Trecho do livro O CRIME DO RESTAURANTE CHINÊS

BREVE EXPLICAÇÃO Este livro narra a história do crime do restaurante chinês, que abalou São Paulo em 1938, com repercussões nos anos seguintes. Considero o crime - na verdade uma chacina - o núcleo da narrativa, que se desdobra em outras, em especial o carnaval e a Copa do Mundo daquele ano. Não se trata de uma escolha feita ao acaso: entre o crime e o carnaval há uma relação explícita; entre o crime e a Copa há uma relação mais sutil, tecida com fios tênues. O livro se situa numa forma de fazer história que seus autores mais conhecidos denominaram de micro-história. A partir de historiadores italianos como Carlo Ginzburg e Giovanni Levi e do francês Le Roy Ladurie, desde meados da década de 1970, a micro-história tornou-se um gênero histórico muito prestigioso no mundo ocidental. Seus objetivos básicos podem ser assim resumidos: a) reduzir a escala de observação do historiador, a fim de apreciar ações humanas e significados que passam despercebidos quando se lida com grandes quadros; b) concentrar essa escala em pessoas comuns e não em grandes personagens, buscando ouvir sua voz; c) extrair de fatos aparentemente corriqueiros uma dimensão sociocultural relevante; d) apelar para o recurso da narrativa, ao contrário da história das grandes estruturas, sem entretanto confundir-se - dado seu conteúdo e seu estilo - com as narrativas tradicionais, predominantes no século XIX; e) situar-se no terreno da história, o que significa apoiar-se nas fontes, delimitando-se assim, claramente, a obra ficcional. Com suas peculiaridades, O crime do restaurante chinês se enquadra na linha da micro-história, por seu enfoque e suas preocupações. A escala de observação é reduzida, como indica a escolha do tema. Muitos personagens são pessoas comuns, invisíveis no plano dos grandes acontecimentos, e que não figuram na galeria dos "grandes personagens da nossa história". No entanto, suas vidas e suas interações com um amplo contexto social surgem como chaves de entendimento de ângulos ignorados desse contexto, como se fossem fachos de luz, capazes de alcançar lugares escuros de uma sala que a luminária do teto não alcança. O estilo preferencial é a narrativa, mas não a narrativa ficcional, pois a trama se apoia em fontes históricas. Algumas palavras sobre o espaço e o tempo do livro. Ele se situa, como o subtítulo indica, na São Paulo da década de 1930, ou, com maior incidência, nos anos que vão de 1938 a 1942. Mesmo estando ainda longe da megalópole dos dias atuais, nessa época São Paulo já é um grande centro, com mais de 1 milhão de habitantes. Nesse tecido urbano, em que os vestígios do passado não haviam desaparecido, os meios de informação estavam bastante disseminados, pela via dos jornais e das emissoras de rádio, que alcançavam não só a classe média como setores das classes populares. A cidade se singularizava pela variedade étnica, em grande medida resultante da imigração em massa de fins do século XIX e das primeiras décadas do século XX. Em meados dos anos 1930, nela conviviam imigrantes e seus descendentes, velhos paulistanos em crescente minoria e migrantes internos que começavam a chegar em grande número, de Minas Gerais e do Nordeste. Ao mesmo tempo, consolidara-se na cidade uma opinião pública, atenta aos acontecimentos, capaz de assumir posições ideológicas, participante ativa de movimentos políticos, dentre os quais a revolução de 1932 foi o episódio mais significativo. Desde meados dos anos 1920, São Paulo se orgulhava de sua "altivez", da ética do trabalho imperante na sociedade, do impetuoso crescimento sintetizado pelo dístico ostentado em seus bondes fechados: "São Paulo é o maior centro industrial da América Latina". Em alguns momentos, a narrativa do livro deita o olhar sobre o mundo dos bairros, como o Brás, a Lapa, a Vila Esperança. Mas os personagens da história movem-se, preferencialmente, na área do chamado Centro Velho, onde estavam instaladas as principais repartições públicas, a sede dos jornais, as lojas elegantes, os restaurantes, os cinemas e teatros, os escritórios de advocacia. É para o centro que as pessoas acorriam em busca de quitar compromissos, de divertir-se, de fazer compras ou, simplesmente, de passar o tempo, misturando-se ao fluxo das ruas. Abandono essa breve referência a São Paulo de outros tempos e volto ao tema da micro-história, introduzindo uma observação final. Entre os riscos em que o gênero tem incorrido ao longo dos anos, figura em destaque o de tomar por objeto uma história curiosa, mas irrelevante. Acredito que o livro não incide nesse problema, na medida em que o episódio central é a chave de abertura de caminhos mais amplos, sejam eles, entre outros, o funcionamento