Trecho do livro MODERNISMO

Um clima para o modernismo É muito mais fácil exemplificar do que definir o modernismo. Esse fato curioso é por si só um tributo à sua grande riqueza. Seus exemplares cobrem um terreno tão vasto e diversificado - pintura e escultura, poesia e prosa, dança e música, arquitetura e design, teatro e cinema - que a idéia de uma mesma origem ou de um solo em comum há de parecer implausível. Há alguns anos, o juiz Potter Stewart, da Suprema Corte dos Estados Unidos, declarou que não sabia definir a pornografia, mas que podia reconhecê-la quando a via. As obras modernistas dignas de nota, seja qual for seu gênero ou o modo de se dirigir ao mundo, despertam exatamente a mesma impressão. Não admira que os comentaristas, os entusiastas e os comerciantes mais venais da indústria cultural costumem mistificar as tentativas de uma avaliação geral do modernismo. A mesma vagueza cerca o rótulo pespegado a obras artísticas e literárias: na verdade, desde a metade do século XIX utilizou-se o termo "modernismo" para todo e qualquer tipo de inovação, todo e qualquer objeto que mostrasse alguma dose de originalidade. Assim, não surpreende que os historiadores culturais, intimidados com o panorama caótico e sempre variável a que tentam dar uma ordem retrospectiva, tenham recorrido à prudência do plural: "modernismos". Esse tributo à turbulência que permeia o mercado moderno da arte, da literatura e dos demais gêneros demonstra o devido respeito por uma entidade da imaginação que por quase dois séculos acendeu discussões acaloradas sobre o gosto, quanto a sua expressão, moral, economia e política, e suas respectivas origens e implicações psicológicas ou sociais. Mas a renúncia ao termo "modernismo" no singular, reconhecidamente impreciso e demasiado abrangente, é ao fim e ao cabo uma estratégia insatisfatória. Pois há alguma coisa em certas publicações, composições, edifícios ou peças teatrais que não hesitamos em classificar como "modernista", sem temer objeção. Um poema de Arthur Rimbaud, um romance de Kafka, uma composição para piano de Eric Satie, uma peça de Samuel Beckett, um quadro - qualquer quadro - de Pablo Picasso, todos eles fornecem indicações féis do que estamos tentando identificar. E sobre todos esses clássicos avulta o rosto melancólico de Sigmund Freud, com sua barba bem aparada. Cada um tem suas credenciais próprias. E dizemos: isso é modernismo. Todavia, o mero choque do reconhecimento não basta para os historiadores da cultura, e escrevi este livro com o duplo objetivo de ser a um só tempo mais abrangente e mais concreto. Pelo que sei,nenhum estudioso tentou mapear todas as manifestações do modernismo como elementos formadores de uma única época histórica. Tenho até um palpite sobre as razões dessa timidez: parafraseando o que G. K. Chesterton disse certa vez sobre o cristianismo, não é que tenham tentado definir o modernismo e achado impossível, mas sim que acharam difícil e nem sequer tentaram. Podemos explorar todos os sintomas culturais do modernismo, mas o particular sempre ameaça prevalecer sobre o geral. É fato que, de praxe, os modernistas se entusiasmavam mais com os extremos do que com o meio-termo político ou doutrinário. Apesar de todo o liberalismo de figuras centrais como James Joyce ou Henri Matisse, muitos modernistas achavam a moderação uma coisa burguesa e maçante - dois adjetivos que gostavam de tratar como sinônimos. Mas isso não há de surpreender ninguém: com seu gosto inveterado pelo risco eles se sentiam quase que por definição mais à vontade nas fronteiras da segurança estética, ou além delas. O único ponto incontestavelmente comum entre todos os modernistas era acreditarem que muito superior ao conhecido é o desconhecido, melhor do que o comum é o raro e que o experimental é mais atraente do que o rotineiro. Assim, a metáfora mais expressiva que podemos usar nessa busca de afinidades mais amplas é talvez a de uma grande família muito interessante e variada, com todas as suas expressões individuais diferentes, mas unida por alguns laços