Trecho do livro ENTRE NÓS

Primo Levi [1986] Na sexta-feira de setembro de 1986 em que cheguei a Turim para retomar uma conversa com Primo Levi que havíamos iniciado em Londres, numa tarde da primavera anterior,manifestei o desejo de conhecer a fábrica de tintas onde ele trabalhara como químico pesquisador e, posteriormente, até se aposentar, como diretor. Ao todo, a companhia emprega cinqüenta pessoas, na maioria químicos que atuam nos laboratórios e operários qualificados que trabalham na produção. A maquinaria; a fileira de tanques de armazenamento; o prédio do laboratório; o produto final guardado em recipientes da altura de um homem, pronto para ser transportado; a unidade de reprocessamento que purifica os resíduos - tudo isso dentro de um terreno de cerca de dois hectares a onze quilômetros de Turim. As máquinas que secam a resina, mesclam o verniz e bombeiam os poluentes nunca chegam a produzir um ruído excessivo; o cheiro ácido da fábrica - o qual, segundo Levi me disse, permaneceu impregnado em suas roupas até dois anos depois de sua aposentadoria - não é de modo algum nauseabundo, e a caçamba de quase trinta metros, cheia até a boca de resíduos pastosos negros, produzidos pelo processo antipoluição, não é particularmente feia. Não é de jeito nenhum o ambiente industrial mais horroroso do mundo,mas mesmo assim está muito distante daquelas frases refinadas que são a marca registrada das narrativas autobiográficas de Levi. Por mais distante que ela esteja do espírito de sua prosa, fica claro que a fábrica está muito próxima de seu coração; assimilando o que pude assimilar do barulho, do fedor, do mosaico de canos, tonéis, tanques e mostradores, pensei em Faussone, o aparelhador de A chave-estrela, e disse a Levi, que se refere a Faussone como "meu alter ego": "Devo lhe dizer que me dá prazer ficar num lugar onde se trabalha". Enquanto caminhávamos pelo pátio aberto em direção ao laboratório, um prédio simples de dois andares construído no tempo em que Levi era o diretor, ele me disse: "Há doze anos estou afastado da fábrica. Vai ser uma aventura para mim". Acrescentou que quase todos que trabalharam com ele estavam aposentados ou mortos; os poucos conhecidos que encontrava lhe pareciam espectros. "Mais um fantasma", cochichou para mim quando um homem que trabalhava no escritório central que outrora fora a sua sala saiu para cumprimentá-lo. A caminho da seção do laboratório em que as matérias-primas são analisadas antes de passar para o setor de produção, perguntei a Levi se ele era capaz de identificar o aroma químico suave que se sentia no corredor: para mim, era cheiro de corredor de hospital. Ele levantou a cabeça uns poucos milímetros e expôs as narinas ao ar. Com um sorriso, disse: "Eu reconheço e posso analisá-lo como se eu fosse um cachorro". A impressão que me dava era que Levi, com sua animação interior,mais parecia uma criaturinha buliçosa da floresta, dotada da inteligência mais viva de seu meio. Levi é um homem quanto seu jeito despretensioso parece indicar à primeira vista, e pelo que entre nós se observa continua tão ágil quanto deve ter sido aos dez anos de idade. No corpo, tal como no rosto, vemos - o que não costuma acontecer na maioria dos homens - o rosto e o corpo do menino que ele foi. Sua agilidade é quase palpável, e seu vigor treme dentro dele como se fosse o piloto de um aquecedor. Ao contrário do que pode parecer de saída, não causa surpresa a constatação de que os escritores, tal como o resto da humanidade, se dividem em duas categorias: os que sabem ouvir e os que não sabem. Levi sabe ouvir, com o rosto inteiro, um rosto modelado com precisão que, terminando na barbicha branca, aos 67 anos parece juvenil, lembrando o deus Pã, e ao mesmo tempo tem um ar de professor, a expressão de curiosidade irreprimível do estimado dottore. Acredito em Faussone quando ele diz a Primo Levi no início de A chave-estrela: "Você é mesmo incrível, me faz contar essas