Trecho do livro SERENATA

1 Eu estava no Tupinamba, comendo um biscocho com café, quando a garota entrou. Tudo nela dizia que era índia, desde o rebozo marrom e o vestido preto estampado com fores roxas até o jeito rebolado de andar, que mulher nenhuma adquire sem carregar na cabeça jarras, trouxas e cestos desde a idade em que para de engatinhar. Mas ela não tinha a cor de pele que uma índia tem. era quase branca, só com um toque bem de leve de café com leite. Tinha as formas de índia, mas não era feia. A maioria das índias tem cordas de músculos nos quadris, o que lhes dá um aspecto malfeito, de cintura alta, pernas finas, massudas, e peitos grandes demais. No caso dela, tinha mesmo um bocado de peito, mas os quadris eram redondos e as pernas tinham um desenho suave. era magra, mas havia nela algo de voluptuoso, como se dali a uns três ou quatro anos fosse engordar. Tudo isso, porém, eu só vi por alto. Reparei mesmo em seu rosto. era achatado, como o de uma índia, mas o nariz era mais pronunciado, e isso meio que combinava com o modo como erguia a cabeça, e os olhos não eram bobos, tinham um aspecto brilhante, como os olhinhos de botão num urso de pelúcia. eram bem grandes e pretos, mas miravam firmes, sem desviar, e tinham um ar meio sonolento e insolente. os lábios eram grossos, mas bonitos, e é claro que usava muito batom. Eram mais ou menos nove horas, e o lugar estava bastante cheio, com empresários de touradas, agentes, jornalistas, cafetões, policiais e quase todo tipo de gente que se possa imaginar, exceto alguém a quem você pudesse confiar seu relógio de pulso. Ela rumou até o balcão e pediu um drinque, depois foi para uma mesa e se sentou, e eu tive uma sensação de sufoco, que já tinha experimentado, por causa do ar rarefeito daquelas altitudes, mas dessa vez não era nada disso. Já fazia um bom tempo que não aparecia uma mulher em minha vida, e eu sabia o que isso significava. Trouxeram o drinque para ela, Coca-Cola com uísque, e eu fiquei pensando nisso. Podia significar que ela estava só começando a noitada, podia significar que ela queria abrir o apetite e, se fosse mesmo isso, eu estava ferrado. o Tupinamba é mais um café do que um restaurante, mas muita gente vai lá para comer e, se era isso o que ela pretendia, os meus últimos três pesos não iriam me levar muito longe. Decidi arriscar a sorte e ir até lá, mas ela se levantou. deslizou para uma mesa a duas mesas de onde estava, de pois mudou de lugar outra vez, e aí percebi qual era a dela. estava de olho num toureiro chamado Triesca, um garoto que eu tinha visto algumas vezes na arena: quando ele se apresentou no mesmo dia que solorzano, que parecia ser o grande astro deles na época, e depois da temporada principal, quando Triesca matou dois touros numa novillada realizada num domingo, debaixo de chuva. Triesca era ótimo com a capa e estava começando a ganhar muita grana. Vestia um terno preto do tipo que os mexicanos acham que é chique e bonito, e um chapéu cor de creme. estava sozinho, mas os empresários, os agentes e os jornalistas toda hora davam um pulinho em sua mesa. A moça não tinha lá grande chance de se aproximar, mas toda vez que três, quatro ou cinco deles caíam fora, ela se esgueirava para mais perto. dali a pouco, lá estava ela ao lado de Triesca. Ele não tirou o chapéu. isso devia me dizer alguma coisa, mas eu não me toquei. eu só via um galinho de briga tão cheio de si que nem sabia como agir. A moça falou, Triesca fez que sim com a cabeça, e assim os dois conversaram por um tempo, e parecia que ela nunca tinha visto Triesca antes. ela terminou de beber e deixou o copo vazio na mesa por um tempo, até que ele pediu mais um. Quando saquei por que a moça estava ali, tentei perder o interesse por ela, mas meus olhos toda hora a procuravam. Depois de alguns minutos, eu sabia que a moça havia percebido minha presença e que algumas das pessoas das