fundamentais, como necessariamente são as famílias. Assim, meu objetivo nestas páginas é demonstrar que um volume considerável de provas fidedignas coletadas em todos os campos da alta cultura oferece unidade na diversidade, um único quadro mental estético e um estilo identificável - o estilo modernista. Tal como um acorde, o modernismo foi mais do que um agregado fortuito de protestos de vanguarda; foi mais do que a soma de suas partes. Ele gerou uma nova maneira de ver a sociedade e o papel do artista dentro dela, criou uma nova forma de avaliar as obras culturais e seus autores. Em suma, o que chamo de estilo modernista foi um clima de idéias, sentimentos e opiniões. Os climas, mesmo os emocionais, mudam, o que significa que o modernismo teve uma história própria - como todas as histórias, com uma face interna e outra externa. Nos capítulos seguintes vou apresentar os detalhes mais expressivos de sua história interna - o contato de artistas com outros artistas, ou consigo mesmos, e com as instituições que pesaram diretamente em suas trajetórias. Meu trabalho também aborda a história externa do modernismo situando-o dentro de seu ambiente, visto que a cultura desse ambiente foi ao mesmo tempo expressa e transformada pelo modernismo. Por isso, apresento logo a seguir um rápido levantamento do contexto econômico, social e intelectual (inclusive religioso) que alimentou ou dificultou as iniciativas de vanguarda. As conquistas e derrotas do modernismo são incompreensíveis sem os cenários e figurinos, que não se resumiam a um simples décor passivo e receptivo. O mundo externo foi agente e alvo dos programas modernistas, com todo o seu sentimento de urgência. Serguei Diaguilév, o inigualável empresário russo do balé moderno, teria dito a seus coreógrafos: "Surpreendam-me!". Era um bom slogan modernista. "MAKE IT NEW!" 1 A despeito de todas as diferenças visíveis, os modernistas de todas as cores compartilhavam dois atributos fundamentais, que examinarei nos próximos capítulos: primeiro, o fascínio pela heresia, que impulsionava suas ações a confrontar as sensibilidades convencionais; segundo, o compromisso com um exame cerrado de si mesmos por princípio. Todos os outros possíveis critérios de classificação, por mais promissores que fossem, falharam: as ideologias políticas, embora sugestivas, não se prestam para definir o modernismo, visto que ele é compatível com quase todos os credos, inclusive o conservadorismo e até o fascismo, e com quase todos os dogmas, do ateísmo ao catolicismo. A história mostra que os modernistas divergiram seriamente em questões de fé ou de falta de fé. A primeira qualidade fundamental que citei, o fascínio pela heresia, não é nenhum mistério. O poeta modernista que verte conteúdos obscenos em métricas tradicionais; o arquiteto modernista que elimina qualquer elemento decorativo dos projetos; o compositor modernista que transgride deliberadamente as regras tradicionais da harmonia e do contraponto; o pintor modernista que expõe um esboço rápido como pintura acabada - todos eles e seus aliados sentiam prazer em tomar um caminho novo, desconhecido, revolucionário (o deles mesmos), mas também tinham gosto pelo puro gesto de insubordinação bem-sucedida contra a autoridade vigente. É impossível quantificar essas emoções, mas provavelmente metade do prazer de criar um quadro, uma casa ou uma sinfonia radical devia derivar da satisfação do autor em vencer a oposição. "Make it new!" ["Inove!"], o lema mobilizador que Ezra Pound apresentou aos colegas de rebeldia antes da Primeira Guerra Mundial, foi uma síntese enxuta das aspirações dos modernistas por mais de uma geração. As provas escritas são inúmeras. quando Frank Lloyd Wright estava projetando o Museu Guggenheim em Nova York, nos anos 1950, ele alardeou as glórias que lhe caberiam como o primeiro museu de arte decente na história do mundo. Mais modesto - só para dar outro exemplo -, em 1940 Matisse se sentia roído de dúvidas sobre sua criatividade. E escreveu ao pintor e amigo Pierre Bonnard: "Sinto-me paralisado