do aparelho policial e judiciário, o racismo, a discussão da natureza da criminalidade, do perfil dos infratores etc. De qualquer forma, se o leitor não quiser se deter na questão da relevância, quem sabe, mergulhando na leitura, encontrará o prazer da leitura de uma boa história. INTRODUÇÃO Como fazia invariavelmente todos os dias, o lituano Pedro Adukas, cozinheiro de um restaurante chinês no centro de São Paulo, chegou bem cedo ao trabalho, por volta das seis e quarenta e cinco da manhã. Era o dia 2 de março de 1938. O restaurante ficava na rua Wenceslau Braz, próximo à praça da Sé, que desce em acentuado declive até alcançar a ladeira do Carmo. Em 1938, daquele ponto do Carmo ainda era possível ver, ao longe, a silhueta das fábricas dos bairros mistos, industriais e residenciais, do Brás e da Mooca, que deitavam fumaça no horizonte. Naquele dia, a cidade ainda dormia ou ia se levantando lentamente. Apesar de São Paulo se vangloriar de ser o maior centro industrial da América Latina, como anunciavam seus vermelhos bondes "camarão", o silêncio e a modorra se explicavam: não se tratava de uma quarta-feira qualquer, e sim de uma Quarta-Feira de Cinzas, após três dias de carnaval. Mas nem tudo estava parado. Os lixeiros percorriam as ruas, recolhendo os restos da folia no centro da cidade. Cacos de vidro de lança-perfumes, serpentinas emaranhadas, garrafas de cerveja, iam sendo lançados nos caminhões de lixo, embora fosse difícil apagar todos os vestígios de uma festa que introduzira uma cunha brejeira na marcha cotidiana da cidade sisuda. Dentre os vestígios, os confetes coloridos teimavam em ficar grudados ao asfalto, resistindo às vassouras dos lixeiros até que fossem arrastados pelas chuvas fortes de verão. E havia outra gente, como Pedro Adukas, que tratava de cumprir suas rotinas, mesmo numa manhã excepcional como aquela. Seguindo seu costume, Adukas bateu palmas para que o patrão abrisse a pesada porta gradeada de enrolar, usualmente trancada à chave, com um cadeado preso na parte inferior, que vedava o ingresso no restaurante. Ninguém respondeu e, nessa altura, ele verificou que o cadeado não tinha sido posto, ou fora removido. Com esforço, levantou a grade, entrou no imóvel, passando os olhos incertos pela semiobscuridade do salão de refeições do restaurante, que se abria diretamente para a rua. Seus olhos se arregalaram diante de uma cena de horror. No chão, entre mesas e cadeiras, deu com o corpo de um homem estirado de bruços, com a cabeça esfacelada, que a princípio não reconheceu. Perto dele, em posição semelhante, outro morto, com a cabeça no mesmo estado e muitas equimoses no rosto. O sangue espirrara nas paredes e fluía dos corpos das vítimas, traçando um riacho vermelho no chão de azulejos retangulares, alternados em preto e branco. Adukas avançou pelo interior do salão. Abriu a porta lateral que dava para uma estreita área coberta, atravancada em parte por garrafas e baldes, tendo nos fundos uma construção independente, onde moravam os donos do restaurante - Ho-Fung e sua mulher, Maria Akiau. Na área coberta, junto a uma pia, encontrou o corpo de seu patrão, também estirado de bruços, com ferimentos semelhantes aos das duas primeiras vítimas. Deu alguns passos, subiu as escadas da construção dos fundos e chegou a um corredor, que se abria para uma sala. Não chegou a ir até lá. Abriu uma porta à esquerda e entrou no quarto do casal. Uma quarta vítima aí o aguardava. Era Maria Akiau, estendida no chão, junto ao leito, com os pés em direção ao travesseiro e a cabeça, ao pé da cama. Adukas recuou, saiu à rua, vendo passar diante de seus olhos as imagens dos corpos desfigurados, da parede e do chão manchados de sangue, com uma nitidez a que a luz do dia parecia dar novos contornos, em contraste com a semiobscuridade do restaurante. Andou alguns metros, virou à direita na praça da Sé, mal reparou na catedral ainda em construção e que, aos nossos olhos, pareceria decapitada, e foi desembocar na Central de Polícia, no Pátio do Colégio. Em poucos minutos, os policiais chegaram ao número 13 da rua Wenceslau Braz. Apesar da hora, uma aglomeração ia se formando, mas os boatos não davam conta do que de fato ocorrera. Ao longo das semanas seguintes, a aglomeração não seria desfeita. Um guarda civil de uniforme azul permaneceria postado diante do restaurante, cujas grades ficavam baixadas para evitar que curiosos mais ousados fossem contemplar a cena do crime, mesmo sabendo que lá só restavam uns poucos móveis e nenhuma figura humana. Enquanto alguns peritos chamados ao local colhiam impressões digitais, dados da posição dos corpos, da extensão dos ferimentos, fotografavam o salão principal, outros atravessaram a área coberta dos fundos que se