Trecho do livro ESTILO TARDIO

1. O oportuno e o tardio À primeira vista, a relação entre corpo e estilo parece um assunto tão irrelevante e trivial em comparação com a gravidade da vida e da morte, da medicina e da saúde, que mais parece o caso de deixá-lo de lado. Contudo, quero propor a seguinte tese: todos nós, por força do mero fato de sermos criaturas conscientes, estamos constantemente ocupados em pensar a respeito e construir nossas vidas; essa autoconstituição é um dos fundamentos da história - que, para Ibn-Khaldun e Vico, os grandes fundadores da ciência histórica, é essencialmente fruto do trabalho humano. A distinção decisiva se dá, portanto, entre o reino da natureza, de um lado, e a história humana e secular, de outro. O corpo - a saúde, o cuidado, a composição, o funcionamento, a maturidade, a doença e a morte do corpo - pertence à ordem da natureza; porém, a maneira como entendemos essa natureza - a maneira como a vemos e vivemos em nossa consciência, como damos sentido à vida individual e coletiva, subjetiva e social, como a dividimos em períodos - pertence, num sentido amplo, à ordem da história; refletindo a seu respeito, podemos rememorá-la, analisá-la e ponderá-la e, nesse processo, transformar seus contornos. Há toda uma gama de vínculos entre os dois reinos, entre a história e a natureza, mas por ora quero mantê-los apartados e me voltar para um deles, a história. Sendo eu mesmo um homem profundamente secular, estudo há anos esse processo de autoconstituição por meio de três tipos de problemas, três grandes episódios humanos, comuns a todas as culturas e tradições - e neste livro quero discutir em especial o terceiro. Mas, a bem da clareza, farei uma rápida síntese dos dois primeiros. O primeiro é justamente a noção de princípio, de nascimento e origem, que, no contexto da história, trata de pensar o início de determinado processo, como este se estabelece e institui, como vive e se projeta. Há trinta anos escrevi um livro, intitulado Beginnings: Intention and method, sobre a necessidade da mente humana de localizar retrospectivamente um ponto de origem para si mesma, à maneira de qualquer outra coisa que principia, no sentido mais elementar, com o nascimento. Em campos como a história e o estudo da cultura, a memória e a retrospecção nos levam de volta à origem de processos importantes, como o início da industrialização, da medicina científica, do romantismo e assim por diante. Em termos individuais, a cronologia da descoberta é tão importante para um cientista quanto para um Immanuel Kant que lê Hume pela primeira vez e de repente desperta de seu sono dogmático. Na literatura ocidental, a forma do romance coincide com a emergência da burguesia no final do século XVII, e é por isso que, em seu primeiro século, o romance trata invariavelmente de nascimentos, supostas orfandades e raízes redescobertas, bem como da invenção de um novo mundo, uma nova carreira, uma nova sociedade. Robinson Crusoe, Tom Jones, Tristram Shandy. Localizar retrospectivamente um princípio significa ancorar um projeto (um experimento, uma ação governamental ou um novo romance de Dickens, como A casa soturna) num momento que está sempre sujeito a revisão. Princípios dessa espécie envolvem necessariamente uma intenção que, na sequência, ou bem se realiza de todo ou em parte, ou bem fracassa. O que nos leva à segunda grande ordem de problemas, relativa à continuidade depois do nascimento, o desenvolvimento de um princípio, no tempo que vai do nascimento à juventude, à maturação reprodutiva e à maturidade. Toda cultura oferece e faz circular imagens daquilo que, numa expressão feliz, já se chamou dialética da encarnação ou, nos termos de François Jacob, "la logique du vivant". Para dar mais exemplos extraídos da história do romance (a forma estética ocidental que oferece a imagem mais ampla e complexa de nós mesmos), há o Bildungsroman, ou romance de formação, o romance de idealismo e decepção (A educação sentimental, As ilusões perdidas), o romance da imaturidade e da vida em comum (como Middlemarch, de George Eliot, que, como mostrou a crítica inglesa Gillian Beer, foi influenciado a fundo pelo que ela chama de "trama darwiniana" na invenção dos padrões de geração que estruturam esse grande romance inglês do século XIX). Outras formas estéticas, na música e na pintura, seguem padrões semelhantes. Mas também há exceções, exemplos de desvio do suposto padrão geral da vida humana. Basta pensar em As viagens de Gulliver, Crime e castigo ou O processo, obras que parecem