histórias que eu nunca havia contado a ninguém". Não admira que as pessoas estejam sempre lhe contando coisas e que tudo seja registrado fielmente antes mesmo de ser escrito: quando ele escuta, Levi fica tão concentrado e imóvel quanto um esquilo ao observar algo desconhecido do alto de um muro de pedra. Num prédio residencial grande, de aparência sólida, construído alguns anos antes de ele nascer - na verdade, a casa em que ele nasceu, pois ela antes pertencia a seus pais -, Levi mora com sua mulher, Lucia; com exceção do ano que passou em Auschwitz e os meses de aventuras que se seguiram imediatamente à sua libertação, ele morou nesse apartamento a vida toda. O prédio, cuja solidez burguesa já começa a ceder um pouco aos efeitos do tempo, fica numa avenida larga de edifícios de apartamentos que me pareceu o equivalente, no norte da Itália, à West End Avenue de Manhattan: um fluxo contínuo de automóveis e ônibus, bondes passando nos trilhos, mas também castanheiras altas enfileiradas ao longo das ilhas estreitas em ambos os lados da rua, sendo visíveis da interseção os morros verdejantes que cercam a cidade. As famosas galerias do centro comercial da cidade ficam a quinze minutos de uma caminhada perfeitamente reta, em que se atravessa o que Levi chama de "a geometria obsessiva de Turim". No apartamento espaçoso em que ele e a mulher moram, vive também, desde que os dois se conheceram e se casaram depois da guerra, a mãe de Primo Levi. Ela tem 91 anos. A sogra de Levi, de 95 anos,mora não muito longe dali; no apartamento ao lado, vive seu filho de 28 anos, que é físico; e a poucas ruas dali mora sua filha de 38 anos, botânica. Não conheço nenhum outro escritor contemporâneo que tenha resolvido permanecer, durante tantas décadas, em contato íntimo, direto e ininterrupto com sua família próxima, seu torrão natal, sua região, o mundo de seus ancestrais e, em particular, com o ambiente de trabalho local, que em Turim, sede da Fiat, é basicamente industrial. De todos os artistas intelectualmente bem-dotados do século XX - e o que torna Levi único é o fato de ele ser mais um químico-artista do que um escritor - químico -, ele é talvez o que melhor se adaptou à totalidade da vida a seu redor. No caso de Primo Levi, é possível que o fato de ele ter passado a vida inteira ligado a sua comunidade, juntamente com sua obra-prima sobre Auschwitz, constitua sua reação visceral àqueles que se esforçaram ao máximo para romper todas as ligações dele e eliminá-lo da história, junto com toda a sua gente. Em A tabela periódica, iniciando com uma frase bem simples um parágrafo que descreve um dos processos mais fascinantes da química, Levi afirma: "A destilação é bela". O que vem a seguir é também uma destilação, uma redução aos pontos essenciais da conversa animada e abrangente que tivemos, em inglês, no decorrer de um fim de semana prolongado, a maior parte dentro de seu escritório silencioso, que dá para o hall de entrada do apartamento. O escritório é um cômodo amplo e pouco mobiliado. Há um velho sofá de florzinhas e uma espreguiçadeira confortável; sobre a escrivaninha, um processador de texto coberto com um pano; atrás dela, prateleiras organizadas com os cadernos de Levi, de diversas cores; em todas as paredes do escritório há estantes com livros em italiano, alemão e inglês. O objeto mais evocativo é um dos menores: um desenho, pendurado num lugar discreto, que representa uma cerca de arame farpado semidestruída em Auschwitz. Têm mais destaque nas paredes as estruturas lúdicas construídas por Levi com fio de cobre isolado, retorcido de modo caprichoso - isto é, fio de cobre recoberto com o verniz criado para este fim no laboratório em que ele trabalhava. Há uma grande borboleta, uma coruja e um pequeno inseto, tudo feito de fio, e no alto da parede atrás da escrivaninha vêem-se duas das maiores estruturas, também de fio: uma é a figura de uma ave guerreira brandindo uma agulha de tricô; a outra, que