Trecho do livro MANUAL DA PAIXÃO SOLITÁRIA

Como vinha acontecendo desde 1990, a comissão organizadora do Congresso de Estudos Bíblicos, realizado cada ano numa cidade brasileira, selecionou uma passagem bíblica como tema central do encontro: Gênesis, capítulo 38, texto que conta a história do patriarca Judá, de seus filhos e de uma mulher chamada Tamar. A escolha despertou inusitado interesse. Na sua fala inicial, proferida no auditório do elegante hotel de veraneio em que se reuniam os congressistas, cerca de duzentos, disse o presidente da Sociedade Cultural de Estudos Bíblicos, o historiador José Domício Ferraz: - Trata-se, permitam recordar-lhes, de uma história estranha. Para começar, está inserida numa outra narrativa, aquela que nos fala de José no Egito, narrativa essa que é bruscamente interrompida. E a sucessão de acontecimentos é surpreendente, quando não chocante. Tudo começa quando Judá, um dos irmãos de José, "afasta-se de seus irmãos" e vai viver na casa de um homem chamado Hirá, encontra uma canaanita, com quem casa, tornando-se pai detrês filhos, Er, Onan, Shelá. Eles crescem e Judá arranja uma esposa, Tamar, para o primogênito Er. Por alguma razão que o texto não esclarece, Er desagrada ao Senhor e morre sem engravidar Tamar. De acordo com a tradição, se o irmão mais velho falecia sem deixar filhos, competia a seu irmão ter relações com a viúva de modo a assegurar a progênie. Mas Onan, sabendo que o filho de Tamar não seria considerado dele (e que esse filho seria o herdeiro do patriarca, não ele), cumpre seu dever de forma parcial; ele "derrama o sêmen na terra", praticando, pois, coito interrompido, o que também acarreta a sua morte. Restaria o terceiro filho, mas Judá, temeroso de que o rapaz tenha a mesma sorte dos irmãos, pede a Tamar que espere algum tempo: afinal, Shelá não é ainda adulto, homem-feito. Coisa que Tamar, como podemos imaginar, não aceita de bom grado.Tempos depois realiza-se em Timna, localidade próxima, uma reunião de criadores de ovelhas para tosquia. Judá, agora viúvo, ali comparece. No caminho passa por Enaim, onde há um templo pagão e onde vê uma mulher coberta por um véu, aparentemente uma prostituta. Seu desejo despertado, oferece-lhe, em troca da relação sexual, um cabrito, a ser enviado depois. A mulher aceita, mas pede uma garantia: o cajado, o sinete e o cordão de Judá, símbolos da dignidade patriarcal. Judá, ainda que relutante, concorda. De volta a casa, pede a um amigo que leve o cabrito à mulher, mas surpreendentemente ela não é encontrada. Ninguém a conhece. Interrompeu-se, tomou um gole d'água e continuou: - Pouco depois Tamar aparece grávida. Tomado de fúria- ela ainda deveria estar sob seu controle patriarcal-, Judá condena-a à morte. Tamar então revela que o pai do filho que traz no ventre é o dono do cajado, do sinete e do cordão: o próprio patriarca. Judá reconhece que foi enganado e assume a paternidade. Tamar dá à luz gêmeos, Zerá e Perez - que será um antepassado do rei Davi e de José, o pai terreno de Jesus. Com isso encerra-se a história. Que, como sabemos, apresenta vários aspectos interessantes. Em primeiro lugar, o costume do levirato, comum no Oriente Médio da época, segundo o qual o irmão ou parente de um homem morto deve dar um filho à viúva. Havia para isso uma explicação prática: a viúva não poderia herdar as propriedades do esposo falecido, só os filhos. Compreende-se assim a determinação de Tamar em engravidar, e para tal recorrerá a uma artimanha. Nisso, não é exceção. O Gênesis conta como Rebeca enganou Isaac, fazendo com que o já senil patriarca abençoasse, e portanto reconhecesse como herdeiro, o filho de ambos, Jacó, em detrimento do primogênito Esaú; como este era peludo, Rebeca disfarçou Jacó com um pelego de carneiro. Nova pausa, e prosseguiu: - A astúcia de Tamar, como a de Rebeca, fica evidente. Ela se vale do fato de que a prostituição religiosa era uma coisa comum no Oriente Médio, praticada inclusive por mulheres casadas, que se entregavam a estranhos em nome da religião. Era esse o disfarce que Tamar estava adotando, recorrendo inclusive a um véu para não ser reconhecida. E concluiu: - Dentro do objetivo de nossa reunião, que é de estudar a Bíblia sob um enfoque científico e cultural, há muito o que discutir. Como eu disse, espero um bom debate sobre o tema. Que o debate seria intenso era consenso entre os participantes