outras mesas já estavam por dentro do que estava acontecendo. ela não parava de puxar seu rebozo em volta de si, como se estivesse frio, e de levantar um ombro, e assim metade de suas costas estava voltada para mim. isso só servia para empinar ainda mais sua cabeça, e eu não conseguia de jeito nenhum desviar dela meus olhos. e, é claro, como um toureiro é um canastrão como outro qualquer, ficava olhando para todas as mesas, menos para a própria, e não tinha nenhuma ideia de nada, a não ser ficar observando os olhares em volta. Vocês entendem, era um lugar muito sem graça, um grande café com uma porção de palermas sentados, com o chapéu jogado pa ra trás da cabeça, comendo, bebendo, fumando, lendo e papagueando em espanhol, e ninguém cutucava com o cotovelo,apontava com o dedo, chamava atenção. rigorosamente, eles cuidavam da própria vida. Mesmo assim, havia um par de olhos atrás de um jornal que não estava olhando para o jornal, ou talvez uma garçonete, parada ao lado de alguém, falasse alguma coisa e desse uma risada um pouco mais alta de algo que em geral merece uma simples gracinha de garçonete. ele só ficava lá sentado, com um olhar meio bobo na cara, batendo a unha no copo, e então senti um calafrio subir pela espinha. ele se levantou e veio em minha direção. Um cara com três pesos no bolso não quer saber de encrenca e, quando o salão congelou feito uma imagem parada no meio de um filme, tentei dizer a mim mesmo que era melhor levar na esportiva, cair fora sem começar algo que eu não ia conseguir parar. Quando ele ficou plantado na minha frente, ainda estava de chapéu. - A minha mesa, você está interessado, hein? - A sua... o quê? - A minha mesa. Você está olhando, parece interessado, señor. - Ah, agora entendi. Eu não estava levando na esportiva, estava levando a sério. Levantei com o melhor sorriso que consegui estampar na cara e acenei para uma cadeira. - Claro, vou explicar. Terei prazer em explicar. - baixar a bola facilita as coisas, e uma Acolhida agressiva também não ia me levar a nada. - Por favor, sente-se. olhou para mim e olhou para a cadeira, mas parecia que ele já me considerava uma carta fora do baralho. Mesmo assim, sentou. eu também sentei. Então fiz uma coisa que estava com vontade de fazer havia quinze minutos. Tirei de sua cabeça aquele chapéu creme, como se fosse a coisa mais gentil que eu pudesse fazer por ele, coloquei o chapéu em cima de um cardápio e pus os dois em cima de uma cadeira. se ele se mexesse, eu ia meter um murro na cara dele, mesmo que me dessem um tiro por causa disso. Triesca não fez nada. eu o peguei de surpresa. Um rumor de comentários em voz baixa correu pelo salão. O primeiro assalto, eu ganhei. - Posso pedir uma coisa, señor? Triesca piscou os olhos e acho que nem chegou a me escutar. Começou a olhar em volta, em busca de ajuda. Estava habituado a ouvir a galeria gritar olé toda vez que assoava o nariz, mas dessa vez a plateia deixou Triesca na mão. Ele só via indiferença e, para aquela gente, era como se nós dois nem estivéssemos ali. Triesca não podia fazer mais nada a não ser me encarar e tentar lembrar o que tinha ido fazer em minha mesa. - A explicação. Por favor, comece. eu tinha pegado o Triesca de um jeito que ele não esperava e resolvi acertar mais uma nele, e dessa vez bem entre os olhos. - Sem dúvida. eu estava olhando, é verdade. Mas não era para você. Acredite, señor, não era para você. e não era para a mesa. era para a dama. - Você... me diz isso? está me dizendo isso? - Claro. Por que não? Bem, o que é que ele ia fazer? Podia me desafiar para um duelo, mas no México ninguém sabe o que é um duelo. Podia me dar um murro, mas eu era maior do que ele, tinha uns vinte quilos a mais. Podia me dar um tiro, mas não estava armado. eu havia quebrado todas as regras. não se deve falar desse jeito no México e, quando a gente mostra a um mexicano uma coisa que ele nunca