abria para a habitação do casal. A partir do ângulo de entrada do corredor fotografaram a parede à direita, percorrida por uma corda de varal, em que estavam estendidos alguns panos e pendurava-se um guarda-chuva fechado. Do mesmo ângulo também fotografaram parte da sala dos fundos, onde havia um armário encostado a uma porta. O recinto servia ao mesmo tempo de sala de jantar, de visitas e quarto de costura. Junto ao armário, uma cadeira de balanço movia-se lentamente, como se fosse o único elemento vivo naquela cena de corpos e objetos inanimados. Tal como havia feito Pedro Adukas, mas com gestos bem mais calmos e calculados, os peritos abriram a porta à esquerda do corredor e encontraram no pequeno quarto do casal, estendido no assoalho, o corpo de Maria Akiau. Os dois mortos no salão do restaurante, como veio a se apurar, eram o lituano José Kulikevicius e o brasileiro Severino Lindolfo Rocha. Ambos trabalhavam no local havia poucos dias, e Pedro Adukas, empregado mais antigo, nem sequer os reconhecera. O assassino matara os dois desferindo vários golpes com um grosso cilindro de madeira, de aproximadamente setenta centímetros de comprimento. Utilizado como pilão no serviço da cozinha, o cilindro foi encontrado no salão, coberto com manchas de sangue. Os homens haviam sido surpreendidos enquanto dormiam sobre as mesas do restaurante, junto a uma parede, como costumavam fazer com o consentimento do patrão, que assim os tinha sempre à mão para começar o serviço nas primeiras horas do dia. Um saco de estopa, mal preenchido com um chumaço de palha, servia de travesseiro, e uma estopa maior, estendida sobre a mesa, fazia as vezes de coberta. Ho-Fung tinha uma toalha branca sobre a cabeça, provavelmente posta pelo autor (ou autores) do crime. Ao retirar a toalha os peritos constataram que, além das pancadas, responsáveis pelas várias fraturas na cabeça, o dono do restaurante fora asfixiado por um laço de algodão, apertado em torno do pescoço, como se o agressor quisesse certificar-se de sua morte. O proprietário vestia uma calça de casimira listada, cueca e camisa de meia branca. No dedo anular da mão esquerda, uma aliança de ouro e, em um dos bolsos da calça, uma cédula de vinte mil-réis. Junto ao corpo, um par de tamancos. O fato de estar vestido e a presença dos tamancos eram sinais de que Ho-Fung não se assustara e chegara a pensar que teria alguns minutos para vestir-se antes de descer as escadas de sua habitação e ver o que ocorria no salão do restaurante. Maria Akiau morrera por último. Não fora inteiramente surpreendida pelo criminoso. Lutara com ele em condições desiguais, como demonstravam as profundas marcas de unhas em seu pescoço. Embora tivesse sofrido ferimentos no rosto, Maria não fora espancada, e sim morta por esganadura, com um laço de tecido fortemente apertado no pescoço. Ao contrário dos demais, seu corpo se estendia no assoalho em decúbito dorsal. Tinha poucas manchas de sangue no rosto semioculto pelos cabelos abundantes que se espraiavam pelo chão e à volta da cabeça, como se ainda pertencessem a um corpo vivo. O tempo da ação, segundo concluíram os peritos, fora muito rápido: Severino e Kulikevicius haviam sido abatidos no sono, como se vivessem um pesadelo; Ho-Fung, logo depois, ao tentar chegar ao salão do restaurante de onde partiam o ruído das pauladas e gemidos abafados; Maria Akiau em seguida, nos poucos metros entre o salão do restaurante e sua habitação que o criminoso percorrera em curto intervalo de tempo. Era preciso ser bastante forte e rápido para produzir aquela sequência macabra de cadáveres. Ou seriam vários os assassinos, que, numa tétrica divisão de trabalho, teriam repartido a tarefa de liquidar as vítimas? Um cofre de marca Bernardini, encostado numa parede do salão do restaurante, trancado à chave, chamou a atenção dos policiais. Depois de procurar sem resultado a chave, eles resolveram chamar um mecânico considerado especialista pela empresa que fizera o cofre. Ao chegar ao local, o homem não se revelou competente. Tocou no cofre, murmurou algumas palavras, girou a seguir uma chave, mas a peça não se moveu. Diante da impaciência das autoridades, desistiu de abrir o cofre por métodos suaves e tratou de arrombá-lo. Sob a pressão das ferramentas, a porta não resistiu por muito tempo. No interior do cofre, em meio a cadernetas do Departamento Nacional do Trabalho, passes dos bondes da Light - a empresa canadense concessionária dos serviços -, livros de escrituração comercial, um dicionário de língua portuguesa, foram encontradas cédulas e muitos níqueis cuidadosamente empilhados, no total de vinte e um contos, setecentos e oitenta mil e duzentos réis, ou seja, 21:780$200, mantendo-se a fórmula numérica da época.