por uma espécie de convencionalismo que impede que eu me expresse na pintura como gostaria". Matisse logo venceu a ansiedade, mas o que importa aqui são sua devoção e o anseio por uma autonomia artística absoluta, em que a orientação brota exclusivamente do íntimo do artista. Com o passar das décadas e a difusão da arte modernista, essa afirmação da soberania pessoal do criador passou a governar também os consumidores da cultura. A vontade dos artistas de falar, pintar, cantar com liberdade e ousadia, "de coração", iria encontrar equivalente na vontade do público de apreciar - e adquirir - essas autodescobertas. A importância central do segundo critério do modernismo, o compromisso com o princípio de um exame cerrado de si mesmo, que acarreta uma exploração do eu, tinha raízes muito mais profundas do que o não-convencionalismo. Os segredos da natureza humana haviam sido perseguidos durante séculos por pensadores introspectivos como Platão e Santo Agostinho, Montaigne e Shakespeare, Pascal e Rousseau. Em sua vigorosa defesa da autonomia humana, Denis Diderot e Immanuel Kant, escrevendo na fase madura do Iluminismo, podem ser considerados protomodernistas. Os modernistas, portanto, tinham ancestrais ilustres. Para eles, o auto-exame ou o exame de seus temas se tornou essencial para os empreendimentos pouco ortodoxos a que estavam se dedicando. A partir dos anos 1840, e com uma ousadia cada vez maior nas décadas seguintes - estou escalando Charles Baudelaire, preferivelmente a todos os outros heréticos, como o primeiro herói do modernismo -, os poetas, no desprezo pela poesia tradicional ou por temas respeitáveis, passaram a experimentar as possibilidades de expressão da linguagem, criando novidades herméticas. Os romancistas começaram a investigar insolitamente as idéias e sentimentos de seus personagens. Os dramaturgos colocaram no palco os conflitos psicológicos mais sutis. Os pintores começaram a voltar as costas ao antigo veículo privilegiado da arte, a natureza, para procurar a natureza dentro de si mesmos. Para o ouvinte comum, a música em sua versão modernista se tornou mais interiorizada, menos imediatamente satisfatória do que nunca. Uma vez iniciadas, essas tendências de introversão reuniram a maioria dos ingredientes essenciais da prática modernista durante as décadas românticas, na época da Revolução Francesa e no período logo posterior. Os românticos célebres - ou notórios - deram o tom para o inconformismo rebelde. Byron e Shelley, Chateaubriand e Stendhal exibiam uma libertinagem deliberada na vida pessoal; Friedrich Schlegel ridicularizava o casamento burguês, considerando-o uma fraude, enquanto Marx e Engels acusaram essa instituição, décadas depois, de ser um mero negócio sórdido, uma forma mais elaborada de prostituição. Essa crítica marxista irrestrita à sociedade reprimida de classe média fazia parte da atmosfera revolucionária que percorreu o continente europeu em 1848 - cito-a a partir do Manifesto comunista, publicado no mesmo ano - e recebeu pouca atenção na época. Os modernistas, pelo menos naqueles primeiros anos, certamente agiam num tom um pouco menos infamado, embora Gustave Flaubert, o grande modernista na literatura, tenha, no auge de sua fúria, chegado perto disso com seu primeiro romance, Madame Bovary. A maliciosa caricatura faubertiana do burguês merece um momento especial de atenção, pois ela se tornou um modelo nos círculos modernistas. A fúria antiburguesa permeia toda a sua vasta e brilhante correspondência e seus textos publicados, como um pesadelo recorrente. O burguês de Flaubert é obtuso, ganancioso, satisfeito consigo mesmo, flisteu, mas também onipotente. Numa carta famosa, ele se definiu como um "burguesófobo", descrição ainda mais instrutiva por introduzir, sem dúvida por acaso, um termo psiquiátrico. O ódio de Flaubert pela classe média assumiu a forma de uma fobia que se converteu numa incapacidade irracional de enxergar sua sociedade como realmente era. Em suma, seu retrato do burguês odiado é um libelo indiscriminado que carece de qualquer