do evento, historiadores, antropólogos, psicólogos; a passagem escolhida não podia ser mais interessante. E debate era o principal objetivo do encontro, cujo programa previa discussões de grupo pela manhã e à tarde. As noites destinavam-se às chamadas conferências magistrais, em que pessoas de reconhecida autoridade também abordariam o tema. Havia muita expectativa em torno da apresentação do professor Haroldo Veiga de Assis, que viera dos Estados Unidos, onde lecionava numa importante universidade da Ivy League. O que, a propósito, custara bom dinheiro: o professor Haroldo cobrava caro por suas palestras, só viajava de primeira classe e exigia hotéis cinco estrelas. Mas era tal sua fama que os organizadores do encontro não pouparam esforços para trazê-lo, conseguindo inclusive financiamento especial. Afinal, o professor Haroldo fora o único brasileiro a fazer parte do grupo de especialistas que estudara o chamado Manuscrito de Shelá, recentemente encontrado numa caverna em Israel e que, à semelhança dos Manuscritos do Mar Morto, fora saudado pelos historiadores como um achado sensacional. Na noite em que o professor Haroldo falou, a segunda do evento, o auditório estava lotado. Ninguém faltara, e havia várias pessoas de pé. Todos aguardavam ansiosamente sua intervenção. Finalmente, e saudado com palmas estrondosas, ele subiu ao palco. Aos sessenta e sete anos, o professor Haroldo, um homem alto, magro, de basta cabeleira, enorme barba e um olhar que os rivais, vários, não hesitavam em rotular como desvairado, era conhecido pela extraordinária cultura (dominava o hebraico, o aramaico, o árabe, o latim, o grego e seis outros idiomas, citava de memória qualquer trecho do Antigo Testamento) e pela excentricidade; usava terno e gravata, mas tênis coloridos, segundo ele mais cômodos e bonitos do que convencionais sapatos, além de representarem, em seu ponto de vista, uma homenagem ao Brasil, país da diversidade, ao qual se considerava visceralmente ligado. Nos vários artigos sobre o manuscrito publicados tanto na imprensa leiga como em respeitadas revistas especializadas, o professor garantia que Shelá se revelara um personagem fascinante, um narrador que levava a imaginação ao paroxismo, mas que escrevia com uma autenticidade surpreendente, coisa que, acrescentou numa entrevista, "mobilizou meu próprio imaginário; não consigo falar sobre esse misterioso Shelá com a neutralidade e com o distanciamento que em geral caracterizam os estudos históricos. Sinto-me obrigado a inovar, a recorrer ao inusitado, ao inesperado, ao não-convencional". Declaração que deveria ser levada ao pé da letra. O professor, dramaturgo nas horas vagas (uma peça sua, escrita em parceria com um conhecido escritor, estava em cartaz naquele momento, encenada por um grupo amador de São Paulo), era um tipo performático que costumava adotar, em suas apresentações, aquilo que chamava de enfoque heterodoxo. Esse enfoque podia expressar-se tanto na forma de abordagem do tema como no desempenho do orador, que não raro chegava às raias do histriônico, constituindo-se em verdadeiro happening e provocando ora vaias, ora aplausos, ora as duas coisas. Os coordenadores estavam preparados para isso, mesmo porque, como dissera uma psicóloga que fazia parte da comissão organizadora, havia evidente compatibilidade entre o estilo do professor Haroldo e o tema do conclave, sem falar no fato de que o autor do manuscrito aparecia, na passagem bíblica, como um personagem até certo ponto intrigante, ainda que menor. Tudo poderia acontecer; não era impossível que o conferencista, baseado em sua experiência de teatro, apresentasse um texto redigido na primeira pessoa, uma espécie de monólogo do próprio Shelá, falando desde um passado remoto sobre sua trajetória, suas aspirações, suas fantasias. E foi isso exatamente que ocorreu. Um dia-ou uma noite, de preferência uma noite, a noite é mais propícia para gente como nós e para a evocação da memória que deixamos - alguém lembrará de mim. Quando isso acontecerá, não sei. Daqui a muito tempo, acho. Séculos, milênios, quem sabe. A entidade que sou - pobre entidade, modesta entidade, lamentável entidade - terá desaparecido. Estarei reduzido a diminutas partículas que ventos e águas disseminarão pelo mundo. Uma partícula fará parte de uma pedra, outra estará na casca de uma fruta, outra na córnea de um leão, no pêlo