romper com o elo espantosamente longevo que vincula a noção das idades do homem (como em Shakespeare) a reflexos e reflexões estéticas. Pois tanto na arte como em nossas ideias correntes sobre o curso da vida humana, parece haver uma concordância manifesta sobre o que é oportuno para cada idade: o que parece conveniente ao começo da vida não é conveniente a estágios posteriores e vice-versa. Todos lembramos, por exemplo, a severa observação bíblica de que há um momento e um tempo para todo propósito sob o céu, um tempo de nascer, um tempo de morrer e assim por diante: "Observo que não há felicidade para o homem a não ser alegrar-se com as suas obras: essa é a sua porção; pois quem lhe mostrará o que vai acontecer depois dele? [...] Assim, todos têm um mesmo destino, tanto o justo como o ímpio, o bom como o mau, o puro como o impuro". Em outras palavras, julgamos que a saúde essencial de uma vida humana está ligada à idade, a uma correspondência conveniente ou oportuna entre uma e outra. A comédia, não por acaso, procura seus materiais no comportamento inoportuno, no velho que se apaixona pela moça, como acontece em Molière e Chaucer, no filósofo que se comporta como criança, no homem sadio que simula alguma doença. Mas é também a própria comédia, como forma, que propicia a restauração do que é oportuno por meio do kommos - o casamento dos jovens amantes - que costuma encerrar as peças. Chego finalmente ao terceiro grande campo de problemas, que, por óbvias razões pessoais, constitui meu assunto neste livro: o período final ou tardio da vida, a decadência do corpo, a falência da saúde ou qualquer outro fator capaz de, mesmo numa pessoa jovem, levar ao fim da vida. Vou me concentrar em grandes artistas que, no fim de suas vidas, criaram um novo idioma para sua obra e seu pensamento - algo que chamarei de estilo tardio. Ficamos mais sábios com o passar do tempo? Haverá uma sensibilidade e uma forma peculiares à última fase da carreira de artistas que chegam a uma idade avançada? Podemos encontrar as noções correntes de idade e sabedoria encarnadas em obras finais que refletem certa maturidade, um novo espírito de conciliação e serenidade, muitas vezes expresso por uma prodigiosa transfiguração da realidade comum. Em peças como A tempestade ou O conto de inverno, Shakespeare retorna às fórmulas da parábola e da história romanesca; de modo semelhante, em Édipo em Colono, de Sófocles, o herói envelhecido é retratado como alguém que finalmente atingiu uma santidade e uma determinação notáveis. E há o caso bem conhecido de Verdi, que em seus últimos anos de vida produziu Otelo e Falstaff, obras que exibem não exatamente um espírito de sábia resignação, mas antes uma energia renovada, quase juvenil, atestando a apoteose do poder criativo do artista. Qualquer um de nós poderia citar casos de obras tardias que coroam uma vida de trabalho estético. Rembrandt e Matisse, Bach e Wagner. Mas o que dizer de obras tardias que não são feitas de harmonia e resolução, mas de intransigência, dificuldade e contradição em aberto? E se a idade e a doença não produzirem a serenidade de quem diz "estarmos preparados é o que importa"? É o caso, por exemplo, de Ibsen, cujas últimas obras, em especial Quando nós, os mortos, despertamos, fazem em pedaços sua carreira e seu ofício para reabrir aquelas questões relativas ao sentido, ao sucesso e ao progresso que a fase tardia de um artista supostamente deveria deixar para trás. Longe de uma resolução, portanto, as últimas peças de Ibsen fazem pensar num artista iracundo e perturbado, para quem o meio dramático é um ensejo para remexer em angústias, questionar a sério a possibilidade de conclusões definitivas e deixar a plateia ainda mais inquieta e perplexa do que antes. É esse segundo tipo de criação tardia que me parece profundamente interessante. Gostaria de explorar a experiência de um estilo tardio que tem a ver com uma tensão despida de harmonia ou serenidade, com uma produtividade conscientemente improdutiva, do contra... Adorno usou a expressão "estilo tardio" de modo mais memorável num fragmento de ensaio intitulado "O estilo tardio de Beethoven", datado de 1937 e incluído em 1964 num volume de ensaios musicais, Moments musicaux, e mais tarde num volume póstumo de Escritos musicais (edição original 1993). Para Adorno, mais do que para qualquer outro autor que tenha discutido as obras finais de Beethoven, as peças do chamado "terceiro período" do compositor (as cinco últimas sonatas para piano, a Nona Sinfonia, a Missa solemnis, os