Trecho do livro TESTEMUNHAS DA CHINA

1. Yao Popo, ou a Curandeira de Xingyi YAO POPO ou a Curandeira, de 79 anos, entrevistada em Xingyi, na província de Guizhou, sudoeste da China. Quando Yao tinha quatro anos, sua mãe foi morta e ela foi entregue a um comerciante de ervas medicinais. Casou-se com um músico, filho adotivo do comerciante, e os três viajaram pela China, do rio Yangste ao rio das Pérolas, entre os anos 30 e os 60. Ela afirma que a Revolução Cultural a ajudou: construiu sua casa e toda uma vida a partir daí, pois hospitais e faculdades de medicina foram fechados e as pessoas, então, passaram a procurá-la. Às 2h20 da madrugada de 26 de julho de 2006, depois de 28 horas em aviões, de Londres a Guilin, via Munique, Beijing e Xi'an, eu estava exausta demais para dormir. Os dois fortes soníferos que havia tomado me deram apenas três horas de um sono intranquilo, cheio de sonhos nos quais eu subia e descia de aviões, fazia o check-in, apanhava a bagagem e corria voltas e mais voltas em círculo, procurando o centro - onde estavam as pessoas que eu queria entrevistar. A parte final do sonho tinha ligação com o que meu marido, Toby, e eu conversamos no avião: a busca da China, ao longo de um século, por um novo centro moral e político, depois da revolução de 1911. Toda vez que retorno ao país, procuro os lugares que foram importantes para mim no passado, mas a maior parte desapareceu - tudo está diferente. Às vezes tenho dificuldade para distinguir meu passado dos meus sonhos. Se o passado já me parece assim, indistinto, na meia-idade, como fazem as pessoas mais velhas? Será que suas memórias param de se materializar? Se sim, isso é doloroso para elas? Será que as histórias que ouvem de outras pessoas de sua geração começam a lhes soar irreais? Como conseguem convencer os filhos, pouco compreensivos e descrentes delas, de que histórias e eventos que não deixaram rastros materiais de fato aconteceram? Ao voltar, pela primeira vez em dez anos, a Guilin, no Sul - com sua famosa exuberância verde e suas belas e estranhas formações graníticas -, fiquei com o coração pesado. À medida que continuávamos a viagem e se aproximava o momento de encontrar meus entrevistados, eu me sentia despreparada, hesitante, assombrada pela velocidade com que a China estava mudando. Todos os lugares onde estivera uma década antes pareciam não estar mais lá. Eu não tinha nada para guiar minhas lembranças. Quando me mudei para a Inglaterra, em 1997, tinha orgulho da velocidade com que a China, e suas cidades em particular, estava mudando. Mas, depois de ver o cuidado com que a Europa tentava preservar vestígios do passado, comecei a ficar incomodada com a afobação grosseira de meu país para destruir o velho e promover o novo. Via agora que esse nosso império milenar estava sendo reconstruído por modernizadores irresponsáveis cuja referência cultural era o McDonald's. Nas duas décadas desde que Mao morrera, a modernização havia feito estragos pesados em todas as cidades chinesas, e os arrogantes planejadores locais ainda insistiam alegremente na destruição sem escrúpulos do passado antigo. Xingyi, capital das regiões autônomas das minorias buyi e miao, na província de Guizhou (sul da China), é um exemplo típico de cidade transformada pela modernização pós-Mao. "Situada na interseção de três províncias", informava o livro guia do governo local, "Xingyi tem sido, historicamente, um posto-chave para comunicações, coletas e distribuição na região. Cercada por montanhas ondulantes e rios que se cruzam, esse território é conhecido por suas formações graníticas. Com uma linda área rural e clima temperado, Xingyi - berço de muitas figuras ilustres - tem muito potencial a ser explorado como destino turístico." Chegar a Xingyi, no caminho entre Guilin e Chengdu, é como entrar no túnel do tempo. Tudo na cidade me lembrava Beijing e Shanghai nos anos 80: as ruas, as roupas, as lojas e, especialmente, a hospedaria do governo municipal em que paramos, com sua decoração antiquada, equipamentos de quarto avariados e vazamentos nos banheiros, recepcionistas desinformados, camareiras que jamais trocavam as toalhas, garçons e garçonetes que ignoravam os clientes no restaurante principal para atender os barulhentos quartos ocupados por funcionários locais, o ruído constante de karaoke e quadros de aviso em chinês transcrito para o alfabeto latino fingindo ser inglês. O que realmente me fez voltar vinte anos no tempo foi o estacionamento lotado de carros caros e os funcionários cheios de si que desembarcavam deles. A única forma de assegurar o atendimento numa hospedaria como essa é impressionar os empregados, logo ao entrar, mostrando como se é importante. Do contrário, sua roupa que foi para a lavanderia desaparece, seu vale de café da manhã é perdido e seus pertences acabam extraviados e jamais reencontrados. Às vezes, seu quarto - pelo qual você já pagou - é até mesmo requisitado para uma reunião oficial, enquanto seu jantar não chega porque os cozinheiros foram embora depois de preparar mais um banquete para os figurões do governo. Durante as duas noites e os três dias que permanecemos na cidade, Toby e eu experimentamos tudo a que tínhamos direito em Xingyi, incluindo como bônus baratas, carrapatos e um violento encontro à meia-noite com um grupo barulhento de bêbados cantores de karaoke. Mas, como disse Nietzsche certa vez, o que não nos mata nos torna mais fortes. Minha intenção original havia sido começar as entrevistas em Chengdu, na província de Sichuan, oeste da China, mas, nessa parada para o casamento do amigo que traduziu meu livro de estreia, As boas mulheres da China, acabei encontrando minha primeira fonte de histórias: a Curandeira de Xingyi. Cedo, numa manhã, Toby e eu - como sempre fazemos na China - estávamos fanando pelas ruas, observando as pessoas. Um par de horas antes das nove da manhã, as ruas de Xingyi já estão fervilhando com a atividade do comércio: tendas e tabuleiros armados por agricultores e pescadores, em que são vendidas as várias iguarias exóticas locais, entre elas os cogumelos da montanha pelos quais a região é famosa. Entramos numa ruazinha escura e estreita, paralela à rua principal do mercado, e voltamos na história: passamos pelo tipo de casas e fachadas de lojas que me remete aos filmes retratando a "velha" (pré-1949) sociedade. O que me impressionou imediatamente foi que a maioria dos lojistas e ambulantes era de mulheres: além daquelas que consertavam sapatos, fabricavam os pauzinhos usados como talheres pelos chineses, vendiam apetrechos de costura, confeccionavam roupas mortuárias e papel-moeda para queimar em funerais, um grande número delas comercializava gêneros alimentícios da região e ervas medicinais. Minha atenção foi capturada, a distância, por uma mulher cujo rosto parecia iluminado por uma inteligência determinada e peculiar. Ela estava sentada em frente a uma pequena loja conversando com um freguês. Vários tipos de ervas medicinais secas estavam expostos em torno: alguns em sacos pendurados, outros em estantes, amarrados em maços; outros ainda empilhados a seus pés. Apontei-a para Toby. "É a única pessoa nesta rua que não aparenta estar desanimada, desesperançada da vida. Por que será que ela parece tão diferente de todos os outros neste lugar?" "Vá falar com ela, eu espero. Não temos pressa." Toby sabe que adoro