viu, leva um ano para ele imaginar uma resposta. Triesca fcou parado, piscando os olhos na minha frente, e suas bochechas e orelhas fcavam vermelhas de vez em quando. eu lhe dei todo o tempo do mundo para pensar em alguma coisa, se pudesse, antes de eu continuar a falar. - Vou lhe dizer uma coisa, señor. Examinei aquela dama com cuidado e achei que ela é muito formosa. Admiro seu gosto. Invejo sua sorte. então vamos fazer uma loteria, e quem tiver mais sorte ganha. Cada um de nós vai comprar um bilhete para ela e quem tirar o número mais alto paga a próxima bebida para ela. Que tal? Outro rumor de vozes correu pelo salão, dessa vez mais demorado. nem metade deles sabia falar inglês e tinham de traduzir uns para os outros até entenderem. Triesca levou uns quatro compassos para pensar no assunto e começou a se sentir melhor. - Mas por que fazer isso, por favor? A dama, ela está comigo, não é? eu ponho a dama na lotería, e o señor, o que vai pôr? Pode dizer? - Espero que o señor não esteja com medo, ou está? Triesca não gostou muito disso. seu rosto voltou a ficar vermelho, mas aí senti uma coisa atrás de mim e também não gostei nada disso. Nos estados unidos, quando a gente sente uma coisa atrás da gente, na certa é um garçom com um prato de sopa, mas no México podia ser qualquer coisa, e a última coisa que a gente deseja é exatamente o mais provável. Metade da população do país anda com armas automáticas de cabo de madrepérola na cintura, e o ruim dessas armas é que elas atiram mesmo, e depois que atiram ninguém faz nada a respeito. Aquele cara tinha um monte de amigos. era um ídolo, e eu não sabia de ninguém que fosse dar pela minha falta. Fiquei parado, olhando para ele, com medo até de me virar. Ele também sentiu isso, e surgiu em sua cara um olhar engraçado. inclinei-me para a frente para tirar umas cinzas de cigarro de meu paletó e, com o rabo do olho, dei uma espiada. Havia ali uns dois ou três vendedores de bilhetes de loteria e, quando Triesca veio para minha mesa, eles devem ter parado onde estavam, como todo mundo. Agora, estavam ali atrás, fazendo sinal para ele responder que sim, que a aposta ia ser manipulada. eu não entreguei os pontos. banquei o impaciente e forcei um pouco a voz ao provocar Triesca: - E então, señor? sim ou não? - , . Vamos fazer lotería! Isso quebrou o gelo, e as pessoas se amontoaram a nos sa volta, umas quarenta ou cinquenta. enquanto falávamos de negócios, elas tinham de ficar a distância, mas agora que a coisa tinha virado uma espécie de jogo, todo mundo podia tomar parte, e a maioria veio participar. Mas, antes mesmo da multidão, os dois vendedores de bilhetes de loteria se aproximaram; um deles brandia bilhetes cor-de-rosa para mim, o outro brandia bilhetes verdes para Triesca. Vejam bem: existem centenas de loterias no México, umas cor-de-rosa, outras verdes, umas amarelas, outras azuis, e a maioria paga muito pouco. os dois vendedores tentavam passar um conto do vigário enfiando guardanapos entre os maços de bilhetes para a gente não ver os números, mas meu vendedor não parava de falar comigo, aos sussurros, e piscava os olhos, querendo dizer que os números dele eram altos para burro. era um índio, de cabelo cinzento e uma cara de santinho de chocolate, e a gente podia muito bem pensar que era incapaz de contar uma mentira na vida. Pensei em Cortés e como foi fácil para ele sacar os truques daquela gente e como aqueles truques de viam ser bobos. Mas eu era diferente de Cortés, porque eu queria ser enganado. no meio da multidão, eu podia ver a garota, lá sentada, no mesmo lugar, como se não tivesse a menor ideia do que estava acontecendo, e afinal ainda era ela meu alvo, não levar a melhor sobre um toureiro babaca. Algo me dizia que a última coisa que eu devia fazer era ganhar a garota numa loteria. então resolvi que eu tinha mesmo de perder, para depois ver o que ia acontecer. [...]