Trecho do livro DEUS

PROGRAMA A imagem e o original Deus criou o homem, macho e fêmea, à sua própria imagem: isso é uma questão de fé. Durante séculos, nossos antepassados esforçaram-se para se aperfeiçoar à imagem de Deus: isso é uma questão histórica. Durante os longos séculos em que o Deus dos judeus e dos cristãos constituiu a realidade última do Ocidente, europeus e, mais tarde, americanos procuraram conscientemente nele se moldar. acreditavam que conseguiriam transformar a si mesmos em cópias melhores do original divino, e empenharam-se diligentemente nessa tarefa. Imitatio Dei, a imitação de Deus, constituía categoria central da piedade hebraica. A imitação de Cristo, Deus feito homem, era igualmente central para os cristãos. Muita gente no ocidente não acredita mais em Deus, mas a crença perdida, assim como uma fortuna perdida, tem efeitos duradouros. Um jovem que cresce na riqueza pode, quando atinge a maioridade, doar toda a sua fortuna e viver na pobreza. Seu caráter, porém, continuará sendo o de um homem criado na riqueza, uma vez que não pode livrar-se de sua história. De forma semelhante, séculos de rigorosa moldagem do caráter à imagem de Deus criou um ideal de caráter humano que ainda hoje é forte, mesmo que para muitos seus fundamentos tenham sido removidos. Quando ocidentais encontram uma cultura com ideais diferentes, quando dizemos, por exemplo: "os japoneses são diferentes", descobrimos, indiretamente, quão estranho e duradouro é nosso próprio ideal, a ideia que herdamos de como deve ser um ser humano. Em inúmeros aspectos externos, o Japão e o ocidente passaram a se parecer. Os japoneses comem carne vermelha; os ocidentais comem sushi. Os japoneses usam ternos; o quimono passou a fazer parte do vocabulário ocidental. No entanto, persiste uma profunda diferença, pois o Japão usava um espelho religioso-cultural diferente durante os séculos em que o Deus da Bíblia serviu de espelho para o ocidente. Este livro sobre Deus procura colocar o espelho bíblico, limpo e polido, nas mãos do leitor. Para os não-ocidentais, o conhecimento do Deus venerado no ocidente abre uma via direta para o cerne e para a origem do ideal ocidental de caráter. Para os próprios ocidentais, um conhecimento aprofundado desse Deus pode servir para tornar conscientes e sofisticadas coisas que permanecem inconscientes e ingênuas. De certa forma, somos todos imigrantes do passado. E assim como um imigrante que retorna, depois de muitos anos, à terra onde nasceu pode enxergar seu próprio rosto no rosto de estranhos, assim também o leitor ocidental moderno, secular, pode sentir um tremor de reconhecimento na presença do antigo protagonista da Bíblia. Como pode um não-crente chegar à presença de Deus? De geração em geração, o judaísmo e o cristianismo transmitiram seu conhecimento de Deus de diversas maneiras. Para poucos, existiam e ainda existem as exigentes e às vezes esotéricas disciplinas do ascetismo, do misticismo e da teologia. Para muitos, existe, o que talvez seja notável, um livro que tanto o crente como o não-crente podem abrir e ler. O conhecimento de Deus como personagem literário não impede nem exige a crença em Deus, e é esse tipo de conhecimento que o livro que está em suas mãos tenta intermediar. Os filósofos da religião afirmam às vezes que todos os deuses são projeções da personalidade humana, e pode ser que isso seja verdade. Mas nesse caso devemos ao menos reconhecer o fato empírico de que muitos seres humanos, ao invés de projetarem as suas personalidades em deuses criados inteiramente por eles próprios, preferiram introjetar - imprimir em si próprios - as projeções religiosas de outras personalidades humanas. É por isso que a religião desperta tamanha fascinação, inveja e (às vezes) raiva em escritores e críticos literários que se dedicam demais ao assunto. a religião - a religião ocidentalem particular - pode ser considerada como uma obra literária mais bem-sucedida do que qualquer autor ousaria sonhar. Qualquer personagem que "ganhe vida" numa obra de arte literária exerce algum grau de influência