Trecho do livro O REINO DO AMANHÃ

Parte I 1. A cruz de São Jorge Os subúrbios sonham com a violência. Adormecidos em seus modorrentos palacetes, protegidos por benevolentes shopping centers, esperam pacientemente pelos pesadelos que os despertarão para um mundo mais apaixonante... Doce ilusão, pensei comigo enquanto o aeroporto de Heathrow ia diminuindo no espelho retrovisor, e das mais tolas: o arraigado hábito de um publicitário de saborear a embalagem em vez do biscoito. Mas eram pensamentos difíceis de afastar. Manobrei o Jensen para tomar a pista lenta da M4 e comecei a ler as placas que me davam as boas-vindas aos subúrbios mais afastados de Londres. Ashford, Staines, Hillingdom - destinos impossíveis que figuravam apenas nos mapas mentais de homens de marketing desesperados. Para além de Heathrow ficavam os impérios do consumismo, e o mistério que me obcecou até o dia em que saí pela porta da minha agência pela última vez. Como despertar uma gente entorpecida que tinha tudo, que comprara todos os sonhos que o dinheiro pode comprar e sabia que tinha sido uma pechincha? Uma luz piscava no painel, uma seta insistente que eu tinha certeza de não ter acionado. Mas uns cem metros à frente es tava uma estrada secundária que eu de alguma forma sabia que esperava por mim. Reduzi a velocidade e saí da rodovia, adentrando uma alameda flanqueada de verde que se curvava sobre si mesma, depois de passar por uma placa que me instigava a visitar um novo complexo executivo e centro de conferências. Freei bruscamente, pensei em fazer a manobra para voltar à rodovia, mas desisti. Sempre deixe a estrada decidir... Como muitos londrinos da região central da cidade, eu me sentia vagamente desconfortável toda vez que deixava o perímetro urbano e me aproximava das franjas suburbanas. Mas na verdade tinha passado minha carreira de publicitário cortejando insistentemente os subúrbios de alto padrão. Longe da metrópole nervosa, exasperante, as cidades-satélites que se aconchegavam no ombro protetor da M25 eram praticamente uma invenção da indústria publicitária, ou pelo menos era assim que os executivos responsáveis pelas contas dos clientes, como eu mesmo, gostavam de pensar. Os subúrbios residenciais, todos acreditaríamos até a morte, eram definidos pelos produtos que vendíamos a eles, pelas marcas, modelos e logotipos que, por si só, definiam suas vidas. No entanto de alguma maneira eles resistiam a nós, tornando-se esquivos e autoconfiantes, o verdadeiro centro da nação, sempre nos mantendo a certa distância. Contemplando o sereno mar de empenas de tijolo aparente, os aprazíveis jardins e parquinhos de escola, eu sentia uma pontada de ressentimento, a mesma dor que me lembrava ter sentido quando minha mulher me beijou com ternura, acenou um tanto timidamente da porta do nosso apartamento em Chelsea e me deixou para sempre. A afeição pode se revelar nos momentos mais cruéis. Mas eu tinha uma razão especial para me sentir desconfortável: poucas semanas antes, aqueles aprazíveis subúrbios tinham se erguido, mostrado os dentes e dado o bote para matar meu pai. Às nove horas daquela manhã, quinze dias depois do funeral de meu pai, parti de Londres rumo a Brooklands, a cidade entre Weybridge e Woking que havia crescido em torno do autódromo dos anos 1930. Meu pai passara a infância em Brooklands e, depois de uma vida nos ares, o velho piloto de aviões de passageiros retornara para viver lá seus anos de aposentadoria. Eu iria me encontrar com seus advogados, verificar como estava indo a execução de seu testamento e colocar seu apartamento à venda, fechando formalmente uma vida que eu nunca havia compartilhado. De acordo com o advogado testamenteiro, Geoffrey Fairfax, o apartamento tinha vista para a pista desativada de corrida, um sonho de velocidade que devia lembrar ao velho todas as pistas de pouso e decolagem que ainda cruzavam sua mente. Quando eu colocasse os uniformes dele na mala e fechasse a porta atrás de mim, uma última linha seria traçada sob o ex-piloto da British Airways, um pai ausente que um dia eu cultuei como herói, mas que raramente encontrei. Ele se separara de minha mãe enérgica, mas hipersensível, quando eu tinha cinco anos, percorrera milhões de milhas até os mais perigosos aeroportos do mundo, sobrevivera a duas tentativas de seqüestro para acabar morrendo num bizarro tiroteio num