essas oportunidades de conversar informalmente com as mulheres chinesas - encontros espontâneos podem gerar informação inesperada. Esperei até que a velha senhora tivesse terminado com o freguês, aproximei-me e iniciei uma conversa. "Olá. Essas ervas todas crescem por aqui?" "Crescem", respondeu Yao Popo (curandeira, em chinês) com sotaque de Hunan, sem ao menos tirar os olhos do maço de ervas que amarrava. "E essas? De onde vêm?", voltei a perguntar, tentando fazê-la falar. Finalmente ela olhou para mim. "Não sou eu quem colho. Os agricultores daqui abastecem meu estoque." Subi o primeiro dos dois degraus baixos à entrada da loja. "A senhora deve ser conhecida por esses lados, então." "Sou só uma velha mulher comum", ela sorriu. "Apenas estou por aqui há muito tempo." "Quando foi que a senhora começou a vender ervas medicinais?" "Ah, faz muitos anos. Você procura alguma coisa em especial?" Yao Popo percebeu Toby, um pouco afastado da loja. Um estrangeiro era certamente uma visão rara naquela província. "Quem é aquele?" "Meu marido", expliquei prontamente. A Curandeira cerrou os olhos para ver melhor. "Ele é alto. E bonito. Minha filha também casou com um estrangeiro, um taiwanês." Muitas pessoas na China rural veem qualquer pessoa de fora do continente como estrangeira - mesmo que, etnicamente falando, seja chinesa. "Ele a trata bem, mas de aparência não é lá essas coisas." Foi minha vez de sorrir. "Mas a aparência de um homem é assim tão importante?" "Claro!", ela franziu o cenho. "Senão as crianças nascem feias." Sorri, mas agora sabia como fazê-la falar. "Quantos filhos a senhora tem?" Ela ficou satisfeita em responder. "Dois filhos e cinco filhas, uma dúzia de netos e dois bisnetos!" Mais uma vez, fui lembrada sobre a importância que as mulheres chinesas dão a ter filhos. "Nossa. Que sorte." "E você?", Yao Popo perguntou, preocupada comigo, de repente. Fiquei sensibilizada por sua preocupação. "Só um. Ele tem dezoito anos." "Só um?" Yao Popo não conseguiu esconder seu pesar. "Pelo menos você teve um menino. Antigamente, quando eu era jovem, nos diziam para ter muitos. Se não, todo mundo dizia que você era uma mulher ruim." Nos anos 50, ignorando os alertas de demógrafos e economistas, Mao Tse-tung incentivou as mulheres a terem quantos filhos pudessem, dizendo-lhes que isso era um ato heroico. Ele pensava que uma população enorme transformaria a China numa superpotência global. Em seguida, fiz uma pergunta para a qual já sabia a resposta. "Você é mulher - acha realmente que filhos são melhores que filhas?" Ela me encarou sem compreender. "É porque somos mulheres que precisamos ter filhos, para nos proteger. Antes de 1949, as mulheres que não conseguiam ter filhos sofriam. Meninas eram sempre abandonadas antes dos meninos. Eu mesma quase morri de fome. Não estaria aqui hoje, se meu pai não tivesse se apiedado de mim." Subi o segundo degrau. "Gostaria de conhecer sua história de vida." Ela fez um movimento com a mão, desdenhando. "Conhecer o quê? Ninguém presta atenção ao que nós, velhos, temos a dizer, nem mesmo nossos filhos. De que adiantaria eu contar a você? Não desperdice seu tempo nem o do seu marido. Vá, ele está esperando." Olhando em volta para conferir se não havia outros clientes, sentei num banquinho perto dela. "Não vou antes que me conte sobre a senhora!" Ela me olhou, surpresa. "Fala sério?", disse, com ar mais grave. Acedi. "Quero poder contar ao meu filho sobre pessoas como a senhora. Ele se mudou para a Inglaterra seis anos atrás, quando tinha apenas doze anos. Não faz ideia do que é a vida das pessoas comuns na China. Sempre que volto aqui, pergunto às pessoas que encontro o que sabem sobre as vidas