sobre as pessoas reais que leem essa obra. o Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, obra em que o personagem-título toma por modelo a literatura popular de sua época, traça um retrato cômico e pungente desse processo em ação. Cervantes sem dúvida meditou sobre a influência que sua própria obra viria a ter, e mostra o seu Dom Quixote "real" encontrando pessoas que conhecem um personagem literário com esse mesmo nome. Em nossos dias, milhões de pessoas misturam a vida real dos artistas de cinema com suas vidas fictícias, e atribuem a essa combinação uma importância maior do que a que concedem a qualquer ser humano real que de fato conheçam, sofrendo as melancólicas consequências dessa atitude. Sua carne é triste, sim, e elas assistiram a todos os filmes. Nenhum personagem, porém - no palco, na página ou na tela -, jamais teve o sucesso que Deus sempre teve. No ocidente, Deus é mais que um nome familiar; ele é, queira-se ou não, um membro virtual da família ocidental. Pais que não querem saber dele não conseguem impedir que seus filhos venham a conhecê-lo, pois não só todo mundo já ouviu falar dele, como todo mundo, mesmo hoje em dia, tem algo a dizer a seu respeito. o dramaturgo Neil Simon publicou há alguns anos uma comédia, God's favorite, inspirada no Livro de Jó da Bíblia. Das pessoas que assistiram à peça, poucas haviam lido o livro bíblico, mas isso não era preciso: já sabiam bem como era Deus para poderem entender as piadas. Se nada for sério, nada será engraçado, escreveu Oscar Wilde. De onde veio a imagem de Deus que os espectadores da Broadway tinham em mente ao rirem da peça de Simon? Veio inteiramente da Bíblia e, em termos mais especificamente humanos, daqueles que escreveram a Bíblia. aos olhos da fé, a Bíblia não é só um conjunto de palavras sobre Deus, é também a Palavra de Deus: Ele é seu autor e seu protagonista. Não importa se os antigos autores da Bíblia inventaram Deus ou meramente registraram as revelações de Deus sobre si mesmo: sua obra atingiu, em termos literários, um estrondoso sucesso. Ela vem sendo lida em voz alta, toda semana, há 2 mil anos, para plateias que a recebem com total seriedade, procurando conscientemente assimilar ao máximo a sua influência. Sob esse aspecto, não tem paralelos na literatura ocidental e provavelmente em nenhuma outra literatura. O Corão vem imediatamente à cabeça, mas os muçulmanos não consideram o Corão como literatura: essa obra ocupa, para eles, um nicho metafísico todo próprio. Os judeus e cristãos, ao contrário, mesmo reverenciando a Bíblia como algo mais que mera literatura, não negam que ela é também literária e concordam, em geral, que ela pode ser assim apreciada sem blasfêmia. a apreciação religiosa da Bíblia coloca como foco central e explícito a bondade de Deus. Judeus e cristãos adoram Deus como origem de toda virtude, fonte de justiça, sabedoria, misericórdia, paciência, força e amor. Mas implícita e perifericamente foram se acostumando - e depois, ao longo dos séculos, também se apegando - a algo que podemos chamar de ansiedade de Deus. Deus é, como procurarei demonstrar neste livro, um amálgama de diversas personalidades num único personagem. A tensão entre essas personalidades faz com que Deus seja difícil, mas faz também que seja atraente, e até mesmo viciante. Ao emular conscientemente suas virtudes, o ocidente assimilou de modo inconsciente essa tensão entre unidade e multiplicidade. No fim das contas, apesar do desejo que os ocidentais às vezes manifestam de um ideal humano mais simples, menos ansioso, mais "centrado", as únicas pessoas que achamos satisfatoriamente reais são aquelas cujas identidades contêm diversas subidentidades aglomeradas num todo. Quando nós, ocidentais, procuramos nos conhecer pessoalmente, é isso que procuramos descobrir uns sobre os outros. Na cultura ocidental, a incongruência e o conflito interno não são apenas permitidos, chegam quase a ser exigidos. Pessoas meramente capazes de desempenhar vários papéis não correspondem a esse ideal. Elas têm personalidade - ou um repertório