shopping center de subúrbio. Um doente mental em seu dia de liberdade semanal conseguiu entrar com uma arma no átrio do Brooklands Metro-Centre e disparou ao acaso contra a multidão da hora do almoço. Três pessoas morreram e quinze ficaram feridas. Uma única bala matou meu pai, uma morte que caberia mais em Manila ou Bogotá ou na parte leste de Los Angeles do que num arborizado subúrbio inglês. Lamentavelmente, meu pai vivera mais do que seus parentes e do que a maioria de seus amigos, mas pelo menos cuidei de seu funeral e lhe fiz companhia em sua passagem para o outro lado. Enquanto eu deixava a rodovia para trás, a perspectiva de girar de verdade a chave na porta da casa de meu pai começou a assomar diante do pára-brisa como um alerta de perigo vagamente ameaçador. Uma grande parte dele ainda estaria lá - o cheiro de seu corpo nas toalhas e roupas, o conteúdo de seu cesto de roupa suja, o odor singular de velhos best-sellers nas estantes. Mas sua presença teria como contraponto minha ausência, as lacunas que estariam em toda parte, como alvéolos vazios num favo de mel, vácuos humanos que seu próprio filho nunca fora capaz de preencher quando ele, o pai, abandonou sua família por um universo feito de céus. Os espaços estavam igualmente dentro de mim. Em vez de me pendurar em Harvey Nichols com minha mãe, ou de passar uma infinidade de tempo tomando chá na Fortnum's, eu devia ter estado com meu pai, confeccionando nossa primeira pipa, jogando críquete francês no jardim, aprendendo a acender uma fogueira e a velejar num escaler. Pelo menos empreendi uma carreira na publicidade, bem-sucedida até o dia em que cometi o erro de casar com uma colega e proporcionar a mim mesmo um rival que eu não tinha a menor chance de vencer. Alcancei a saída da estrada secundária, seguindo um enorme caminhão carregado de carros compactos, cada um deles lustroso a ponto de dar vontade de morder, ou pelo menos de lamber; celulose cor de bala de maçã clareando o dia. O caminhão parou no semáforo, um touro de ferro pronto para irromper na arena da estrada aberta, e então seguiu trovejando rumo a um complexo industrial nas proximidades. Eu já estava perdido. Tinha ingressado no que o mapa da Associação do Automóvel representa como uma área de antigas cidades do Vale do Tâmisa - Chertsey, Weybridge, Walton -, mas nenhuma cidade estava visível à minha volta, e havia poucos sinais de assentamento humano permanente. Eu estava trafegando por um terreno de expansão interurbana, uma geografa de privação sensorial, uma zona de estradas de pista dupla e postos de gasolina, áreas de comércio e placas indicando a direção de Heathrow, antigas glebas rurais agora repletas de tanques de butano, galpões revestidos de exótico metal laminado. Passei por um campo marrom dominado por uma grande placa anunciando o terminal sul de Heathrow com sua ilimitada capacidade de carga, embora aquilo fosse uma terra vazia, onde tudo já tinha sido enviado para longe. Agora nada fazia sentido, exceto em termos de uma transitória cultura de aeroporto. Letreiros de advertência alertavam uns aos outros, e toda a paisagem estava codificada para o perigo. Câmeras de circuito fechado empoleiravam-se em portões de armazéns, e sinais luminosos de orientação piscavam incansavelmente, indicando os santuários de parques tecnológicos de alta segurança. Um conjunto de pequenas casas apareceu, escondido na sombra da barragem de um reservatório, e só o que lhe dava algum sentido de comunidade eram os pátios de carros usados que o circundavam. Rodando em direção a um sul imaginário, passei por um restaurante chinês de comida para viagem, um galpão de móveis em promoção, um criadouro de cães ferozes e um grande alojamento austero que sugeria um campo de prisioneiros parcialmente reabilitados. Não havia cinemas, igrejas nem centros de convivência, e os intermináveis cartazes apregoando um reluzente consumismo sustentavam a única vida cultural existente. À minha esquerda, o tráfego descia por uma rua lateral, sedãs de famílias procurando um lugar para estacionar. A quase trezentos metros dali, o sol banhava uma fileira de fachadas de lojas. Uma cidade suburbana tinha brotado da conexão entre estradas de acesso e rodovias de pista dupla. Socorro era oferecido ao viajante perdido por letreiros de neon do lado de fora de uma loja de jardinagem e uma agência de