de suas mães. A maioria não conhece as histórias das mães ou avós. Quero escrevê-las, para que as próximas gerações as leiam. Não quero que tudo o que a geração da senhora sofreu seja esquecido. Se nossas crianças não souberem o quanto seus avós sofreram, não entenderão como têm sorte. Diga-me por que a senhora parece tão diferente de todo mundo nesta rua, por que parece tão tranquila e feliz." Ela balançou a cabeça. "Sofri muito mais que qualquer um por aqui." Contou-me que nascera havia 79 anos em Hunan. Depois que a mãe morreu, quando ela tinha quatro anos, e porque a família era muito pobre, seu pai a entregou, e mais cinco de seus seis irmãos e irmãs, a outras pessoas. Ela acabou com um caixeiro-viajante, vendedor de ervas medicinais, de quem foi mais tarde aprendiz e que tinha também um filho adotivo, cinco anos mais velho que ela, o qual sabia tocar huqin, um tipo de violino chinês com duas cordas. Como era esperta e aprendia rápido, a família adotiva se afeiçoou a ela. Naquele tempo, os médicos usavam música e acrobacias para atrair clientes às suas tendas de beira de estrada, e ela rapidamente dominou vários truques acrobáticos com esse fim - como paradas de mão e de cabeça e rodar jarros com as solas dos pés. Ao mesmo tempo, o curandeiro começou a passar aos filhos alguns de seus conhecimentos sobre a prescrição de ervas. No início dos anos 40, com o país devastado pela guerra, ele se mudou com a família de Hunan para Yunnan, para escapar do conflito. Eram pobres demais para viajar de trem, por isso seguiram a pé e pegaram as caronas que conseguiram, em carroças, veículos de manutenção das ferrovias e assim por diante. Com a preocupação de que, por ser solteira, a filha pudesse ser abusada por soldados que encontrassem pelo caminho, seu pai prontamente a casou com o outro filho. Depois de perambular pelas montanhas de Guizhou por alguns anos a partir de 1946, em 1950 eles aportaram em Xingyi, que àquela altura havia acabado de ser liberada pelos comunistas. O governo municipal os convenceu a se estabelecer ali e os ajudou a abrir uma clínica de medicina chinesa para a população local, que quase não tinha acesso a tratamento médico. Com vinte anos de idade recém-completados, a Curandeira cuidava da família, que crescia, e vendia suas prescrições em casa, enquanto seu pai fazia visitas a pacientes e o marido cuidava da clínica. "A vida era dura naquela época", lembrou Yao Popo, "com sete crianças pequenas. A cada dia me preocupava com o que iríamos comer no dia seguinte. Por sorte, todos ouviam o que o presidente Mao dizia, que era bom ter muitos filhos, e o governo e os vizinhos davam uma ajuda quando as coisas ficavam difíceis. Não é como agora, que ninguém confia em ninguém, ninguém se ajuda. Antigamente, os funcionários nunca se aproveitavam da gente. Nem nos obrigavam a ter algum certificado de medicina." Ao mesmo tempo, ela ganhava reputação por suas habilidades médicas; algumas pessoas até consideravam suas prescrições melhores que as de seu marido. "Você provavelmente não acredita em mim, mas consigo dizer o que há de errado com uma pessoa pelos olhos ou pela cor do rosto - até mesmo pelo cheiro dos peidos ou dos arrotos. Sei curar melhor dores de cabeça, de estômago ou nas juntas." Tal ideia era extraordinária: que ela conseguisse enxergar através dos pacientes, como uma máquina de raio X. Mas a expressão firme em seu rosto me fez acreditar nela. Queria muito saber por que ela achava que a vida antes era tão diferente da dos dias de hoje na China. Em vez disso, perguntei: "O que aconteceu depois?". "Quando? Nos anos 60 e 70? Ganhei muito dinheiro!", os olhos de Yao Popo brilharam maliciosamente. "A