seis últimos quartetos de cordas, as dezessete bagatelas para piano) constituem um episódio singular na história da cultura moderna: um momento em que um artista em pleno controle de seu meio estético abandona a comunicação com a ordem social estabelecida de que ele é parte para chegar a uma relação contraditória e alienada com ela. As obras tardias de Beethoven constituem uma forma de exílio. Um dos ensaios mais extraordinários de Adorno, incluído no mesmo volume original, trata da Missa solemnis, que lhe parece uma "obra-prima alienada" (verfremdetes Hauptwerk) em virtude de suas dificuldades, seus arcaísmos e sua estranha abordagem subjetiva da forma da missa (EM, pp. 569-83). O que Adorno tinha a dizer sobre o Beethoven tardio ao longo de seus volumosos escritos (Adorno faleceu em 1969) constitui claramente uma interpretação filosófica que fazia as vezes de princípio para todas as suas análises da música subsequente. A figura do compositor envelhecido, surdo e isolado lhe parecia um símbolo cultural tão poderoso que acabou por ressurgir entre as contribuições de Adorno ao Doutor Fausto, de Thomas Mann, romance em que o jovem Adrian Leverkühn se deixa impressionar por uma palestra de Wendell Kretschmar sobre o estilo tardio de Beethoven - e não é difícil notar, na passagem seguinte, a que ponto a coisa toda pode ser insalubre: A arte de Beethoven fora além de si mesma, elevara-se além das regiões habitáveis da tradição, diante do olhar atônito dos seres humanos, para chegar a uma esfera de todo subjetiva, a um ego dolorosamente isolado no absoluto, isolado também dos sentidos pela perdada audição; príncipe solitário de um reino de espíritos, do qual apenas um sopro gélido vinha aterrorizar os contemporâneos mais esforçados, estupefatos diante dessas mensagens de que apenas às vezes, excepcionalmente, chegavam a entender alguma coisa. Isso é Adorno quase puro. Há o heroísmo e há a intransigência. Nada da essência do Beethoven tardio é redutível à noção de arte como documento - isto é, a uma leitura da música que sublinhe uma "realidade que transparece", quer se trate de acontecimentos históricos ou da consciência da morte iminente. Pois, se entendermos essas obras apenas como expressões da personalidade de Beethoven, "as obras tardias serão relegadas à periferia da arte, à condição de documento. De fato, estudos do Beethoven tardio quase nunca deixam de se referir à biografia e ao destino do compositor. Como se, diante da dignidade da morte humana, a teoria da arte devesse renunciar a seus direitos e abdicar em favor da realidade" (EM, p. 564). O estilo tardio é o que se dá quando a arte não abdica de seus direitos em benefício da realidade. É claro que a morte iminente está próxima e não tem como ser negada. Mas a ênfase de Adorno recai sobre a lei formal do modo compositivo do Beethoven tardio, ou seja, sobre as prerrogativas da estética. Essa lei formal vem a ser um amálgama singular de subjetividade e convenção, que se evidencia em procedimentos como "trilos decorativos, cadências e fioriture" (EM, p. 565). Tentando encontrar uma fórmula para essa subjetividade, Adorno escreve: Essa lei se revela precisamente na ideia de morte. [...] A morte só se impõe aos seres criados, não às obras de arte, e por isso só aparece na arte por refração, isto é, como alegoria. [...] Nas obras tardias, o poder da subjetividade consiste no gesto irascível com o qual ela se despede das próprias obras. Ela rompe os limites não para se exprimir, mas,despida de expressão, para despir a aparência de arte. Não deixa atrás de si mais que fragmentos, e comunica-se, à maneira de um código, apenas através dos espaços em branco de que se livrou. Tocada pela morte, a mão do mestre libera as massas de material a que costumava dar forma; os rasgos e fissuras, testemunhos da finita impotência do eu confrontado com o ser, são suas últimas obras [der endlichen Ohnmacht des Ichs vorm Seienden, sind ihr letztes Werk]. (EM, p. 566) O que sem dúvida fascina Adorno na obra tardia de Beethoven é o caráter episódico, o suposto desdém pela própria continuidade. Se compararmos uma obra do período intermediário, como a sinfonia Eroica, à sonata opus 110, teremos, de um lado, a lógica determinante e integrativa da primeira e, de outro, o caráter algo oscilante, muitas vezes descuidado e repetitivo da segunda. O tema de abertura da 31ª sonata é exposto de maneira desajeitada e, quando por fim avança, depois do trilo, recebe um acompanhamento (uma figura tolamente repetitiva, digna de um