viagens que anunciava "lazer executivo". Esperei o sinal abrir, uma eternidade comprimida em uns poucos segundos. Os semáforos reinavam como divindades mesquinhas sobre seus cruzamentos desertos. Coloquei o pé no acelerador, pronto para passar o sinal vermelho, e notei que um carro de polícia estava esperando atrás de mim. A exemplo da cidade ali do lado, ele se materializara do nada, alertado pela imaginação caprichosa de um motorista impaciente num potente carro esporte. Toda a paisagem defensiva estava esperando que um crime fosse cometido. Dez minutos depois eu me acomodava numa banqueta num restaurante indiano vazio, em algum lugar do centro da cidade de beira de estrada que viera em meu auxílio. Abrindo meu mapa sobre o velho cardápio, um livreto de páginas plastificadas que não mudava havia anos, tentei descobrir onde estava. Vagamente a sudoeste de Heathrow, supus, numa daquelas cidades rodoviárias que cresceram desordenadamente a partir dos anos 1960, lar de uma população que só se sentia plenamente à vontade na área servida por um aeroporto internacional. Ali, um posto de gasolina à margem de uma rodovia de pista dupla comportava um senso de comunidade mais profundo do que qualquer igreja ou capela, uma consciência maior de cultura compartilhada do que uma biblioteca ou uma galeria municipal poderiam oferecer. Eu deixara o Jensen no estacionamento de vários andares que dominava a cidade, um compacto edifício de concreto de dez lances inclinados, mais misterioso a seu modo que o labirinto do Minotauro em Cnossos - onde, um tanto perversamente, minha mulher sugeriu que passássemos nossa lua-de-mel. Mas a presença daquela vasta estrutura refletia o truísmo de que estacionar estava se tornando irresistivelmente a maior necessidade espiritual da população britânica. Perguntei ao gerente onde estávamos, estendendo-lhe o mapa, mas ele estava muito perturbado para responder. Um nervoso bengali cinqüentão, ele observava o tráfego que descia a rua principal. Alguém arremessara um tijolo na vidraça temperada da fachada, e uma rachadura em forma de cimitarra gigante se desenhava do teto até o chão. O gerente tentara me conduzir para os fundos do restaurante vazio, dizendo que a mesa junto à vidraça estava reservada, mas eu o ignorei e sentei atrás do vidro partido, curioso para observar a cidade em seu movimento diário. Os passantes estavam ocupados demais com suas compras para me notar. Pareciam prósperos e contentes, andando com passos confiantes por uma cidade que era inteiramente composta de casas comerciais e pequenas lojas de departamentos. Até o centro de saúde se redesenhara como uma loja varejista, sua vitrine cheia de aparelhos de pressão e dvds de ginástica. As ruas eram brilhantemente iluminadas, alegres e varridas com asseio, muito diferentes da Londres central que eu conhecia. Fosse qual fosse o nome daquela cidade, não havia pedaços de jornal revoando nem chicletes na calçada, não havia os habitantes das caixas de papelão. Aquele era um lugar onde era impossível tomar um livro emprestado, assistir a um concerto, fazer uma oração, consultar um registro paroquial ou praticar a caridade. Em suma, a cidade era o estado final do consumismo. Eu gostava dela, e sentia um certo orgulho de ter ajudado a estabelecer seus valores. História e tradição, a lenta morte por sufocamento de uma Grã-Bretanha mais antiga, não desempenhavam papel algum na vida de seus moradores. Eles viviam num contínuo presente varejista, onde as mais profundas decisões morais diziam respeito à compra de uma geladeira ou de uma máquina de lavar. Mas pelo menos aqueles nativos do Vale do Tâmisa, com sua cultura de aeroporto, nunca dariam início a uma guerra. Um simpático casal de meia-idade parou diante da vidraça, apoiados um no outro numa demonstração de afeto. Feliz por eles, bati no vidro rachado e fiz um vigoroso gesto de positivo. Assustado com a sorridente aparição a poucos centímetros dele, o marido deu um passo à frente para proteger a esposa e tocou o emblema de metal em seu paletó. Eu tinha visto o emblema ao entrar de carro na cidade, a cruz de São Jorge em seu campo branco, tremulando sobre os conjuntos habitacionais e parques comerciais. A cruz vermelha dos cruzados estava em toda parte, hasteada em mastros nos jardins, dando à anônima cidade um ar festivo. Uma coisa era certa, as pessoas ali