especificidade sociológica e, com isso, de qualquer conteúdo confiável. Nessa caricatura, Flaubert reuniu operários, camponeses, banqueiros, comerciantes, políticos, o inevitável e proverbial merceeiro, todos exceto um grupo seleto de escritores e artistas - seus amigos. A aceitação acrítica desse testemunho distorceu a história social do modernismo a um ponto quase irremediável. Esse defeito fatal não impediu que seus admiradores lhe seguissem as pegadas ao longo de gerações. Apenas alguns antiburgueses, como Émile Zola, o igualaram em malícia sectária, mas o tom flaubertiano se tornou moeda corrente entre os modernistas oitocentistas, praticamente dispostos a condenar uma classe social inteira pelas falhas de suas invenções pessoais. Os modernistas do século XX não aprimoraram muito essas pechas oitocentistas. Em 1920, o pintor modernista italiano Mario Sironi, que logo se faria porta-voz artístico de confiança dos fascistas, desenhou uma paisagem urbana desolada com três figuras sinistras espreitando numa esquina, uma delas com uma pistola e outra com uma faca, aparentemente a postos para assaltar um homem de aparência respeitável - ou seja, burguês - acercando-se deles, sem a menor consciência do que o aguarda. A legenda lacônica desse drama de classe: "Antiborghese". Não há indício de nenhuma mínima censura de Sironi aos criminosos à espera da vítima. Essa hostilidade sobreviveu. É impressionante como a pura aversão dos modernistas à burguesia banal se manteve quase inalterada ao longo das décadas. Um exemplo deve bastar: o criativo escultor pop Claes Oldenburg, famoso, entre outras deliciosas ofensas, pelo gigantesco batom de ponta vermelha em cima das esteiras de um caterpílar - agora instalado no pátio de um conjunto residencial universitário em Yale -, declarou em 1960 que os burgueses se divertiam, e apenas se divertiam, com as inovações criativas. "O esquema burguês é que eles querem se sentir incomodados de vez em quando, eles gostam disso, mas então absorvem você, e aquele pouquinho acabou, e estão prontos para a próxima." Para Oldenburg, era necessário haver uma "elevação da sensibilidade acima dos valores burgueses", capaz de "restaurar a magia intrínseca do universo". É uma acusação instrutiva: Oldenburg concordava com os românticos, profanos ou devotos, que o precederam em mais de 150 anos, que as classes médias haviam roubado o encanto ao mundo, e que o dever supremo dos espíritos criativos era restaurar esse encanto. Sim, insistiam os porta-vozes autonomeados da tribo modernista, os burgueses queriam inovar as coisas, mas não muito. A agressividade verbal que os modernistas desde o início despejaram sobre os adversários não encontrou de imediato nenhum equivalente em obras-primas não-convencionais. Mas os heréticos culturais presidiram a alguns escândalos que mantinham a ansiedade de classe média num nível elevado: Olímpia, o famoso nu de Manet (pintado em 1863, mas exposto no Salão apenas dois anos mais tarde); Poemas e baladas, de Algernon Charles Swinburne (1866), com suas alusões vaporosas ao masoquismo e a outras especialidades sexuais preferidas pelos alunos ingleses antiquados; os ataques impiedosos, e de grande circulação, de literatos franceses - Baudelaire, Flaubert, os irmãos Goncourt e, um pouco mais tarde, Zola - contra a burguesia irremediavelmente inculta, o elemento característico, segundo eles, na terra dos merceeiros filisteus. Foi apenas nos anos 1880 que os modernistas começaram a produzir safras de obras históricas com uma energia impressionante, durante quarenta anos ou mais. E aí, no final dos anos 1920 e começo dos anos 1930, como veremos, essa energia assombrosa se desvaneceu (mas não para sempre) diante do totalitarismo triunfante e de uma depressão em escala mundial. 