de personalidades - mas não têm caráter. Pessoas simples sem complicações, que sabem claramente quem são e assumem um papel determinado sem relutar, também não correspondem a esse ideal. Podemos admirar sua paz interior, mas no ocidente jamais as imitaremos. Centradas ou centradas demais, elas têm caráter, mas pouca personalidade. Entediam-nos como nós mesmos nos entediaríamos se fôssemos como elas. Tornamos as coisas assim tão difíceis para nós mesmos porque nossos antepassados viam a si próprios como imagem de um Deus que, na verdade, havia complicado as coisas para si mesmo de maneira semelhante. o monoteísmo reconhece um único Deus: "ouvi, ó Israel, o Senhor é nosso Deus, o Senhor é um". A Bíblia insiste na unidade de Deus mais do que em qualquer outra coisa. Deus é a rocha das Idades, a integridade em pessoa. E, no entanto, esse mesmo ser combina diversas personalidades. mera unidade (caráter apenas) ou mera multiplicidade (personalidade apenas) seriam bem mais fáceis. Mas ele é ambas as coisas e assim a imagem do humano que dele deriva exige ambas as coisas. É estranho dizer isso, mas Deus não é nenhum santo. muitas objeções podem ser feitas a seu respeito e já houve várias tentativas de melhorá-lo. muitas coisas que a Bíblia diz a seu respeito raramente são pregadas no púlpito porque, se examinadas mais de perto, seriam um escândalo. Mas, mesmo que só parte da Bíblia seja ativamente pregada, nenhuma de suas partes é contestada. Em qualquer página da Bíblia, Deus continua sendo o que sempre foi: o original da Fé de nossos Pais, cuja imagem ainda vive dentro de nós como um ideal secular difícil mas dinâmico. 1. PRELÚDIO Pode-se escrever a vida de Deus? Pode-se afirmar que um personagem literário vive uma vida que começa com o nascimento e vai até a morte ou que, ao contrário, sofre apenas um desenvolvimento do começo até o fim da obra? ou será que um personagem literário - fixado nas páginas de um livro, preso para sempre nas mesmas poucas palavras e ações - é o oposto de um ser humano vivo, em desenvolvimento? Para William Kerrigan, o embate entre essas duas posições moldou todo um século de crítica ao Hamlet, e ele chama os dois grupos opostos de críticos e acadêmicos. os críticos, diz ele, dominantes no começo do século XX, acreditavam no personagem. Acreditavam que para falar sobre Hamlet, a peça, era preciso falar sobre Hamlet, o homem: o que ele dizia, o que fazia, e como se transformava no tempo decorrido entre sua primeira e sua última palavra no palco. os acadêmicos, dominantes no meio desse século, tomavam como lema a própria fala de Hamlet: "a peça é o que interessa". Eles acreditavam que empiricamente nunca existiu um Hamlet, mas apenas as palavras de Shakespeare sobre a página, e que, portanto, só sobre elas se podia falar com legitimidade. Para além delas, não se estaria falando de um resto imaginado sobre Hamlet, porque o resto é silêncio, para usar outra fala da peça. Só se podia discutir sobre o resto da dramaturgia e da sociedade elisabetanas procurando outras peças que Shakespeare pudesse ter conhecido, aprofundando o conhecimento da língua que ele falava, e assim por diante. O patrono dos críticos era A. C. Bradley, cuja obra Shakespearean tragedy, publicada em 1904, é ainda influente. o momento de virada da crítica para o academicismo e do personagem para a dramaturgia como foco pode ser situado em 1933, quando L. C. Knights escreveu um famoso ensaio: "Quantos filhos tinha lady macbeth?", caçoando da postura de Bradley - que Knights considerava ingênua - , segundo a qual se podia falar de personagens literários em si. Knights achava que a abordagem de Bradley talvez pudesse ser apropriada para biografias, mas era, sem dúvida, inadequada para a crítica literária. Kerrigan demonstra que durante décadas o triunfo dos acadêmicos sobre os críticos pareceu completo. A maioria das pessoas que hoje ensinam e escrevem sobre Shakespeare foi formada pelos acadêmicos. Os críticos, porém, de um modo ou de outro sempre estiveram presentes, e nos últimos anos ocorreu uma interessante bifurcação. Por