Levi me explicou quando não consegui entender o que era, representava "um homem brincando com o nariz". "Um judeu", arrisquei. "Isso mesmo", ele disse, rindo, "um judeu, claro." Roth: Em A tabela periódica, o livro sobre "o sabor amargo e forte" da sua experiência de químico, você fala de Giulia, uma colega de trabalho sua, jovem e atraente, numa fábrica em Milão em 1942. Ela explica a sua "mania de trabalho" dizendo que, aos vinte e poucos anos, você é tímido com as mulheres e não tem namorada. Mas acho que ela estava enganada. A sua mania de trabalho tem uma origem mais profunda. Ao que parece, o trabalho é o seu principal tema, não apenas em A chave-estrela mas até mesmo no seu primeiro livro, sobre a sua detenção em Auschwitz. Arbeit macht frei- "O trabalho liberta"- são as palavras colocadas pelos nazistas no portão de Auschwitz. Mas em Auschwitz o trabalho é uma paródia horrenda do trabalho, sem objetivo e sem sentido - o trabalho como um castigo que leva a uma morte lenta. É possível dizer que todo o seu empreendimento literário visa restituir o sentido humano ao trabalho, recuperar a palavra Arbeit do escárnio cínico com que seus patrões em Auschwitz a desfiguraram. Faussone diz a você: "Cada serviço que eu pego é como o primeiro amor". Ele gosta de falar sobre seu trabalho quase tanto quanto gosta de trabalhar. Faussone é o Homo faber a quem o trabalho realmente liberta. Levi: Acho que Giulia tinha razão quando atribuiu minha obsessão pelo trabalho ao fato de que na época eu era tímido em relação às mulheres. Essa timidez, ou inibição, era uma coisa real, dolorosa e pesada - muito mais importante para mim do que a dedicação ao trabalho. O trabalho na fábrica em Milão que relatei em A tabela periódica era um trabalho de fachada, em que eu não acreditava. A catástrofe do armistício italiano de 8 de setembro de 1943 já estava no ar, e seria uma insensatez ignorá-la mergulhando numa atividade que não tinha nenhum sentido científico. Nunca tentei analisar a sério essa minha timidez,mas não há dúvida de que as leis raciais de Mussolini desempenharam um papel importante. Eu tinha amigos judeus que enfrentavam o mesmo problema, alguns dos nossos colegas "arianos" zombavam de nós, dizendo que a circuncisão era nada menos que uma castração, e nós, ao menos num nível inconsciente, tendíamos a acreditar, com a ajuda de nossas famílias puritanas. Creio que naquela época o trabalho era para mim uma compensação sexual mais do que uma paixão verdadeira. Porém tenho plena consciência de que depois do campo de concentração o meu trabalho, ou melhor, os meus dois trabalhos (química e literatura) desempenharam e continuam a desempenhar um papel essencial na minha vida. Estou convencido de que os seres humanos normais são biologicamente constituídos para desempenhar uma atividade voltada para um objetivo, e que o ócio, ou o trabalho sem objetivo (como o Arbeit de Auschwitz), gera sofrimento e atrofia. No meu caso, como no caso do meu alter ego, Faussone, o trabalho se identifica com a resolução de problemas. Em Auschwitz observei com freqüência um fenômeno curioso. A necessidade do lavoro ben fatto- "trabalho bem feito"- é tão forte que induz as pessoas a fazer "direito" até mesmo o trabalho de escravo. O pedreiro italiano que salvou minha vida, levando-me comida às escondidas durante seis meses, odiava os alemães, a comida deles, a língua e a guerra deles; mas quando o mandavam levantar paredes, ele fazia paredes sólidas e a prumo, não por obediência, mas por dignidade profissional. Roth: É isto um homem? termina com um capítulo intitulado "História de dez dias", em que você relata em forma de diário como sobreviveu de 18 a 27 de janeiro de 1945, com um pequeno grupo de pacientes doentes e moribundos na enfermaria improvisada do campo de concentração, depois que os nazistas fugiram para o oeste com cerca de vinte mil prisioneiros "sadios". Esse relato me parece a história de Robinson Crusoé no