas e manchadas de tinta e um professor simpático apenas quando os pais estavam por perto. Certo dia, o sr. Clough fugiu por causa de suas dívidas, sendo substituído por sua irmã, e a isso se resumiu todo o aprendizado formal dos garotos Burton fora de casa. Em seguida veio um preceptor, John Gilchrist, adepto das vergastadas, para ensinar a desenhar, dançar, falar francês e tocar música, todas elas coisas indispensáveis para damas e cavalheiros ingleses do século XIX. Mas o estudo predileto dos dois garotos eram as armas, quase desde que começaram a andar, quando ganharam espingardinhas de pressão e espadas de madeira e latão. Richard logo deu mostras de um traço violento em seu caráter. Aos cinco anos, quis matar o porteiro por ter troçado de suas armas de brinquedo. O coronel contratou várias moças e rapazes para manter a disciplina entre os filhos: trabalho ingrato. "Nós, os meninos, viramos perfeitos diabinhos, e fazíamos todas as estripulias, apesar da vara. Dávamos dor de cabeça a nossas bonnes, geralmente pegando e levantando suas anáguas." Quando uma babá recém-contratada levava os garotos para passear, eles a derrubavam e pulavam em cima com suas minúsculas botinhas. Havia um ar de violência por toda parte. Às vezes, Gilchrist lhes dava reguadas nas mãos. As brigas entre crianças eram proibidas, mas os garotos ingleses e franceses, estes geralmente filhos dos camponeses, viviam brigando. Os Burton brigavam com os moleques franceses com paus e pedras, socos e bolas de neve. "Nossos pais não tinham muita idéia de como lidar com os filhos", disse Burton. Richard tinha um gênio ruim; era de maneiras rudes e, como disse sua sobrinha Georgiana Stisted, "arteiro como um mico", mas "adorava a mãe". Apesar de sua grosseria, "havia um lado doce em sua natureza. Gostava de todos os tipos de bichinhos e tentava salvar os feridos e os moribundos". Em suma, como escreveu a sobrinha, seus parentes costumavam considerá-lo "extremamente importuno e desagradável", mas "um dos meninos mais bondosos que jamais existiram". Gilchrist tinha seus laivos de sadismo. Um dia, ele levou seus três jovens pupilos para assistir à execução na guilhotina de uma mulher que tinha envenenado os filhos. Mandou os Burton tamparem os olhos na hora em que caísse a lâmina. Claro que nenhum deles seguiu seus conselhos, e a imagem da cabeça cortada de início não provocou pesadelos, muito pelo contrário, deu origem a brincadeiras de guilhotina. Mas os pesadelos haveriam de vir. Burton foi perseguido por vários, que prosseguiram na idade adulta. Em Sind, na região selvagem perto dos montes Beloch, ele atravessou um local assombrado por um Rosto Gigante, "restos de algum mago pagão cuja cabeça foi poupada, enquanto seu corpo foi entregue às chamas do inferno", o que lhe fez recordar os pesadelos constantes de sua infância: Algum dia [...] abandonado pela babá aos horrores de um grande quarto negro, você já viu um rosto arreganhado avançar em sua direção, vindo do vértice distante de um enorme cone que ficava na frente de seus olhos fechados - avançar aos poucos, mas implacavelmente, até que, apesar de lutar contra isso, os traços monstruosos estavam tão perto dos seus que você até conseguiria senti-los, e então, quase de repente, recuar, se afastar depressa, diminuir até não restar nada além das órbitas negras, e então desaparecer para voltar com todos os seus terrores? Se você já viu, há de entender o que quero dizer quando afirmo que isto [o Rosto Gigante] é uma forte superstição. E mesmo depois, aos 59 anos de idade, em sua elegia Kasidah, ele falou do "fantasma negro de nossos medos infantis". Quando criança, Burton se orgulhava de seu estoicismo. Podia suportar uma dor de dentes sem se queixar, e só notariam o problema quando o rosto inchasse. Tinha idéias ambíguas sobre o autocontrole. Conseguiria ficar olhando doces e cremes sem comê-los? Até que ponto ia seu autodomínio? Ficaria encarando a comida durante minutos, perguntando a si mesmo: terei a coragem de não tocar nela? Coragem tinha, mas, vencida a gula, dava a experiência por terminada e lá se iam os objetos do teste para a barriga. Os jovens Burton também eram mentirosos, não mentirosos comuns e corriqueiros tentando fugir de situações desagradáveis, como por exemplo surras, mas pelo puro prazer de mentir. Segundo Burton, quando criança, ele mentia "impávido e resoluto". Eu costumava ridicularizar a idéia de que minha honra estivesse de alguma maneira ligada ao fato de falar a verdade. Considerava uma impertinência ser interrogado. Não conseguia entender a baixeza moral que podia haver numa mentira, a menos que fosse dita por medo das conseqüências de dizer a verdade ou que lançasse a culpa sobre uma outra pessoa. Esse sentimento continuou por muitos anos, e finalmente, como ocorre muito amiúde, tão logo entendi que a mentira é desprezível, ele se transformou no extremo oposto, um hábito desagradável de dizer escrupulosamente a verdade, fosse ou não o momento adequado. Aos nove anos, Richard era praticamente um delinqüente consumado. Tendo surrupiado a espingarda do pai, tinha como alvo velhos monumentos do cemitério e atirava nos vitrais da igreja. Com outros meninos de sua idade ("todos os garotos anglo-franceses eram jovens brigões notáveis"), ele roubava nas lojas e fazia comentários obscenos para as moças francesas. Por fim, o coronel chegou no limite. No começo de 1830, concluiu que, nesse clima estrangeiro, outras crianças inglesas não tinham revelado boas coisas e, vendo os crescentes sinais de delinqüência à sua frente, passou a temer pelo futuro dos filhos. Ademais, em 1830, o sentimento antibritânico era virulento. "As coisas começaram a ficar pretas", disse Burton. Ouviam-se comentários antiingleses nas ruas, e ocorriam incidentes. "Um oficial francês da linha de batalha que [...] se associou a moças inglesas foi insultado e morto num duelo covarde por um confeiteiro." Para os Burton, era hora de voltar para a Inglaterra. A casa foi desmontada, e a família foi enviada de coche até Dieppe, para embarcar para "o frio mergulho na vida inglesa".