um lado, o tipo de historicismo que passou a dominar na época do ensaio de Knights deu origem a um "Novo Historicismo" que, do ponto de vista intelectual, deve muito ao pensamento francês. Em termos gerais, enquanto o Velho Historicismo procurava entender a história que estava embutida no texto da peça, o Novo Historicismo procura entender a peça como ela própria embutida na história. Kerrigan escreve: Stephen greenblatt [o mais conhecido dos Novos Historicistas] conclui o seu Renaissance self-fashioning com a famosa declaração de que começara a escrever um livro sobre indivíduos da renascença para descobrir, no fim, que não havia indivíduos. É um tanto surpreendente descobrir, no início de seu Shakespearean negotiations, que ele começara esse livro em busca da intensidade única do autor, descobrindo, no fim, que também não existem autores: "Este livro demonstra que as obras de arte, por mais intensamente marcadas que sejam pela inteligência criativa e obsessões particulares de indivíduos, são produtos da negociação e do intercâmbio coletivo". O reinado dos acadêmicos continua, portanto; mas, por outro lado, ao menos alguns dos acadêmicos de ontem estão sub-repticiamente passando para o campo da crítica, dentre eles o próprio Kerrigan. "Fui formado pelos acadêmicos", escreve ele, "e falar de 'desenvolvimento do personagem' em Hamlet é coisa que me deixa inquieto. Mas não sei de que outra maneira descrever a mudança do Hamlet autodepreciativo dos dois solilóquios finais para o belo e calmo Hamlet do quinto ato." Filosoficamente , Bradley era um hegeliano, e a disputa entre ele e Knights era uma versão literária da interminável contenda entre o idealismo germânico (ou continental) e o empirismo britânico. mas ambas as tradições provêm, em última análise, da antiguidade clássica, e Kerrigan termina sua avaliação citando Aristóteles: Precisamos, portanto, entender o começo e o fim de Hamlet e juntar as duas coisas. Como um aristóteles moderno destrinchando a misteriosa tragédia do personagem, temos de ligar começo, meio e fim. É assim que se faz. A BIOGRAFIA DE DEUS É assim que faremos neste livro. Comecei este prólogo com uma discussão sobre Hamlet porque quero situar na literatura o meu assunto. Escreverei aqui sobre a vida do Senhor Deus como o protagonista - e apenas isso - de um clássico da literatura mundial; a saber, a Bíblia hebraica ou antigo Testamento. Não escreverei sobre (embora certamente não escreva contra) o Senhor Deus como objeto de crença religiosa. Não procurarei, como a teologia, afirmar nada de original sobre Deus enquanto realidade extraliterária. Não escrevo como historiador e portanto não focalizarei, como fazem os historiadores, as sucessivas comunidades israelitas e hebraicas que acreditaram em Deus. o que me interessa não são essas comunidades de crentes mas, à maneira de A. C. Bradley, o Deus em que acreditavam. E como Bradley acredito, ao contrário de Knights, que o efeito biográfico - a sugestão artística de uma vida - é inseparável do efeito dramático ou literário em si. a menos que o espectador de Hamlet acredite que Hamlet nasceu e morrerá, a menos que a imaginação do espectador seja transportada do palco para a vida da qual não se tem no palco nenhuma prova direta, a peça acabará mor rendo junto com seu protagonista. Um personagem que não tenha vida fora do palco não pode ter vida no palco. E assim é também com Deus enquanto protagonista da Bíblia. Se a biografia é tida, em termos estreitos, como um ramo da história, não pode, então, haver biografia de um personagem não histórico. Mas Deus efetivamente tem uma primeira e uma última aparição na Bíblia hebraica. Nós o vemos primeiro como criador, fora da história, anterior a ela, poderosamente colocando em movimento os corpos celestes por meio dos quais se pode medir o tempo histórico. Nós o vemos por fim como o "ancião dos Dias", de cabelos brancos e silencioso, à espera do fim da história, sentado num trono remoto e nebuloso. Este livro passa a ser uma biografia de tipo especial por força de sua determinação em