inferno, com você, Primo Levi, no papel de Crusoé, extraindo os elementos necessários à sobrevivência do resíduo caótico de uma ilha perversa. O que chamou minha atenção nesse capítulo, como em todo o livro, foi o papel desempenhado pelo raciocínio na sua sobrevivência, o raciocínio de uma mente científica, prática e humana. A meu ver, a sua sobrevivência não foi determinada nem pela força biológica bruta nem por uma sorte incrível, e sim pelo seu caráter profissional: a precisão de um homem que controla experimentos em busca do princípio da ordem, diante da inversão perversa de tudo aquilo a que ele dá valor. Sem dúvida, você era uma peça numerada de uma máquina infernal, porém essa peça era dotada de uma mente sistemática que tinha necessidade de compreender tudo. Em Auschwitz você diz a si próprio: "Eu penso demais" para resistir, "sou civilizado demais". Mas a meu ver o homem civilizado que pensa demais não pode ser separado do sobrevivente. O cientista e o sobrevivente são a mesma pessoa. Levi: Exatamente - você acertou em cheio.Naqueles dez dias memoráveis, eu de fato me senti como Robinson Crusoé, mas com uma diferença importante. Crusoé trabalhava para sua sobrevivência individual, enquanto eu e meus dois companheiros franceses trabalhávamos conscientemente e de bom grado com um objetivo justo e humano: salvar a vida dos nossos companheiros doentes. Quanto à sobrevivência, essa é uma pergunta que já fiz a mim mesmo muitas vezes, e que muitas pessoas já me fizeram. Insisto num ponto: não havia nenhuma regra geral, além de entrar no campo de concentração com boa saúde e sabendo falar alemão. Fora isso, era uma questão de sorte. Vi sobreviverem pessoas espertas e pessoas tolas, corajosos e covardes,"pensadores" e loucos. No meu caso, a sorte desempenhou um papel essencial em pelo menos duas ocasiões: quando conheci o pedreiro italiano e quando adoeci uma única vez, mas na hora certa. E no entanto é verdade o que você diz, que, para mim, pensar e observar foram fatores de sobrevivência, embora na minha opinião o mais importante tenha sido a sorte pura e simples. Lembro que passei meu ano em Auschwitz num estado de vigor excepcional. Não sei se por causa da minha formação profissional, ou de uma resistência insuspeita, ou de um instinto infalível. Nunca parei de registrar o mundo e as pessoas à minha volta, tanto que até hoje guardo uma imagem inacreditavelmente detalhada do que vi. Eu tinha uma vontade imensa de compreender, era dominado a todo instante por uma curiosidade que depois foi considerada nada menos do que cínica por alguém: a curiosidade do naturalista que se vê lançado num ambiente monstruoso porém novo, monstruosamente novo. Concordo com a sua observação de que minha expressão "Eu penso demais... sou civilizado demais" é incoerente com essa outra disposição mental minha. Por favor,me dê o direito de ser incoerente: no campo de concentração nosso estado mental era instável, oscilando a cada hora entre a esperança e o desespero. A coerência que a meu ver pode ser encontrada em meus livros é um artefato, uma racionalização a posteriori. Roth: Survival in Auschwitz foi originalmente publicado em inglês como If this is a man [no Brasil, É isto um homem?], uma tradução fiel do título em italiano, Se questo è un uomo (o título que a sua primeira editora nos Estados Unidos deveria ter tido o bom senso de manter). A descrição e a análise das suas memórias atrozes do "gigantesco experimento biológico e social" dos alemães são regidas precisamente por um interesse quantitativo nas maneiras como um homem pode ser transformado ou decomposto, de modo a perder suas propriedades características, tal como uma substância que é decomposta numa reação química. Se questo è un uomo pode ser lido como as memórias de um teórico da bioquímica moral recrutado à força como um espécime a ser submetido a uma experimentação sinistra em laboratório. A criatura presa no laboratório do cientista louco é