tinham orgulho de sua condição inglesa, uma crença profunda que nenhum exército de redatores de publicidade tiraria delas. Dando pequenos goles na minha cerveja sem gosto - mais um triunfo da agência -, estudei o mapa enquanto o gerente ficava rodeando minha mesa. Mas eu não estava com a menor pressa de escolher, e não apenas porque tinha uma idéia bem ruim da comida disponível. O único ponto fixo no mapa era o apartamento de meu pai em Brooklands, apenas algumas milhas ao sul de onde eu estava. Eu podia quase acreditar que ele estava esperando atrás de sua escrivaninha, pronto para me entrevistar para um novo emprego, o emprego de ser seu filho. O que ele veria, naqueles primeiros trinta segundos de "ou vai ou racha" quando o entrevistado entrasse na sua sala? Candidato: Richard Pearson, quarenta e dois anos de idade, executivo de publicidade desempregado. Simpático, mas pode dar uma leve impressão de inconstância. No passado, fumante secreto e tenista juvenil em Wimbledon, com exostose no ombro direito. Marido fracassado, completamente passado para trás pela ex-mulher. Bem-humorado e otimista, mas no íntimo um pouco desesperado. Pensa em si mesmo como uma espécie de terrorista, mas a única coisa que faz bem é aquecer os chinelos do capitalismo tardio. Candidato ao posto de filho e herdeiro, embora confuso a respeito de deveres e cargos... Eu estava muito confuso, e não apenas quanto a meu pai. Uma semana antes de sua morte eu levei de carro uma amiga íntima ao aeroporto de Gatwick, ao final dos meus meses mais felizes em muitos anos. Acadêmica canadense em ano sabático, ela estava voltando para seu trabalho no departamento de história moderna da Universidade de Vancouver. Eu gostava de sua convicção e humor, e de sua franca preocupação comigo. "Vamos, Dick! De pé! Mande a tristeza embora!" Ela falou sobre a possibilidade de eu ir com ela, talvez encontrando trabalho no departamento de estudos de mídia. "É uma lata de lixo acadêmica, mas você pode batucar na tampa." Ela sabia que eu tinha sido demitido da agência - minha última campanha havia sido um dispendioso fiasco - e me intimou a encarar a mim mesmo com severidade, o que nunca é uma proposta muito sedutora. Comecei a sentir dolorosamente sua falta um mês antes de ela partir, e fiquei muito tentado a puxar a cordinha do pára-quedas e me juntar a ela. Então, no portão de embarque de Gatwick, ela descobriu meu passaporte em sua bolsa, enfado num compartimento lateral desde que voltamos de um FM de semana em Roma. Confusa, ela encarou a foto de criminoso de guerra. "Richard...? Quem? Dick, meu Deus! Este é você!" Gritou tão alto que atraiu a atenção de um guarda de segurança. Tomei aquilo como um poderoso sinal inconsciente. Vancouver e uma fuga para a academia teriam de esperar. Se alguém que gostava de mim e compartilhava minha cama era capaz de esquecer meu nome ao primeiro vislumbre de um saguão de embarque, eu precisava urgentemente me reinventar. Talvez meu pai me ajudasse. Terminei minha cerveja, observado pelo gerente, que se aproximara da vidraça e contemplava apreensivo o céu sobre a garagem de vários andares. Eu estava a ponto de lhe perguntar sobre os emblemas de São Jorge usados por muitos dos passantes, mas ele virou a tabuleta de "Fechado" para a rua e se afastou rapidamente para o fundo do restaurante. Soavam sirenes e grupos de consumidores olhavam fixamente para as nuvens de fumaça que pairavam sobre a região. Dois carros de polícia passaram a toda velocidade, com as luzes de emergência girando sobre a capota. Alguma coisa acontecera para perturbar a profunda paz consumista. O gerente desapareceu em sua cozinha, e uma voz de mulher deu um grito alarmado. Deixando dinheiro suficiente para pagar a conta, dobrei o mapa, destranquei a porta e saí do restaurante. Um carro de bombeiros abria caminho em meio à multidão, a sirene transformando o ar numa dor de cabeça. Segui a pé, passando pelos pedestres que fitavam o céu cada vez mais escuro. A algumas centenas de metros do centro da cidade, perto da estrada que eu havia tomado depois de sair da rodovia, um carro ardia em chamas na área de um modesto conjunto habitacional. Moradores estavam em pé nos jardins de suas casas, os braços cruzados, observando as labaredas que subiam de um Volvo destruído. Um policial descarregava seu extintor de incêndio na cabine de