descrever aquilo que existe entre um começo de tanto vigor e um fim de tanta quietude. O começo e o fim da Bíblia hebraica não estão ligados por uma narrativa única, contínua. Bem antes do meio do texto, a narrativa se quebra. o que vem em seguida são, primeiro, discursos pronunciados por Deus; segundo, discursos pronunciados para ou, até certo ponto, sobre Deus; terceiro, um prolongado silêncio; e, por último, uma breve retomada da narrativa antes da coda de encerramento. Depois do suspense narrativo que vai desde o Livro do Gênesis até II Reis existe, a partir desse ponto, um outro tipo de suspense, mais parecido com aquele que os jurados experimentam num tribunal diante de várias testemunhas falando sobre a mesma pessoa. Uma sequência de testemunhos - cada um com sua própria voz , com seu próprio começo e fim - pode ser tão eficiente quanto uma narrativa ao sugerir que a pessoa à qual as palavras se referem não se limita àquilo que dizem as palavras. Isso constitui uma outra forma de efeito biográfico. E, mesmo sob essa forma, trata-se de um efeito que pode trazer consigo algo como um movimento para a frente, um "E daí?". Na Bíblia hebraica, porém, depois que a ação cede terreno ao discurso, o discurso por sua vez dá lugar ao silêncio. as últimas palavras de Deus são as que ele diz a Jó, o ser humano que ousa desafiar não seu poder físico, mas sua autoridade moral. No próprio Livro de Jó a resposta final e poderosa de Deus parece silenciar Jó. mas se lermos do final do Livro de Jó em diante veremos que até certo ponto foi Jó quem silenciou Deus. Deus não torna a falar, e cada vez se fala menos dele. No Livro de Ester - que, como o Livro do Êxodo, mostra o povo escolhido enfrentando um inimigo genocida - Deus nem chega a ser mencionado. Na verdade, os judeus superam a ameaça sem a sua ajuda. Qual é o significado dessa longa penumbra da Bíblia hebraica, em seus dez últimos livros? a penumbra não é seguida de trevas: Deus não morre. Mas ele nunca mais interfere nos assuntos humanos, e implicitamente fica cada vez mais claro que não se espera mais nenhuma intervenção dele. O povo escolhido, tendo retornado do exílio, louva-o mais do que nunca quando a sua vida termina - mais, decerto, do que quando ele derrotou o Faraó "com mão poderosa e braço estendido", levando esse povo pelo deserto até a terra prometida. Naquele tempo, eles eram recalcitrantes e Deus dizia, amargamente, que tinham "dura cerviz". Agora são devotos, mas ele nada mais tem a dizer para eles ou sobre eles - nem para ou sobre nada ou ninguém mais. Deus e seu povo estão bela e comovedoramente reconciliados quando a Bíblia hebraica chega ao fim, e não se pode acusar de blasfema a afirmação de que sua própria vida terminou. Esse vasto movimento da ação para o discurso e do discurso para o silêncio constitui um relato que pode ser chamado de teografia, diverso tanto da teologia como da biografia. Um místico medieval escreveu uma vez: "Deus anula o que existe de sucessivo nos homens", querendo dizer que, enquanto os seres humanos vivem suas vidas um dia por vez, Deus enxerga a totalidade de suas vidas como um retrato na parede, todos os momentos visíveis para ele ao mesmo tempo. os seres humanos, porém, retribuíram o favor com uma vingança, anulando o que existe de sucessivo no protagonista da Bíblia com uma tradição de leitura que considera a totalidade do texto como simultânea em si mesma, de forma que qualquer versículo pode ser lido como um comentário sobre qualquer outro versículo, e qualquer afirmação verdadeira a respeito de Deus num determinado ponto é considerada verdadeira em todos os pontos. "Jesus Cristo ontem e hoje é o mesmo, e o será para sempre", diz o Novo Testamento em Hebreus,13:8; mas, deixando de lado esse versículo posterior e questionável, não existe no Novo Testamento nenhuma garantia à afirmação de que Deus é imutável, como também não há na Bíblia hebraica. A origem dessa concepção encontra-se, provavelmente, na filosofia aristotélica, com sua formulação de Deus como o motor imóvel, existindo num momento único, eterno. É