ela própria o modelo do cientista racional. Em A chave-estrela, que poderia ter recebido o título Isto é um homem, você diz a Faussone, sua Sherazade proletária, que "sendo um químico para o mundo e sentindo [...] sangue de escritor nas veias", conseqüentemente você tem a sensação de possuir "duas almas no corpo, e isso é demais". Eu diria que há uma única alma, invejavelmente abrangente e inconsútil; diria que são inseparáveis não apenas o sobrevivente e o cientista, mas também o escritor e o cientista. Levi: Isso não é uma pergunta, é um diagnóstico, que aceito agradecido. No campo de concentração, vivi do modo mais racional que me era possível, e escrevi É isto um homem? me esforçando para explicar aos outros, e a mim mesmo, os eventos em que eu estivera envolvido,mas sem nenhuma intenção literária clara. Meu modelo (ou, se você preferir, meu estilo) era o do "relatório semanal" que se faz nas fábricas: ele deve ser preciso, conciso e utilizar uma linguagem compreensível para todos da hierarquia industrial. Certamente não pode ser escrito em jargão científico. Aliás, não sou cientista, nem nunca fui. Até quis me tornar cientista,mas a guerra e o campo de concentração me impediram. Tive de me limitar a ser um técnico no decorrer de toda a minha vida profissional. Concordo com você que só há "uma única alma [...] inconsútil", e mais uma vez agradeço. Minha afirmação de que "duas almas [...] é demais" é em parte uma brincadeira, mas em parte também aponta para coisas sérias. Trabalhei por quase trinta anos numa fábrica, e devo admitir que não há nenhuma incompatibilidade entre ser químico e ser escritor - pelo contrário, o que há é um reforço mútuo. Mas a vida na fábrica, em particular o trabalho de administração, envolve muitas outras questões, distantes da química: contratar e despedir empregados; brigar com o patrão, os clientes e os fornecedores; enfrentar os acidentes; receber telefonemas, até mesmo à noite ou durante uma festa; lidar com a burocracia; e muitas outras tarefas que destroem o espírito. Esse trabalho todo é de uma incompatibilidade brutal com a escrita, que exige uma quantidade razoável de paz de espírito. Em conseqüência, fiquei muitíssimo aliviado quando cheguei à idade de me aposentar e pude largar o trabalho, abrindo mão assim da minha alma número um. Roth: A continuação de É isto um homem? (que infelizmente também recebeu um título diferente, The reawakening [O redespertar], quando foi publicada pela primeira vez nos Estados Unidos) chamava-se em italiano La tregua. É sobre a sua viagem de volta de Auschwitz à Itália. Essa viagem tortuosa tem uma dimensão lendária, em particular a história do longo período de gestação que você passou na União Soviética, aguardando a repatriação. O que é surpreendente em A trégua, uma obra que poderia perfeitamente ser caracterizada por um clima de luto e desespero inconsolável, é a exuberância. A sua reconciliação com a vida tem lugar num mundo que às vezes lhe parecia o caos primordial. No entanto, você se envolve com todos, se diverte tanto quanto se instrui, a tal ponto que eu me pergunto se, apesar da fome, do frio e dos medos, até mesmo apesar das lembranças, o melhor período da sua vida não teria sido aqueles meses a que você se refere como "um parêntese de disponibilidade ilimitada, uma dádiva do destino, providencial porém irrepetível". Você parece ser uma pessoa que necessita, acima de tudo, de raízes - na sua profissão, na sua ancestralidade, na sua região, na sua língua - e no entanto, quando se viu na situação de solidão e desarraigamento mais radical que se pode imaginar, encarou-a como uma dádiva. Levi: Um amigo meu, um médico excelente,me disse há muitos anos: "As suas lembranças de antes e depois são em preto-e-branco; as de Auschwitz e da viagem de volta são em tecnicolor". É verdade. Família, casa, fábrica, essas coisas são boas, mas elas me privavam de algo de que até hoje sinto falta: aventura. O destino decidiu