passageiros, enquanto um colega seu mantinha a multidão a distância. Eles fitavam a casa malcuidada de um de seus vizinhos, onde um policial se postava junto à porta da frente, contemplando com olhar resignado o jardim abandonado. Manchas de tinta branca traçavam um slogan estridente na parede de alvenaria, e eu presumi que um recém-chegado impopular tinha poluído a atmosfera do conjunto, talvez um assassino saído da cadeia ou um pedófilo desmascarado pelos vigilantes locais que haviam incendiado o carro. Abri caminho entre os curiosos, muitos deles carregando ainda suas sacolas de compras, observando a cena como quem depara com um inesperado display publicitário numa insípida loja de departamentos. Suas expressões eram hostis, mas precavidas, e eles ignoravam o carro de bombeiros que rugia atrás deles. Eram liderados por três homens de camisetas com a cruz de São Jorge postados ao lado do portão, empregados de uma loja local de ferragens cujo logotipo estava estampado em seus bolsos superiores. Sua presença musculosa, levemente paranóica, me fazia pensar em seguranças de estádio numa partida de futebol, mas não havia nenhum estádio nas proximidades, e o único esporte estava acontecendo fora daquele combalido automóvel. "O que está havendo? Tem alguém escondido lá dentro...?", perguntei a uma mulher robusta que murmurava consigo mesma enquanto sua filha arregalava os grandes olhos para mim. Mas minha voz foi abafada pelo rugido da multidão. A porta do casarão se abrira, e um homem barbado de turbante e manto preto estava em pé na soleira, acenando para os rostos inquietos no saguão atrás dele. Sobre a porta havia uma pequena placa de cerâmica com uma inscrição em árabe, e eu me dei conta de que aquela modesta casa de condomínio era uma mesquita. Eu presenciava a deflagração de uma faxina religiosa. Instruído por uma policial, o imame chamava seus seguidores para sair ao jardim. Três jovens asiáticos de calças jeans e camisas brancas emergiram na luz, seguidos por um paquistanês idoso e uma mulher vestindo uma djelaba e carregando uma mala. De cabeça baixa, eles passaram no meio da multidão, escoltados pelos bombeiros e policiais. Ao passar por mim, a mulher tropeçou no meio-fio, e eu senti o cheiro amanhecido e suado de seu manto, o fedor do medo. Ergui as mãos para ajudá-la, mas um ombro forte me deu um tranco, tirando meu equilíbrio. Dois dos empregados da loja de ferragens, vestindo camisetas com a cruz de São Jorge, bloquearam meu caminho, os olhos apertados olhando por cima da minha cabeça. Tropecei e caí de joelhos ao lado do Volvo, as mãos espalmadas sobre o revestimento chamuscado do assento do carro. Pernas passaram por cima de mim, sacolas de compras balançando perto do meu rosto. Sem dizer palavra, a policial me pôs de pé, então me conduziu pelo meio da multidão até seu carro, onde o imame estava sentado sozinho no banco de trás. Sua pequena congregação tinha desaparecido no ar esfumaçado. "Você está com ele?" A policial abriu a porta do passageiro para mim. "Pode sentar na frente...?" "Não, não. Estou de passagem. Sou um turista." "Turista? Não temos muitos por aqui." Bateu a porta e se afastou de mim. "Da próxima vez experimente o Brooklands Metro-Centre. Ou Heathrow... todo mundo é bem-vindo lá." Voltei ao estacionamento, já não mais surpreso com o fato de a policial pensar num shopping center e num aeroporto como atrações turísticas. Eu testemunhara uma forma muito suburbana de distúrbio racial, que mal tinha perturbado o pacato comércio do lugar. Os consumidores pastavam contentes, como um gado dócil. Nenhuma voz se erguera, nenhuma pedra fora atirada e nenhuma violência exercida, exceto contra o velho Volvo e contra mim. Tirei o carro do estacionamento e segui uma placa que indicava Shepperton e Weybridge, feliz em deixar aquela estranha cidadezinha. Considerei que um novo tipo de ódio havia emergido, silencioso e disciplinado, um racismo temperado por cartões de fidelidade e senhas de computador. Comprar era agora o modelo para todo o comportamento humano, esvaziado de emoção e fúria. A decisão dos moradores do condomínio de rejeitar o imame era um exercício de liberdade de escolha do consumidor. Em toda parte, bandeiras da Inglaterra tremulavam, nos jardins suburbanos, postos de gasolina e agências do correio, enquanto aquela cidade sem nome celebrava sua última vitória.