fato que o Senhor Deus de Israel é o criador e controlador do tempo, e os Salmos repetem que ele vive para sempre. Até esse ponto ele é como o motor imóvel de Aristóteles. E, no entanto, por contraditório que possa parecer, ele penetra no tempo também e transforma-se através da experiência. Se assim não fosse, ele não se surpreenderia; e ele é infindavelmente surpreendido, às vezes de um modo desagradável. Deus é constante; não é imutável. A leitura estritamente sequencial da Bíblia hebraica constitui uma maneira de recuperar o que nela existe de sucessivo, o caráter de desenvolvimento ou teografia que a exegese "aristotélica" obscureceu. os cristãos rezam "Pai nosso que estais no céu...", como Cristo rezava, e imaginam que o ser que diz, no Gênesis,1:3: "Haja luz", é pai, mas Deus não se refere a si mesmo como pai nesse ponto. Só muitas centenas de páginas depois, em II Samuel, 7, é que ele o faz pela primeira vez. Os judeus rezam: "Bendito sois, ó Senhor, nosso Deus, rei do Universo", e imaginam que o Deus do Gênesis é rei, mas ele não se apresenta como rei senão mais tarde, em Isaías, 6. "mais tarde" neste contexto não significa mais tarde no tempo histórico, mas simplesmente mais tarde na exposição, mais adiante numa leitura que vá do começo ao fim do livro. Historicamente falando, o "tempo" em que Deus diz: "Haja luz", fica fora do tempo; mas do ponto de vista do leitor que começa no começo do Livro do Gênesis e lê direto a partir dali podemos dizer "mais tarde" e "mais cedo". É o que faremos muitas vezes neste livro. Não há como fingir que uma abordagem diacrônica ou direta da Bíblia hebraica seja a única abordagem possível do personagem Deus como seu protagonista. É possível também uma leitura sincrônica. Isto é, em vez de proceder do início ao fim numa ordem quase cronológica, um crítico pode criar um conjunto de tópicos e juntar sob cada tópico todos os textos que parecem pertencer àquela categoria. mas uma abordagem conscientemente ingênua, que vá do começo até o fim, além de ser mais respeitosa à integridade da Bíblia como obra literária, traz em si, conforme veremos, uma dramaticidade e um pathos surpreendentes. Como se trata aqui de um estudo literário mais do que histórico, uma ingenuidade deliberada de outro tipo torna-se possível e até necessária. Toda história crítica a respeito de qualquer período ou assunto se vê em dificuldades para distinguir o que realmente aconteceu daquilo que não aconteceu. Mesmo quando esses historiadores estão quase seguros de estarem lidando com uma invenção literária, sua preocupação não é apreciar a invenção em si mesma como obra de arte literária, mas buscar nela provas da história real, mesmo que seja apenas da história intelectual de seu autor. mito, lenda e história misturam-se infindavelmente na Bíblia, e os historiadores da Bíblia empenham-se infindavelmente em separar uma coisa da outra. a crítica literária, porém, não só pode como deve deixar essas coisas misturadas. O Livro do Gênesis diz que Deus transformou a esposa de Ló em uma estátua de sal, acontecimento que evidentemente não tem nenhum suporte enquanto história, mas que para os propósitos deste livro deve contar como um momento na vida de Deus e como prova, mesmo que menor, do desenvolvimento de seu caráter. Podemos aceitar que os historiadores nos contem o que realmente aconteceu. Podemos aceitar que os teólogos nos contem se o Deus verdadeiro faria uma coisa dessas. Em termos literários, porém, que constituem o único propósito deste livro, o fato de o protagonista do livro ter realmente praticado esse ato em suas páginas já basta para que seja levado em consideração. os leitores céticos poderão perguntar, evidentemente, se não haverá, mesmo numa época secular, alguma distorção em tentar compreender Deus nos termos que utilizamos para compreender seres humanos. Robert Alter escreveu a respeito: "Pouco se ganha, acredito, ao conceber o Deus bíblico, como faz Harold Bloom, como um personagem humano - petulante, teimoso, arbitrário, impulsivo ou o que seja. O que os autores bíblicos repetem