que eu encontraria aventura na confusão terrível de uma Europa destroçada pela guerra. Você é do ramo, e por isso sabe como essas coisas acontecem. A trégua foi escrito catorze anos depois de É isto um homem?;é um livro mais "autoconsciente", mais metódico, mais literário, com uma linguagem elaborada de modo muito mais profundo. Ele conta a verdade,mas uma verdade filtrada. Foi precedido por uma infinidade de versões orais. Ou seja: eu já havia contado minhas aventuras muitas vezes a pessoas de níveis culturais muito diferentes (principalmente amigos, e rapazes e moças do secundário), e nesse processo fui retocando cada uma delas de modo a obter as reações mais favoráveis de meus ouvintes. Quando É isto um homem? começou a ter algum sucesso, e comecei a ver um futuro para meus escritos, resolvi colocar essas aventuras no papel. Eu queria me divertir escrevendo, e divertir meus futuros leitores. Assim, dei ênfase aos episódios estranhos, exóticos, alegres - principalmente aos russos vistos de perto - e concentrei nas primeiras e nas últimas páginas o clima, para usar suas palavras, "de luto e desespero inconsolável". É preciso lembrar que o livro foi escrito por volta de 1961; foi o tempo de Kruchov, de Kennedy, do papa João VI, do primeiro degelo, de grandes esperanças. Na Itália, pela primeira vez podia-se falar da União Soviética em termos objetivos sem ser chamado de pró-comunista pela direita e de reacionário provocador pelo poderoso Partido Comunista Italiano. Quanto às "raízes", é verdade que tenho raízes profundas e que tive a sorte de não as perder. Minha família foi quase toda poupada pelo massacre nazista. Esta escrivaninha aqui, onde escrevo, fica, segundo a lenda da família, exatamente no mesmo lugar em que vi a luz pela primeira vez. Quando dei por mim no "desarraigamento mais radical que se pode imaginar", é certo que sofri, mas esse sofrimento foi mais do que compensado depois pelo fascínio da aventura, pelos encontros com pessoas, pela doçura da "convalescença" depois da peste de Auschwitz. Em sua realidade histórica, minha "trégua" na Rússia só se tornou uma "dádiva" muitos anos depois, quando a depurei ao repensá-la e escrever sobre ela. Roth: Você começa A tabela periódica falando sobre seus ancestrais judeus, que chegaram ao Piemonte vindos da Espanha, passando pela Provença, em 1500. Você afirma que as suas raízes familiares no Piemonte e em Turim são "não enormes, porém pro- fundas, extensas e fantasticamente entrelaçadas". Você expõe um breve léxico do jargão elaborado por esses judeus e usado acima de tudo como um idioma secreto desconhecido pelos gentios, um argot composto de palavras derivadas de raízes hebraicas, porém com desinências piemontesas. Para quem vê de fora, suas raízes nesse mundo judaico dos seus antepassados parecem ser não apenas entrelaçadas mas também, de modo essencial, idênticas às suas raízes na região. Porém em 1938, quando começaram a vigorar as leis raciais que restringiam a liberdade dos judeus italianos, você passou a ver a condição de judeu como uma "impureza", se bem que, como você diz em A tabela periódica, "comecei a me orgulhar de ser impuro". A tensão entre seu arraigamento e sua impureza me lembra uma coisa que o professor Arnaldo Momigliano escreveu a respeito dos judeus da Itália, que "os judeus faziam menos parte da vida italiana do que imaginavam". E você? Até que ponto você acha que faz parte da vida italiana? Você continua sendo uma impureza, "um grão de sal ou mostarda", ou essa sensação de ser diferente desapareceu? Levi: Não vejo nenhuma contradição entre "arraigamento" e ser ou se sentir como "um grão de mostarda". Para se sentir como um catalisador, um incentivador do meio cultural em que se vive, algo ou alguém que dá gosto e sentido à vida, você não precisa de leis raciais nem de anti-semitismo nem de racismo em geral; mas é uma vantagem fazer parte de uma minoria (não necessariamente racial). Em outras palavras, às