estudante) que, conforme Adorno afirma com justiça, é "rasgadamente primitivo". O mesmo vale para todas as obras tardias, em que uma escrita densamente polifônica, da espécie mais difícil e abstrusa, se alterna com o que Adorno chama "convenções", procedimentos retóricos percebidos como arbitrários, como trilos ou appogiature, que não parecem se integrar funcionalmente à estrutura. Adorno afirma: "A obra tardia de Beethoven é ainda um processo, mas não à maneira de um desenvolvimento, antes como um vaivém entre extremos que já não permitem um terreno intermediário seguro ou harmonia espontânea". Daí que, como diz Kretschmar no Doutor Fausto de Mann, as obras tardias de Beethoven muitas vezes pareçam inacabadas - questão sobre a qual o enérgico professor de Adrian Leverkühn discorre extensa e engenhosamente a propósito dos dois movimentos do opus 111. A tese de Adorno está baseada em duas considerações: primeiro, que a obra do jovem Beethoven é um todo vigoroso e orgânico, ao passo que no período tardio se torna mais extravagante e excêntrica; segundo, que o velho Beethoven, diante da morte, percebe que sua obra comprova (nas palavras de Rose Subotnik) que "nenhuma síntese é concebível", apenas "o resquício de uma síntese, o vestígio de um indivíduo humano dolorosamente sabedor da totalidade, e portanto da sobrevivência, que lhe escapou para sempre". Assim, a despeito de sua irascibilidade, as obras tardias de Beethoven são trágicas, como Adorno aponta de modo exato e pungente bem ao final do ensaio sobre o estilo tardio de Beethoven. Assinalando que tanto em Beethoven como em Goethe há uma infinidade de "material não processado", ele observa que, nas últimas sonatas, as convenções "se separam" do veio central da composição, "caem por terra e são deixadas para trás". Quanto aos grandes uníssonos (na Nona Sinfonia e na Missa solemnis), eles convivem com grandes conjuntos polifônicos; e Adorno acrescenta: É a subjetividade que forçosamente aproxima os extremos, preenche a densa polifonia com suas tensões, distingue-a do uníssono e por fim se desvencilha, deixando para trás o tom nu; é ela que converte a mera frase num monumento ao que já foi, como subjetividade petrificada. As cesuras, as súbitas descontinuidades que caracterizam, mais que tudo, o estilo tardio de Beethoven são esses momentos de ruptura; a obra silencia no exato instante em que é deixada para trás, e então exibe toda o seu vazio interior. (EM, p. 567) O que Adorno descreve aqui é o modo como Beethoven parece habitar suas obras tardias à maneira de uma subjetividade lamentativa, que deixa a obra ou passagens da obra pela metade, abandonando-as subitamente, como na abertura do quarteto em fá maior ou na do quarteto em lá menor. Essa sensação de abandono é particularmente aguda quando contrasta com o teor impetuoso e obstinado de obras do segundo período como a Quinta Sinfonia, na qual há momentos, como o final do quarto movimento, em que Beethoven parece incapaz de se desligar da peça. Em conclusão, Adorno afirma que o estilo das obras tardias é tanto objetivo quanto subjetivo: Objetiva é a paisagem fraturada, subjetiva é a luz à qual - e somente à qual - ela reluz renascida. Ele [o artista] não providencia sua síntese harmoniosa. Como poder de dissociação, ele as dilacera no tempo para, quem sabe, preservá-las para a eternidade. Na história da arte, as obras tardias são as catástrofes. (EM, p. 567) O ponto crucial, como sempre em Adorno, consiste em como dizer o que organiza as obras, dá-lhes unidade, torna-as mais que uma coleção de fragmentos. No ensaio em questão, ele chega ao máximo do paradoxo: não há como dizer o que conecta as partes senão evocando "a figura que, juntas, elas desenham". Tampouco seria o caso de minimizar a diferença entre as partes, pois nomear sua unidade, ou conferir-lhe uma identidade específica, seria reduzir sua força catastrófica. Assim, a força do estilo tardio de Beethoven é de ordem negativa, ou melhor, está em sua negatividade: ali onde esperaríamos serenidade e maturidade, encontramos um desafio espinhoso, árduo e incessante - talvez até inumano. "A maturidade das obras tardias", prossegue Adorno, "não se parece à das frutas. Não são redondas, mas ásperas e por vezes devastadas. Destituídas de doçura, amargas e eriçadas, não se oferecem ao mero deleite." (EM, p. 564) As obras tardias de Beethoven não se deixam apaziguar ou cooptar por uma síntese superior, não se conformam a nenhum esquema e não podem ser resolvidas ou conciliadas, uma vez que seu caráter não resolvido, sua