2 Assim, os decênios que se agrupam logo antes e logo depois da virada do século XX foram fundamentais para a carreira do modernismo; merecem e receberão a maioria do espaço deste livro. Foi uma época nada tranqüila nas artes: experiências estilísticas sensacionais, profundamente desconcertantes, foram interrompidas pela Primeira Guerra Mundial, a catástrofe que moldou nossos tempos modernos. A conflagração, a selvageria e a duração - arrastou-se de agosto de 1914 a novembro de 1918, com longos impasses sangrentos sobretudo no front ocidental - surpreenderam até mesmo as potências mais responsáveis pelo derramamento de sangue, em particular os austríacos e os alemães. As guerras culturais que haviam agitado todas as artes não eram nada, claro, comparadas às baixas ocorridas durante o conflito militar. Mesmo assim, já desconcertavam bastante: poemas expressionistas, pinturas abstratas, composições incompreensíveis, romances sem enredo, juntos, estavam criando uma revolução no gosto. Finda a guerra, os modernistas prosseguiram em seu trabalho. Não como se não tivesse acontecido nada. Muitos modernistas serviram no Exército, alguns sofreram colapsos nervosos, outros morreram no front. Mas de modo geral, retomada a paz, recomeçaram onde tinham parado. Marcel Proust não alterou o estilo durante a guerra, mas introduziu o tema no último volume de Em busca do tempo perdido. As telas de Max Beckmann mostraram uma nova percepção do horror e da morte. Walter Gropius se conscientizou politicamente com a guerra. E os artistas do pós-guerra usaram a guerra quase tanto quanto foram usados por ela. O historiador nota o impacto estranhamente irregular desse conflito mundial, desse desarranjo pavoroso no concerto das nações. As conseqüências na política, nas relações econômicas, nas atitudes culturais, na morte dos impérios foram irreparáveis. Mas, comparada ao surgimento da barbárie moderna, a guerra não mostrou tantos efeitos na tela ou na página impressa. As vanguardas dos anos 1920, embora parecendo inovadoras, basicamente colheram o que havia sido semeado nos anos anteriores à guerra, quando as inovações estéticas se acumulavam uma após a outra. Cada episódio modernista, fosse de 1880 ou de 1920, desafiava, fascinava ou gerava repulsa nos contemporâneos - não importando se experimentado como refinado ou grosseiro, autêntico ou fraudulento, grandioso ou simplesmente incompreensível. Um conto ou um quarteto de cordas modernista era uma oportunidade agarrada, um gesto de agressão, uma bofetada na "maioria compacta", na expressão desdenhosa de Henrik Ibsen. A comoção gerada pelos anos de guerra nas altas culturas, e que vista em retrospecto não ganhou nada em clareza, não é a única fonte de confusão para os historiadores que estudam o modernismo. A estatura das obras-primas de vanguarda mudou ao longo das gerações; algumas chegaram a ser absorvidas no mesmo cânone desprezado pelos autores que haviam se empenhado em desacreditá-lo. Com o tempo, as inovações ofensivas (ou, pelo menos, desconcertantes) nos teatros, museus e salas de concerto perderam a capacidade de chocar. Aos espectadores furiosos que em 1911 atrapalharam ruidosamente a estréia de A sagração da primavera, de Nijinsky e Stravínski, sucederam-se os públicos que não achavam nada indigesto, e na verdade até apreciavam muito, esse vigoroso amálgama entre a radicalidade da partitura e a da coreografia. É uma aparente contradição, mas também um fato histórico irrefutável, que as obras modernistas, criadas para apresentar uma aura de heresia, tenham acabado por receber o epíteto de clássicas. Afinal, é significativo que as experiências de ver, ler ou ouvir certas obras modernistas inconfundíveis - a Casa Steiner, de Adolf Loos, em Viena; a Peça de sonho, de August Strindberg; O pássaro de fogo, de Igor Stravínski; Les demoiselles d'Avignon [As senhoritas de Avignon], de Pablo Picasso - falem com o mesmo vigor para os consumidores atuais da alta cultura, mesmo sendo anteriores à Primeira Guerra Mundial. No entanto, são tão espantosas, tão modernas, quanto o Museu Guggenheim de Frank Gehry em Bilbao, concluído há poucos anos. Velhas em termos cronológicos, essas obras mais antigas continuam a fazer parte da história viva da cultura e são as responsáveis por grande parte de sua vitalidade - e de suas perplexidades.