vezes é interessante não ser puro. Se você me permite devolver a pergunta: você mesmo, Philip Roth, não se sente "arraigado" no seu país e ao mesmo tempo "um grão de mostarda"? Nos seus livros eu sinto um gosto forte de mostarda. Creio que é esse o sentido da citação de Arnaldo Momiglia - no que você mencionou. Os judeus italianos (mas o mesmo se pode dizer dos judeus de muitos outros países) deram uma contribuição importante à vida cultural e política do país sem abrir mão de sua identidade, aliás o fizeram justamente mantendo a fé em sua tradição cultural. Possuir duas tradições, o que acontece com os judeus,mas não apenas com os judeus, é uma riqueza - para os escritores, mas não apenas para os escritores. Sua pergunta explícita me causa um pouco de desconforto. Sim, sem dúvida faço parte da vida italiana. Alguns dos meus livros são lidos e estudados nas escolas secundárias. Recebo muitas cartas - inteligentes, bobas, insensatas - com elogios e, mais raramente, cartas críticas e irritadas. Recebo originais impublicáveis de escritores malogrados.Minha "sensação de ser diferente" mudou de natureza: não me sinto mais emarginato, relegado a um gueto, um fora-da-lei, porque na Itália, na verdade, não existe anti-semitismo. Na verdade, o judaísmo é visto com interesse e na maioria das vezes com simpatia, apesar de haver sentimentos ambíguos em relação a Israel. À minha maneira, continuo sendo uma impureza, uma anomalia,mas agora por motivos diferentes dos anteriores: nem tanto por ser judeu,mas por ser um sobrevivente de Auschwitz e um escritor outsider, que não pertence ao mundo literário ou universitário, e sim ao mundo industrial. Roth: Se não agora, quando? é diferente de todos os seus livros que li em inglês. Embora claramente baseado em eventos históricos, o livro se apresenta de modo explícito como uma aventura picaresca de um pequeno grupo de guerrilheiros judeus de origem russa e polonesa, atacando os alemães por trás das frentes orientais. Os seus outros livros são talvez menos "imaginativos" no que diz respeito ao tema,mas me parecem mais imaginativos na técnica. A motivação por trás de Se não agora, quando? me parece mais estreitamente tendenciosa - e, em razão disso, menos libertado- ra para o escritor - do que o impulso que gerou as obras auto-biográficas. Eu me pergunto se você concorda com isto: se, ao escrever sobre a bravura dos judeus que reagiram lutando, você sentiu que estava fazendo uma coisa que devia fazer, respondendo a exigências morais e políticas que não intervêm necessariamente em outras obras suas,mesmo quando o tema é o seu próprio destino,marcado por sua condição de judeu. Levi: Se não agora, quando? é um livro que seguiu um caminho imprevisto. As motivações que me levaram a escrevê-lo foram muitas. Vou apresentá-las, em ordem de importância. Eu havia feito uma espécie de aposta comigo mesmo: depois de tantas autobiografias explícitas ou disfarçadas, você é ou não é um escritor de verdade, capaz de construir um romance, moldar personagens, descrever paisagens que você nunca viu? Experimente! Eu queria me divertir escrevendo um enredo de "western" numa paisagem que não é comum na Itália. Queria divertir meus leitores contando a eles uma história essencialmente otimista, uma história de esperança, por vezes até alegre, apesar de ter um massacre como pano de fundo. Eu queria negar um lugar-comum que ainda prevalece na Itália: o judeu é uma pessoa pacata, estudiosa (religiosa ou profana), pacífica, humilhada, que tolerou séculos de perseguição sem jamais reagir. Achei que tinha o dever de homenagear aqueles judeus que, em condições desesperadoras, tiveram a coragem e a capacidade de resistir. Eu nutria a ambição de ser o primeiro (talvez o único) escritor italiano a documentar o mundo iídiche. Tinha a intenção de "explorar" minha popularidade no meu país com o fim de impor a meus leitores um livro centrado na civilização, na história, no idioma e na mentalidade