de uma raposa, no osso de um ser humano. Dispersão à parte, é isso permanência? Eu gostaria muito de responder que sim; negar a morte faz parte de nossa precária condição humana, e recorremos a todos os malabarismos do pensamento, a todas as formas da fantasia para atingir esse objetivo. Mas não adianta, não é? Não adianta. Metáforas consolam, mas não resolvem nosso problema: vamos adoecer, vamos morrer, e as partículas não nos preservarão. Partículas não pensam, não almejam, não tentam antecipar o futuro. Partículas não anseiam por se reunir, como ansiaram por se reunir as pessoas que aqui estão; partículas não anseiam por reconstituir o ser humano de que um dia foram parte. Partículas não atendem por um nome, partículas não têm sonhos nem desejos, partículas não escrevem em pergaminhos, não interpretam o que está escrito em pergaminhos. Não posso, portanto, ter ilusões. Evocar não é ressuscitar. Essa história de "viverá para sempre na memória dos pósteros" é mentira. Mentira piedosa e consoladora, mas mentira. Não que eu recuse as ilusões ou a mentira; de certo modo, ilusões e mentira são, para mim, um modo de vida. Sou apenas um criador de sonhos. Do ponto de vista do futuro, sou descartável. Se tenho algum lugar reservado, é na lata de lixo da história, gigantesco recipiente que já recebeu milhões, bilhões de pessoas, com suas frustradas aspirações, seus desejos não realizados, seus falidos projetos. Poucos recordam o meu nome. Meu falecido irmão Onan, ao contrário, é constantemente citado, ainda que desperte sentimentos contraditórios: curiosidade, repulsa, indignação. É bem conhecida a história de sua estranha rebeldia; isso sem falar na prática sexual a que seu nome é associado, ainda que equivocadamente (não, Onan não é o inventor da masturbação: mais sobre isso daqui a pouco). De mim, irmão de Onan, ninguém fala. Sou um anônimo entre os anônimos, um desconhecido extraviado na multidão dos desconhecidos, vivos ou defuntos. É uma realidade que sempre aceitei, ainda que com profunda mágoa. Essa mágoa, tentei neutralizar com um sonho: milênios após meu desaparecimento, num lugar para mim estranho, pessoas para mim estranhas, vestindo roupas para mim estranhas, falariam, num idioma estranho, sobre mim. A partir desse momento esse sonho transformou-se na esperança à qual eu me agarrava e que, de certa forma, me mantinha vivo. Sonhos marcaram a trajetória de nossa gente, os hebreus. Não que sejamos exatamente uma estirpe de sonhadores; somos isso, mas não só isso. Sonhamos, sonhamos muito, mas estamos sempre procurando uma conexão entre aquilo que sonhamos e aquilo que realmente acontece, entre fantasia e realidade. Com finalidades utilitárias? Certamente; em nós, a poesia se associa ao pragmatismo, o devaneio ao cálculo frio. Foi o que nos ensinou nossa tumultuada história. Sabemos que é impossível viver sem sonhar, mas temos bem presente que antes de sonhar é preciso viver, ou sobreviver. Sonhos são alimento para a alma? Até são, mas a pergunta básica é: quem alimenta o corpo? Corpos desnutridos não sonham, ou, quando sonham, é só com comida: pães dourados, carneiros assados, frutos saborosos, proibidos ou não. Por isso, aprendemos a combinar fantasia e realidade em doses variáveis, de acordo com a época e o local-metade fantasia, metade realidade, ou um terço de fantasia para dois terços de realidade, ou três quintos de fantasia para dois quintos de realidade -, sempre usando de prudência, bom senso e, por que não dizer, astúcia. E aprendemos também a utilizar os sonhos como ponte para o futuro. O passado, para nós, é importante, dentro de nosso papel de guardiães da história, mas sabemos que ao fim e ao cabo o que interessa é (além do presente, claro) o futuro. Meu avô Jacó teve um sonho. Um sonho que, não por acaso, foi precedido por acontecimentos decisivos em sua vida. Astuciosamente ele obtivera do irmão gêmeo (nascido antes dele), Esaú, o direito de primogenitura; com a ajuda da mãe, a ardilosa Rebeca, recebera do pai, o velho e cego patriarca Isaac, a última e decisiva bênção, aquela que o consagraria como herdeiro. Furioso, Esaú decidiu matar o irmão. A conselho de Rebeca, Jacó fugiu para a casa de seu tio Labão, em Haran, empreendendo longa e áspera marcha noturna pelo campo e pelo deserto. Lá pelas tantas, exausto, não agüentou mais; precisava dormir e faria isso ali mesmo, ao relento. [...]