fragmentaridade não sintetizada são constitutivos, sem nada de ornamental ou de simbólico. As composições tardias de Beethoven lidam com a "totalidade perdida", e é isso que as torna catastróficas. Podemos voltar agora à noção de tardio. O que significa? Para Adorno, a noção tem a ver com uma sobrevivência além do aceitável e do normal. Ademais, o tardio não pode ir além de si mesmo, não pode se transcender ou elevar, mas apenas aprofundar-se. Aqui não há lugar para a transcendência ou para a unidade. Em Filosofia da nova música, Adorno afirma que, no essencial, Schönberg prolongou o que há de irreconciliável, negativo e imóvel no Beethoven tardio. E, é claro, a noção de tardio abrange a fase terminal da vida humana. Dois últimos esclarecimentos. Em primeiro lugar, o estilo tardio de Beethoven ocupou Adorno ao longo de seus escritos porque, de modo paradoxal, as obras finais do compositor, imobilizadas e socialmente resistentes, estão no cerne do que há de novo na música moderna. Na ópera Fidelio - obra por excelência do período intermediário -, a noção de humanidade se manifesta cabalmente - e com esta a ideia de um mundo melhor. Como em Hegel, opostos irreconciliáveis eram passíveis de solução por via dialética, culminando numa conciliação dos opostos, numa síntese grandiosa. O Beethoven tardio mantém os opostos irreconciliáveis em dissociação; com isso, "a música, de significativa que era, torna-se mais e mais obscura - mesmo a seus próprios olhos". O Beethoven tardio preside à rejeição musical da nova ordem burguesa e prenuncia a arte inteiramente nova e autêntica de Schönberg, cuja "música avançada não tem outro recurso senão insistir em sua própria ossificação, sem concessões ao pretenso humanitarismo que ela desmascara. [...] Sob as circunstâncias presentes, a música se restringe à negação definitiva" (PNM, p. 20). Em segundo lugar, longe de ser apenas um fenômeno excêntrico e irrelevante, o estilo tardio de Beethoven, infatigavelmente alienado e obscuro, converte-se no protótipo da forma estética moderna e, justamente por sua distância, por sua rejeição tanto da sociedade burguesa como da morte serena, torna-se ainda mais significativo e perturbador. E, com efeito, o conceito de tardio e tudo que o acompanha nessas ruminações espantosamente ousadas e soturnas sobre a situação de um artista de idade avançada vem a se mostrar aos olhos de Adorno como o aspecto fundamental da estética e de sua própria obra como filósofo e teórico crítico. Em minha leitura de Adorno e de suas reflexões sobre a música, ele injeta no marxismo uma vacina poderosa a ponto de quase dissolver por inteiro sua capacidade de agitação. Não apenas as noções marxistas de avanço e ápice, mas também toda sugestão de movimento caem por terra diante de seu desdém rigorosamente negativo. Com a morte e o envelhecimento à sua frente e os anos promissores de estreia para trás, Adorno se vale do modelo do Beethoven tardio para suportar o fim em sua forma tardia, e em si mesmo, em seus próprios termos, não como preparação para algo ou como obliteração de seja lá o que for. Viver essa condição tardia significa viver rumo ao fim, com plena consciência, com plena memória e com total (e mesmo extraordinária) ciência do presente. Adorno, como Beethoven, se torna uma figura tardia por excelência, um comentador inoportuno, escandaloso e mesmo catastrófico do presente. Não é necessário recordar que Adorno é dificílimo de ler, seja no original alemão ou em suas muitas traduções. Fredric Jameson fala com acerto da inteligência flagrante de suas frases, seu refinamento incomparável, seu movimento interno programaticamente complexo, seu modo de se esquivar a tentativas repetidas de parafrasear seu conteúdo. O estilo da prosa de Adorno viola várias normas: pressupõe uma comunhão de entendimento com o público; é lento, antijornalístico, avesso a rótulos ou filtros. Mesmo um texto autobiográfico como Minima moralia constitui um repúdio à continuidade biográfica, narrativa ou incidental; a forma replica com exatidão o subtítulo - reflexões a partir da vida danificada - numa série de fragmentos descontínuos em cascata, todos atacando alguma "totalidade" suspeita, alguma unidade fictícia ao gosto de Hegel, cuja síntese grandiosa sempre redunda em desprezo zombeteiro pelo indivíduo. "O conceito de uma totalidade formada a partir de seus antagonismos o obriga [Hegel] a relegar o individualismo - por mais que o designe como um momento motor do processo - a uma condição inferior na construção do todo." [...]