dos asquenazes, coisas que na Itália quase ninguém conhece, com exceção de alguns leitores sofisticados de Joseph Roth, Bellow, Singer, Malamud, Potok e, naturalmente, você. Fiquei satisfeito com o livro, principalmente porque me diverti muito ao planejá-lo e escrevê-lo. Pela primeira e única vez na minha vida de escritor, tive a impressão (quase uma alucinação) de que meus personagens estavam vivos, a minha volta, atrás de mim, dando sugestões espontâneas a respeito de seus feitos e suas falas. O ano que passei escrevendo esse livro foi um ano feliz, e assim, qualquer que seja o resultado, para mim esse livro teve um efeito libertador. Roth:Vamos falar sobre a fábrica de tintas. Atualmente,muitos escritores trabalham como professores, alguns como jornalistas, e a maioria dos escritores com mais de cinqüenta anos, tanto no lado oriental quanto no ocidental, atuaram, ao menos por algum tempo, como soldado deste ou daquele país. Há um número impressionante de escritores que praticaram a medicina enquanto escreviam livros, e de escritores que foram membros do clero. T. S. Eliot era editor, e todo mundo sabe que Wallace Stevens e Franz Kafka trabalhavam em grandes empresas de seguros. Que eu saiba, apenas dois escritores importantes foram diretores de fábricas de tintas: você em Turim, na Itália, e Sherwood Anderson em Elyria, no Ohio. Anderson teve que largar a fábrica (e a família) para se tornar escritor; você, ao que parece, tornou-se o escritor que é ficando na fábrica e levando adiante a sua carreira lá. Eu me pergunto se você se considera na verdade mais afortunado - até mesmo mais bem equipado como escritor - do que aqueles que nunca trabalharam numa fábrica de tintas e que, portanto, nunca tiveram as experiências que esse tipo de trabalho proporciona. Levi: Como já disse, entrei para a indústria de tintas por acaso, nunca tive muito a ver com a fabricação de tintas, vernizes e lacas. Nossa companhia, assim que abriu, se especializou na produção de esmaltes para fios, isolantes para condutores elétricos de cobre.No auge da minha carreira, eu era um dos trinta ou quarenta especialistas nisso em todo o mundo. Esses bichos pendurados aqui na parede são feitos de fio esmaltado. Para ser sincero, eu não sabia nada a respeito de Sherwood Anderson até você mencioná-lo. Não, jamais me teria ocorrido a idéia de largar a família e a fábrica para me dedicar exclusivamente à literatura, como ele fez. Eu teria medo de dar esse salto no escuro, e teria perdido minha aposentadoria. Mas tenho de acrescentar um terceiro nome à sua lista de escritores fabricantes de tinta: Italo Svevo, um judeu convertido de Trieste, autor de A consciência de Zeno, que viveu de 1861 a 1928. Svevo foi por muito tempo diretor comercial de uma companhia de tintas de Trieste, a Società Venziani, que pertenceu a seu sogro e que deixou de existir alguns anos atrás. Até 1918, Trieste pertencia à Áustria, e essa companhia se tornou famosa por fornecer à marinha austríaca uma excelente tinta que impedia que cracas se grudassem aos cascos dos navios de guerra. Em 1918, Trieste virou parte da Itália, e a tinta passou a ser fornecida às marinhas italiana e britânica. Para poder se comunicar com o almirantado britânico, Svevo começou a ter aulas de inglês com James Joyce, que na época trabalhava como professor em Trieste. Eles se tornaram amigos, e Joyce ajudou Svevo a encontrar um editor para suas obras. O nome comercial da tinta anticracas era Moravia. Não é por acaso que esse nome foi adotado como pseudônimo pelo romancista: tanto o empresário de Trieste quanto o escritor romano tiraram esse nome do sobrenome de um parente que tinham em comum pelo lado materno. Desculpe essa digressão irrelevante. Não, como já disse antes, não me arrependo. Não acho que desperdicei meu tempo dirigindo uma fábrica. Minha militanza na fábrica - o serviço compulsório e honrado que prestei lá - me manteve em contato com o mundo das coisas reais.