senhora ganhou dinheiro durante a Revolução Cultural?", pensei ter entendido mal. Durante muito tempo eu não ouvira nada além de ódio, pesar e perda nas lembranças daquele período. Tinha encontrado tantas vítimas que às vezes me perguntava onde os perpetradores daquela desgraça - milhões de guardas vermelhos violentos, assassinos mesmo - teriam ido parar. Percebendo que eu não compreendia, ela sorriu. "Estou dizendo a verdade: realmente ganhei! Enquanto todos discutiam e brigavam e faziam a Revolução, os hospitais e faculdades de medicina estavam todos fechados. Mas revolução não cura doença; só faz piorar. Então mais e mais pessoas vinham a mim. Também fui revolucionária; ajudei, de graça, muitas pessoas que não podiam pagar por um tratamento. Ganhei dinheiro com os rebeldes e os guardas vermelhos. Se eles tivessem simplesmenteconfiscado meus remédios, senão tivessem pago por eles, não seriam diferentes dos capitalistas. Mas na verdade eu não queria muito do dinheiro deles. Tinha medo de que, se ficassem pobres, eles fariam ainda mais revolução. Sim, ganhei muito dinheiro com a Revolução Cultural, mas também vi coisas terríveis: pessoas forçadas a confessar coisas que não tinham feito, punidas por crimes que não tinham cometido; todo mundo ficava aterrorizado o tempo todo. O dinheiro não me fazia feliz." Aqueles olhos brilhantes escureceram. Mudei de assunto. "Agora que seus filhos estão adultos, eles a ajudam financeiramente?" Ela jogou a cabeça para trás. "Não quero o dinheiro deles, sou mais rica. Na semana passada, quando meu bisneto casou, dei a ele 5 mil iuanes!" Pensar na família animou-a novamente. "Quantos dos seus filhos e netos estudaram a medicina chinesa com a senhora?", podia vê-la palestrando numa sala de aula lotada de seus descendentes. "Nenhum!" "Por quê?" Não consegui perceber ressentimento na voz de Yao Popo. "Eles dizem que não é um trabalho de verdade, com o qual se possa ganhar dinheiro ou respeito." Imaginei que o desprezo era por seu passado acrobático. Tradicionalmente, considera-se que atletas e dançarinos são fortes fisicamente por terem a cabeça fraca. Embora os chineses sempre tenham apreciado o entretenimento, não respeitam quem vive disso. Fiquei surpresa por descobrir que esse preconceito sobrevivia no século XXI. "Mas a senhora ganha mais dinheiro que eles. E viveu uma vida excepcional. Todos a conhecem e respeitam por aqui." Ela se inclinou para cochichar em meu ouvido: "Eles não sabem nada do meu passado, do dinheiro que ganhei; nunca contei. Não consideram que eu tenha algum conhecimento; acham que sou uma mulher com uma estranha ocupação. Sempre que lhes dou dinheiro, pensam que é do meu marido ou do meu pai. Mas ganhei muito mais dinheiro que os dois ao longo dos anos. Os homens só sabem tratar doenças velhas, não conseguem se adaptar às novas. Também não são bons negociantes. São orgulhosos demais para trabalhar numa tenda". "O que quer dizer com velhas e novas doenças?" "Velhas doenças são aquelas que todo mundo conhece há centenas, milhares de anos - os sintomas dizem imediatamente do que se trata. Em toda família costumava haver um avô ou uma avó que tinha algum conhecimento médico sobre velhas doenças: por exemplo, se alguém tinha dor de estômago, era melhor não tomar remédio nenhum ou comer. Devia apenas beber água morna, descansar a barriga e logo estaria melhor. Os problemas estomacais estão por trás de muitas coisas: dores de cabeça e nas costas, distúrbios do sono. Conserte o estômago e todo o resto se ajeita. Hoje em dia, porém, encontro mais e mais novas doenças: olhos e costas doloridos por ficar em frente ao computador ou sentado numa escrivaninha, espinhas por comer