todo o tempo é que não se pode entender Deus em termos humanos". Mas Alter exagera. Uma das primeiras afirmações que todo escritor bíblico faz sobre Deus é que a humanidade é a imagem de Deus - um inconfundível convite a atribuir algum sentido a Deus em termos humanos. Deus raramente diz de si mesmo que é misterioso e mais de uma vez sugere mesmo o oposto, como quando, falando sobre a possível dificuldade de suas palavras, afirma: "Porque este mandamento, que hoje te ordeno, não é demasiado difícil, nem está longe de ti. Não está nos céus, para dizeres: 'Quem subirá por nós aos céus, que no-lo traga, e no-lo faça ouvir, para que o cumpramos?'" (Deut., 30:11-2). Em determinado ponto da Bíblia hebraica, Deus efetivamente começa a falar de si mesmo como misterioso. mas nada nos impede de perguntar por que o faz então e não antes. Sem dúvida, não se encontra na própria Bíblia nada que nos autorize a ver Deus como um assunto a ser evitado em respeitoso silêncio. Quanto a Bloom estar certo ou errado em afirmar que se pode falar de Deus como personagem humano, podemos perguntar, ao menos, de que forma Deus difere da criatura humana com a qual, segundo seu próprio testemunho, ele se parece até certo ponto. Em outras palavras, supondo que Deus e a humanidade não são idênticos, em que medida são diferentes? O que torna Deus divino? o que há de especial em seu caráter? E, acima de tudo, podemos perguntar, respeitando sempre os limites da Bíblia como obra de literatura, como o desenvolvimento de suas primeiras ações se relaciona com as ações posteriores. Essa questão não perde sua relevância mesmo quando lemos os livros bíblicos que vêm depois da extensa narrativa de abertura. Esses últimos pontos, podemos ouvi-los como um biógrafo ouve uma entrevista ou (conforme sugerimos antes) como um jurado num tribunal, não tentando reconstruir os eventos, mas simplesmente como um depoimento sobre o personagem, de uma testemunha que também é personagem. Como é que ele atinge você? Ele o assusta? Você o ama? O que é que ele quer? Ele mudou muito desde que você o conheceu? O que mais o impressionou a respeito dele? São essas e outras perguntas semelhantes que impulsionam esta biografia. Pode-se pensar, é claro, que não existe real desenvolvimento e que Deus é monotonamente o mesmo e impenetravelmente misterioso desde a primeira até a última de suas aparições. Nenhum resultado pode ser descartado. O que precisamos é apenas de fidelidade à humilde e paciente tática por meio da qual um personagem chega a conhecer outro personagem. Com empatia e atenção, o biógrafo tem de cotejar aparentes conflitos entre uma afirmação feita por Deus e outra posterior, entre uma ação e outra posterior, entre uma afirmação feita em qualquer momento determinado e seu comportamento nesse mesmo momento, e assim por diante. os conflitos têm de ser resolvidos seja por sua identificação e confirmação enquanto desenvolvimento do personagem, seja explicando por que esses conflitos são mais aparentes do que reais ou - em último caso - simplesmente reconhecendo-os: o conhecimento de um conflito não resolvido num personagem pode ser o conhecimento mais importante de todos. Na vida real, esta é a mais comum e necessária das atividades interpessoais. avaliamos diariamente as pessoas com quem vivemos e trabalhamos. alguém faz alguma coisa que não se encaixa e encontramos uma maneira de explicar a atitude não característica - "meu filho está doente", "minha mulher acaba de perder o emprego" - ou então revisamos provisoriamente nosso entendimento - "Ele sempre pareceu tão bem intencionado, mas aí...". Essa capacidade, tão importante para viver a vida, é igualmente importante na apreciação da literatura, uma arte feita pela reutilização intensificada de vidas e da linguagem humanas. A Bíblia é inquestionavelmente uma extraordinária obra de literatura, e o Senhor Deus um personagem dos mais extraordinários. Mas uma das duas premissas básicas desta biografia é que nem a obra nem o personagem são tão inumanos a ponto de essa avaliação interpessoal ter de ser descartada.