muito no McDonald's, reveses no estômago por viajar demais, dor de ouvido por causa de muito karaoke, exaustão por dirigir em excesso..." Olhei para o relógio e, vendo que Toby me esperava há quase uma hora, decidi interromper a lista das queixas de Yao Popo sobre a vida moderna. "Depois de trabalhar duro por tantos anos, a senhora pensa em se aposentar?" Minha bunda estava formigando de ficar apoiada naquele banquinho de madeira. Não conseguia imaginar como ela aguentara se sentar ali por sete ou oito horas todos os dias durante a maior parte de sua vida ativa. "Por que faria isso? Meu pai adotivo já passou faz tempo dos noventa e continua tratando os pacientes; seus olhos e ouvidos ainda estão bons - ele provavelmente tem mais saúde que eu. Meu marido e eu somos muito ocupados - temos quatrocentas ervas diferentes em estoque. Todo dia vendemos pelo menos trinta ou quarenta variedades distintas, às vezes mais de cem. São dezenas de milhares todo ano... Ele está tirando uma foto?" Ao perceber que Toby apontava sua câmera para nós, Yao Popo de repente endireitou o corpo e se sentou encarando-o de frente, as costas rigidamente eretas sobre o banquinho, as mãos unidas perfeitamente aprumadas sobre os joelhos. "Ele já terminou?", cochichou para mim enquanto posava. "Terminou?" Quando disse a ela que sim, Toby tinha terminado, ela relaxou e voltou à postura normal. Ao passo que ela claramente mostrava boa saúde, os ombros exibiam a inevitável curvatura da idade. "Diga ao seu marido para me fotografar de frente. Quebrei o nariz ao escorregar fazendo acrobacias quando era jovem. Meus filhos não puderam ver como já fui bonita." Sua vaidade me surpreendeu. Os chineses apreciam a modéstia acima de todas as outras virtudes. Se trabalhamos com outras pessoas, tentamos sempre lhes dar crédito pelas conquistas e sucessos; se fazemos algo sozinhos, diremos que somos ruins naquilo. Uma mãe dirá no casamento da própria filha o quanto ela é mais feia, ou menos inteligente, que as filhas dos outros. O ressentimento de Yao Popo por sua beleza perdida foi a primeira vez, em vinte anos, que encontrei tamanha franqueza. Disse a ela que tinha de ir pois meu filho e dois outros estudantes estavam esperando por mim, mas que gostaria de trazer PanPan para conhecê-la depois do almoço. Ela obviamente não acreditou que me veria de novo. "Volte, se tiver tempo", ela deu de ombros. "Você parece uma pessoa muito ocupada." Pouco depois do meio-dia, Panpan, uma dupla de garotas estudantes e eu reaparecemos em frente à loja. "Então você voltou mesmo", ela sorriu para nós. "E com esses jovens bonitos! Sentem-se, tenho banquinhos para todos vocês." Ela parecia ter acabado de almoçar: no cesto de bambu a seu lado, junto com um maço de cebolinhas e algumas pimentas selvagens da montanha, havia uma tigela vazia e um par de pauzinhos usados como talheres. Os hunaneses são capazes de comer alimentos terrivelmente apimentados. Talvez ela estivesse aproveitando um intervalo no trabalho para preparar o jantar. Uma velha garrafa térmica estava pousada ao lado do cesto, junto de uma sacola de compras cheia de lixo. Disse a ela que Panpan gostaria de lhe dar um pôster de Londres. Uma das estudantes, Y, procurava algo para a sua alergia de pele, enquanto a outra, K, queria tirar algumas fotos profssionais da Curandeira. Eu esperava que ela se recusasse a ser fotografada, mas Yao Popo pareceu encantada com a ideia e aceitou imediatamente, até mesmo nos agradecendo. A Curandeira ficou entusiasmada com o pôster da Tower Bridge. "Que lindo prédio!", exclamou para si mesma. "A ponte se abre, você disse? Nunca vi algo assim! Em qual país fca Londres? E por que se chama Londres? O que significa?" Como não tinha respostas para as suas perguntas, posicionei Y à sua frente. "A senhora pode examiná-la?" Y levantou a camiseta. A aparência de sua pele, coberta em grandes áreas por caroços e calombos supurados, era terrível. Sem piscar, Yao Popo a chamou para dentro. "Três doses do meu remédio e você estará melhor." Y e eu, ressabiadas, a seguimos loja adentro, onde ela alcançou numa estante uma caixa de madeira cheia de nozes, amendoins e tâmaras vermelhas, das quais se alimentavam alguns insetos de asa marrom. Yao Popo então pediu a Y que escolhesse 21 dos mais robustos e agitados, os quais a Curandeira diligentemente apanhou e distribuiu por três cápsulas medicinais azuis e brancas. Ela receitou à estudante que ingerisse as três cápsulas num único dia - verificando se os insetos ainda estavam vivos antes de engoli-las -, e a primeira delas seria tomada ali mesmo. "Não tenha medo", ela disse a Y enquanto lhe passava essa primeira cápsula, "eu os alimentei somente com nozes e frutas. São muito mais limpos por dentro que nós." Y olhou primeiro para os insetos se contorcendo dentro da cápsula e em seguida, interrogativa, para mim. Eu não sabia o que dizer. Depois de uma breve hesitação, pediu-me que enchesse um copo d'água para ela. Respirou fundo, ainda bastante nervosa, e engoliu a cápsula. Fiquei impressionada com sua desenvoltura - uma qualidade rara naquela geração de crianças mimadas e filhos únicos. Ela obedeceu à risca as instruções da Curandeira, tomando as outras doses nas doze horas seguintes e tendo checado nas duas vezes se os insetos ainda estavam vivos. Logo a coceira parou; dois dias mais tarde, as feridas em sua pele estavam miraculosamente curadas. Pouco antes de nos despedirmos, Yao Popo nos contou sobre os momentos mais felizes e mais infelizes de sua vida. Sua primeira grande fonte de infelicidade era ter crescido sem pais, sem um lar próprio, com apenas um chão úmido e enlameado sobre o qual dormir. A segunda dentre as coisas mais difíceis havia sido criar sete filhos num pequeno quarto de apenas doze metros quadrados. Enquanto eram pequenos, ela não teve um momento de paz, de dia ou de noite. A terceira coisa era ter quebrado o nariz. Um bom nariz, disse ela, era o traço característico mais importante para uma mulher. O fato isolado que lhe trouxera sua maior alegria foi que os filhos tinham sobrevivido à fome dos anos 50 e 60, quando tantos milhões morreram, e que seus netos foram à escola e tinham agora seus próprios filhos. O marido jamais ter batido nela era a segunda bênção pela qual era grata. Sua terceira fonte de satisfação ao longo dos anos tinha sido sentar-se em frente à sua loja, dia após dia, vendo o mundo mudar ao redor. "Nos trinta ou quarenta anos em que estive sentada aqui, o centro da cidade mudou a cada troca de governo", disse ela, mostrando os prédios que despontavam por sobre a via acanhada. "Aquelas casas à esquerda datam dos anos 50. Quase nada foi construído durante a Revolução Cultural, mas aquelas do lado oposto são dos anos 80, enquanto os prédios da direita foram erguidos nos dois últimos anos. Agora escuto dizer que o novo prefeito quer botá-los abaixo e começar de novo! Assim que conseguem ter algum dinheiro em caixa, os funcionários sempre querem mostrar serviço, mudando tudo tão rápido que ninguém percebe. Só que nunca pensaram em melhorar esta nossa velha rua acidentada, mesmo com centenas de pessoas vivendo aqui. Vou estar aposentada quando finalmente fizerem alguma coisa", ela riu. Demos adeus a Yao Popo, mas todo belo nariz que vejo desde então me faz pensar nela - uma velha mulher cujo anseio por beleza não foi derrotado pela miséria.